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CAPÍTULO 3. OS ASPECTOS SUBJACENTES AOS COMPORTAMENTOS VISÍVEIS

3.2 DA SUBJETIVIDADE: EVOLUÇÃO DE UMA PERCEPÇÃO

O ser humano é um ser social e sua individualidade se constrói por meio da interação que ocorre entre ele, enquanto indivíduo, e o grupo social. Foucault (2004, p.291) já

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O conceito de psicologia profunda foi proposto por Eugen Bleuler para se referir aos enfoques psicoanalíticos que tem como ponto de referencia o inconsciente.

mencionava essa condição ao afirmar acreditar que o sujeito “se constitui através de práticas de sujeição, ou, de maneira mais autônoma, através de práticas de libertação, de liberdade [...] a partir, obviamente, de um certo número de regras, de estilos, de convenções que podemos encontrar no meio cultural.” O subjetivo, portanto, se caracteriza como uma “dimensão da experiência”, uma forma peculiar e individual do sujeito perceber e interagir com o mundo sociocultural e histórico, ambiente no qual se concretizam as ações que o caracterizam enquanto indivíduo81.

A subjetividade se refere a uma dimensão singular do sujeito. Relaciona-se, segundo Bock et al (2011, p. 22), ao ser humano em todas as suas expressões, tanto as visíveis ou invisíveis – como os comportamentos e sentimentos, quanto as singulares (“porque somos o que somos”) ou genéricas (“porque somos todos assim”):

A subjetividade é a síntese singular e individual que cada um de nós vai constituindo conforme vamos nos desenvolvendo e vivenciando as experiências da vida social e cultural; é uma síntese que de um lado nos identifica, por ser única; e de outro lado nos iguala, na medida em que os elementos que a constituem são experienciados no campo comum da objetividade social. Essa síntese – a subjetividade – é o mundo de idéias, significados e emoções construído internamente pelo sujeito a partir de suas relações sociais, de suas vivências e de sua constituição biológica; é, também, fonte de suas manifestações afetivas e comportamentais. (BOCK et al, 2011, pags. 22 e 23)

Essa construção, conforme destacam os autores acima referidos, é feita aos poucos e muda de acordo com os grupos sociais – que nem sempre pensam e sentem a existência da mesma maneira. Guattari (1992, p.22) já mencionava essa percepção quando considerava que cada grupo social veicula seu próprio sistema de modelização da subjetividade. Para o autor, esta modelização compreende uma “cartografia” que é composta por demarcações cognitivas, mas também míticas, rituais, sintomatológicas, a partir da qual o sujeito se posiciona em relação aos seus afetos, suas angústias e tenta gerir suas inibições e suas pulsões. Nesta perspectiva de compreensão destaca-se a fala de Bock et al (2011), segundo os quais, ao criar e transformar o mundo (externo), o homem constrói e transforma a si próprio.

A percepção dessa relação intrínseca entre sujeito e contexto remete aos primórdios da psicologia científica que surgiu em meados do século XIX. Nesse período de efervescência sócio-científico-cultural, segundo os autores supracitados, alguns fatores se destacavam,

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dentre os quais: o crescimento da produção capitalista (que ocupava cada vez mais o lugar das formas medievais), o desenvolvimento das ciências (que desencadearam mudanças de paradigmas – com o antropocentrismo dando lugar a outras percepções mais “cientifícas”), e o questionamento de dogmas religiosos. Assim, a necessidade de explicar as mudanças pelas quais a sociedade vinha passando suscitou a instituição de um campo científico que fosse capaz de entender o indivíduo frente a esses fenômenos e buscar compreender o psiquismo humano, visto que essas condições propiciaram ao homem passar a ser visto cada vez mais em sua individualidade:

Os humanos passam a ser tomados cada vez mais como indivíduos, isolados e livres. O capitalismo impôs sua forma de pensar cada humano como consumidor e produtor individual, livre para vender sua força de trabalho. Passam a ser vistos como sujeitos, ativos, capazes de escolher a trajetória de sua vida, de construir uma identidade para si e de viver, pensar e sentir sua experiência como subjetividade individualizada. (BOCK et al, 2011, p.39)

Em especial, contribuíram para o desenvolvimento desse novo viés, as descobertas feitas no campo da Psicofísica, decorrentes dos estudos de Fechner e Weber82, e na Psicofisiologia, com os trabalhos de Wilhelm Wundt83 que abriram espaço para uma psicologia científica.

