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CAPÍTULO 4. O IMAGINÁRIO E A HERMENÊUTICA SIMBÓLICA

4.3 O IMAGINÁRIO SEGUNDO GILBERT DURAND

4.3.3 Métodos do imaginário

O conjunto da obra de Gilbert Durand contempla, dentre várias contribuições ao estudo do imaginário, a elaboração de uma teoria que sistematizou uma classificação dinâmica das imagens – considerando como princípio uma configuração baseada na constelação de imagens simbólicas – e o desenvolvimento de uma metodologia apoiada no método crítico do mito. Esses estudos deram origem às Estruturas Antropológicas do Imaginário, já apresentada neste capítulo, e a uma metodologia denominada Mitodologia, que possui como formas de análise a Mitocrítica e a Mitanálise.

A Mitodologia emergiu como uma tentativa de abordagem científica considerando, de acordo com Mello (1994, p.46) que

em todas as épocas, em todas as sociedades existem, subjacentes, mitos que orientam, que modulam o curso do homem, da sociedade e da história. Daí que a metodologia durandiana se proponha a desvelar estes que são os grandes mitos diretivos, responsáveis pela dinâmica social ou pelas produções individuais representativas do imaginário cultural, localizado no tempo e no espaço.

A Mitodologia ampara suas abordagens na Mitocrítica, um método de análise do “texto cultural” que busca evidenciar o(s) mito(s) que atua(m) por detrás dele, e na

Mitanálise, um método de análise científica dos mitos que tenta apreender os grandes mitos que orientam os momentos históricos, os tipos de grupos e de relações sociais.

O termo Mitocrítica foi criado por Gilbert Durand a partir da “Psicocrítica”, de Charles Mauron, expresso na sua obra Des Métaphores Obsédantes au Mythe Personnel. Introduction à là psychocritique (1949). É um método de crítica literária ou artística que centra o processo compreensivo sobre o relato mítico inerente ao significado de todo relato. Considera que as estruturas, história ou meio sócio-histórico, assim como o aparelho psíquico, são indossociáveis e fundam o conjunto compreensivo ou significativo da obra de arte e, de forma especial, do relato literário. Coloca em evidência, seja em um autor ou em uma obra, os mitos diretores e suas transformações significativas (PITTA, 1995).

Já o termo Mitanálise, inicialmente proposto por Denis de Rougemont na obra Comme Toi-Même, essais sur lês mythes de l’amour (1961), teve Gilbert Durand como o responsável pela sua aplicação “sociológica” ao terreno dos mitos, forjando o conceito do termo como o estudo dos mitos diretores que habitam nas profundezas das sociedades (ARAUJO; SILVA, 1995). É um método de análise científica que visa identificar os grandes mitos diretores dos momentos históricos e de grupos sociais e que procura perceber como o imaginário coletivo e cultural é caracterizado por determinadas figuras míticas (G. DURAND, 1979, 1982, 1983, 2000). Segundo Teixeira e Araújo (2013, p.70), a Mitanálise se afirma como um modelo de análise de mitos em tensão numa sociedade em determinada época e parte da “aceitação do pressuposto de que o mito fornece a chave da organização social”.

De forma sintética considera-se que, enquanto a Mitocrítica está centrada na análise dos mitos de textos culturais, a Mitanálise estende sua análise ao contexto social no sentido de identificar a presença dos mitos diretivos, configuradores dos fenômenos socioculturais de uma dada sociedade num período de tempo relativamente extenso e delimitado, que gira em torno de um século (ARAUJO, SILVA, 1995; MELLO, 1994).

Além dos métodos desenvolvidos por Gilbert Durand relacionados à teoria por ele proposta, outros métodos e conceitos foram sendo incorporados à hermenêutica dos aspectos simbólicos sob a perspectiva durandiana. Dentre esses se destaca a proposição de Yves Durand116 (1988), discípulo do próprio Gilbert Durand, que desenvolveu um teste que visa consolidar, por meio de uma aplicação empírica, a arquetipologia durandiana.

A criação do teste, denominado Teste Arquetípico de Nove Elementos (AT.9) por

116

Yves Durand em meados de 1960 teve como motivação testar a teoria proposta por Gilbert Durand relativa às Estruturas Antropológicas do Imaginário. Segundo o Yves Durand (2001, p.13) “se o imaginário existe de acordo com os processos (estruturas) descritos por Gilbert Durand com base em materiais de alto nível cultural, nós devemos poder obter fatos em conformidade com esta teoria de documentos produzidos por uma população comum”117. Na prática, isso implicava em adotar uma perspectiva experimental, o que foi feito por meio da criação do AT.9, que teve seus primeiros resultados apresentados no Colóquio de Simbolismo de Paris, em 1963.

4.3.3.1 Teste Arquetípico de Nove Elementos (AT.9)

A proposta inicial de Yves Durand, de submeter à prova a teoria proposta por Gilbert Durand numa tentativa de verificar a existência das estruturas imaginárias, procurou simular os pressupostos da teoria no contexto de um modelo organizado com estímulos simbólicos capazes, por um lado, de fazer a pergunta da ansiedade e, por outro, buscar as respostas por meio de uma atividade criativa.

Nesse sentido, Yves Durand (1988; 2001; 2005) elabora um instrumento composto por nove termos (que designam os schèmes, os arquétipos e as imagens simbólicas) escolhidos de acordo com as estruturas do imaginário de Gilbert Durand (2012), cujo protocolo pressupõe a elaboração de um desenho, a construção de uma narrativa e o preenchimento de um questionário destinado a recolher informações complementares. Os estímulos propostos para o teste são assim categorizados: um estímulo central (representado pelo elemento Personagem), dois estímulos ansiógenos (representados pelos elementos Queda e Monstro devorante), três estímulos de resolução de ansiedade (representados pelos elementos Espada, Refúgio e Cíclico) e três estímulos complementares (representados pelos elementos Água, Fogo e Animal).