A “descoberta” do sujeito psicológico, ou seja, o nascimento deste sujeito no discurso ocidental moderno, na ótica de Prado Filho e Martins (2007), é tributada à psicologia, pois este [sujeito] era “uma figura inexistente na cultura ocidental antes do surgimento da psicologia científica na passagem do século XIX ao XX”. Essa apropriação, do “sujeito psicológico” enquanto objeto científico, pela psicologia e não por outros campos como a filosofia ou a antropologia, possibilitou a “objetivação” das instâncias que compõem este

82 Theodor Fechner (1801-1887) e Ernst Heinrich Weber (1795 – 1878) desenvolveram uma importante

formulação no campo da Psicofísica - ramo da psicologia que estuda a relação entre estímulos físicos e as respectivas sensações. A Lei Fechner-Weber, ao estabelecer uma relação entre estímulo e sensação que possibilita sua mensuração, instaura uma possibilidade de medida do fenômeno psicológico, algo que até então era considerado impossível. (BOCK et al, 2011)

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Wilhelm Wundt (1832-1926) criou na Universidade de Leipzig, Alemanha, o primeiro laboratório para desenvolver experimentos na área de Psicofisiologia – ramo da psicologia que estuda as relações entre fenômenos psíquicos e fisiológicos. Wundt desenvolveu o conceito de paralelismo psicofísico (segundo o qual aos fenômenos mentais correspondem fenômenos orgânicos) e um método denominado introspeccionismo (visando explorar a mente ou consciência do indivíduo). Por sua extensa produção teórica na área é considerado o pai da psicologia moderna. (BOCK et al, 2011)

sujeito84, constituindo-se estas instâncias como “realidades psíquicas” e ancorando-as nas objetividades do corpo e da natureza, que era o modelo de ciência daquela época.

Entretanto, o desenvolvimento do campo caminhou no sentido de superar as concepções “cindidoras do homem” decorrente dessas vertentes anteriores de estudos, como menciona Bader Sawaia no prefácio da obra de Molon (2010, p.9). Nesse aspecto, têm-se os estudos desenvolvidos por Vygotsky85 que buscaram inserir “a sociedade no homem, o biológico no psicológico e vice-versa” e contribuíram para pensar a subjetividade como uma experiência pessoal que se constitui no coletivo, no social e na cultura e que são a base da Psicologia sócio-histórica.

O desenvolvimento da Psicologia ao longo dos dois últimos séculos culminou no desdobramento em “várias psicologias”86, o que implicou uma diversidade de abordagens divergentes dos fenômenos psicológicos. Algumas instâncias mais “integradas” ganharam visibilidade a partir de 1940, tendo a subjetividade se inserido neste grupo. Entretanto, a preocupação com o universo interior do indivíduo tem sua vertente inaugurada com Sêneca – escritor e filósofo do Império Romano (4a.C.- 65d.C.) – que percebeu que “as pessoas são dotadas de um espaço interior que se distingue da exterioridade”.

Em uma análise arqueológica do conceito, Prado Filho e Martins (2007) mencionam uma primeira problematização que surgiu na filosofia moderna com Kant, correspondendo esta a algo que precisava ser neutralizado para se ter acesso à verdade objetiva. Após mais de um século, o conceito migrou, pelas mãos de Sigmund Freud, passando a designar uma instância de interioridade sendo, a psicanálise freudiana responsável por naturalizar a subjetividade ao considerá-la inerente ao sujeito. A partir da década de 1980, entretanto, ainda segundo Prado Filho e Martins (2007), o termo se “despiu” do sentido naturalizado e

84O psiquismo, a cognição, a “mente”, a consciência, a identidade, o self, as percepções, as interpretações bem

como a dimensão “intrapsíquica”, das emoções, do desejo, do inconsciente – o “reino da subjetividade” (PRADO FILHO; MARTINS, 2007)

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Lev Semenovitch Vygotsky (1896- 1934) foi um psicólogo cujos estudos se centraram na subjetividade e na constituição do sujeito. Seus trabalhos foram base para o desenvolvimento da Psicologia Sócio-Histórica e procuraram romper com concepções biologicistas, solipsistas ou deterministas do desenvolvimento humano. Vygotsky destaca a relação que o indivíduo estabelece com seu meio físico e social e a possibilidade de serem trabalhados sem antagonismos a individualidade e a historicidade. (MOLON, 2010, prefácio de Bader Burihan Sawaia)

86 Como a Psicologia Clínica, Psicologia Social, Psicologia Cognitiva, Psicologia Organizacional, dentre várias

substancializado de interioridade e passou a ser pensado também em termos históricos, sociais e políticos.

Apesar do conceito de subjetividade estar intrinsecamente ligado ao do sujeito, segundo Bock et al (2011), há diferentes formas de abordá-la, o que é determinado pelas concepções de homem adotada pelas diferentes “escolas” de psicologia. Para a Psicologia Sócio-Histórica, por exemplo, a subjetividade não está dada a priori, mas é relacionada à atividade do indivíduo e sua intervenção sobre o mundo. Assim, ao se conhecer as ideias de um indivíduo, pode-se saber sobre a sociedade onde ele vive e essa percepção amplia o conceito de subjetividade para fora do sujeito. Esta perspectiva, de acordo com os autores supramencionados, remete aos conceitos de subjetividade individual e subjetividade social, onde a primeira representa a constituição da história de relações sociais do sujeito e, a segunda, um sistema integral de configurações subjetivas que se articulam nos distintos níveis da vida social. Estas perspectivas consideram o homem como um indivíduo datado e determinado pelas condições históricas e sociais que o cercam.

Bernardes (2007) destaca que, anterior ao conceito de subjetividade, alguns outros conceitos são nucleares para o estudo da individualidade, como os de personalidade, sujeito e indivíduo, já que a ideia da subjetividade está relacionada com a expressão do sujeito. No tocante a personalidade, a autora (p. 90) destaca que os estudos realizados no Brasil sobre este tema “vão buscar as estruturas e processos subjacentes às ações das pessoas”. Tendem a um processo de normalização ao buscarem identificar aquilo que é igual em cada um, “o que parece sustentar mais o valor da padronização pela igualdade do que o da singularidade”.

Uma das perspectivas levantadas por Bernardes (2007) destaca o conceito de subjetividade sob o ponto de vista psicoanalítico. Neste, a subjetividade decorrente do sujeito inconsciente é representada pela diferença e pela singularidade. Apesar de ser posta no campo individual, esta perspectiva deixa entrever, entretanto, a possibilidade de articulação com o plano social. Guattari (1992, p.170) fala também desse campo individual ao mencionar que “a vida de cada um é única. O nascimento, a morte, o desejo, o amor, a relação com o tempo, com os elementos, com as formas vivas e com as formas inanimadas são, para um olhar depurado, novos, inesperados, miraculosos”87. Já Matteo (2007) menciona que o termo, a

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Guattari (1992, p. 190-191), no decorrer de sua obra, amplifica esse conceito ao fazer uma ponte entre concepções primevas e contemporâneas sobre a subjetividade: “nas sociedades arcaicas os mitos, os ritos de iniciação tinham por tarefa modelar as posições subjetivas de cada indivíduo no interior de sua faixa etária, de seu sexo, de sua função, de sua etnia... Nas sociedades industriais desenvolvidas encontra-se o equivalente desses sistemas de entrada em Agenciamentos subjetivos, mas sob formas padronizadas e produzindo apenas

partir da modernidade, tem evocado mais um lugar, um “campo interior” no qual as experiências do sujeito são confrontadas com a corporalidade e a intersubjetividade. Segundo este autor, o significante “subjetivação” – do verbo subjetivar-se, fazer-se sujeito, construir- se – permite incorporar à noção de sujeito a de uma “possibilidade de singularização”. Em sua reflexão sobre a compreensão dos destinos da subjetividade na contemporaneidade, o autor procura, no discurso cultural de Freud, uma análise sobre essa articulação do campo pessoal para o social:

Uma leitura apressada dessa literatura psicanalítica pode dar a falsa impressão de que, ao questionar a primazia da consciência e da autodeterminação, a psicanálise freudiana reduza o psiquismo (a subjetividade) à interioridade do inconsciente, da vida das pulsões, da busca do próprio desejo, em suma, a um certo solipsismo. Freud, no entanto, foi um pensador lúcido que soube articular como ninguém a relação de conflito entre desejo e cultura.

Oliveira e Almeida (2013) ao discursarem sobre a subjetividade abordando a perspectiva de Freud, consideram que o sujeito se constitui pela estruturação inconsciente a partir de suas vivências e que a constituição da subjetividade possui um movimento que se dá entre as esferas consciente e inconsciente, numa interação entre o real e o simbólico.