O AT.9 objetiva, por meio da materialização pictográfica de uma história, da “narrativa linguística” e da sistematização dos fatos que atribuem sentido à composição realizada, identificar os núcleos organizadores de simbolização – denominados pelo autor como micro-universos míticos. Nesse sentido, os nove estímulos possibilitarão indicar uma

117Si l’imaginaire existe selon les processos (structures) décrits par G. Durand surl a base de matériaux de

hautniveau culturel, ondo it pouvoir obtnir desfaits conformes à cette théorie à partir de documents réalisés par une population “ordinaire”

classificação de um “universo mítico”, que poderá ser definido como heroico, místico ou sintético (ou disseminatório), dependendo de como o indivíduo expressa sua angústia existencial.

A estrutura heroica pressupõe que o indivíduo irá procurar eliminar a angústia por meio da luta. Assim, a composição feita por ele é construída em torno da ideia de que o personagem, com armas na mão, irá destruir os perigos e ameaças iminentes representado por algo monstruoso. A estrutura mística considera que o indivíduo irá procurar eliminar a angústia por meio da construção de um refúgio que possa protegê-lo dos perigos. Já á estrutura sintética concilia as duas estruturas anteriores, num misto de enfrentamento e repouso. Estas estruturas se subdividem conforme a tônica da composição feita pelo sujeito, em subcategorias118:

a) O micro-universo Heroico poderá ser de quatro tipos: Heroico integrado, quando todos os elementos integram o cenário de combate; Heroico impuro, quando há um grupo de elementos que destoa desse cenário de luta; Super heroico, se centrado basicamente nos três elementos de base (personagem, espada, monstro) e Heroico descontraído, quando a luta é iminente, mas não se concretiza.

b) O micro-universo Místico também poderá se dividir em quatro possibilidades: Místico integrado, quando predomina um cenário pacífico; Místico impuro, quando o monstro e espada encontram-se desfuncionalizados; Super místico quando o monstro e/ou espada não são representados, ou apenas um deles aparece de forma eufemizada; e Místico lúdico, quando o monstro e espada são inseridos em um cenário de brincadeira.

c) O micro-universo sintético se divide em existencial ou simbólico. O primeiro poderá corresponder a dois tipos: Duplos universos existenciais diacrônicos, no qual o personagem vive dois episódios de modo sucessivo, ou Duplos universos existenciais sincrônicos no qual o personagem participa de dois universos de forma desdobrada.

Se o micro-universo for simbólico, poderá ser estruturado de forma diacrônica ou sincrônica: o tipo diacrônico é de evolução cíclica, quando configura um eterno retorno (ou uma progressão cíclica), ou de evolução progressiva, quando o ciclo

118Para um melhor detalhamento dos micro-universos, ver obra original de Yves Durand (1988, 2005), e também

não é fechado porque há progressão. O tipo sincrônico também se subdivide em dois micro-universos: o do dualismo, no qual há uma organização dualista do espaço gráfico, e da mediação, no qual o personagem é o ponto de articulação de uma bipolarização.

Além dos micro-universos acima elencados, que se configuram em uma postura positiva no enfrentamento da angústia, também pode haver outros tipos de micro-universos representados por uma estruturação negativa ou pela desestruturação. A estruturação negativa compreende os tipos heroico negativo, místico negativo, duplo universo existencial negativo e micro-universo sintético simbólico negativo, cujas composições são caracterizadas pelo fracasso do herói, insegurança ou concepções fatalistas ou pessimistas. O Universo da não estruturação ocorre quando não há ligação entre os elementos do teste.

A estruturação proposta pelo AT.9 sobre os micro-universos, que corresponde à Análise Estrutural do imaginário, pode ser vista de forma esquemática na figura abaixo (Figura 9).

Figura 9. Representação esquemática dos micro-universos Formas positivas Micro universo heroico Heroico integrado Heroico impuro Super heroico Heroico descontraído Micro universo místico Místico integrado Místico impuro Super místico Místico lúdico Micro universo sintético

Micro-universos sintéticos existenciais Duplos universos existenciais diacrônicos Duplos universos existenciais sincrônicos Micro-universos sintéticos simbólicos de

forma diacrônica

Micro-universo da evolução cíclica Micro-universo da evolução progressiva Micro-universo sintéticos simbólicos de

forma sincrônica Micro-universo do dualismo Micro-universo da mediação Formas negativas Estruturação negativa Heroico negativo Místico negativo

Duplo universo existencial negativo

Micro-universo sintético simbólico negativo Universo da não

estruturação

Além dessa análise, que segue a classificação das imagens conforme as estruturas do imaginário de Gilbert Durand, o teste propicia também a realização de outras análises: uma análise das imagens utilizadas para representar os elementos do teste (Analise Elemencial), uma análise da ação empreendida pelo personagem (Análise Actancial) e uma análise das conexões.

A Análise Elemencial proporciona uma compreensão sobre como as imagens foram utilizadas e qual sua significação. Baseia-se nas informações que o sujeito utilizou no preenchimento do quadro do teste, especificamente nas colunas B e C, que tratam da função de cada imagem no desenho realizado e o que aquela imagem simboliza119.

A Análise Actancial permite visualizar a dinâmica da ação feita pelo sujeito e que tipo de actante está presente na composição. Esta análise alia as estruturas do imaginário à proposta sobre actantes elaborada por Aljirdas Greimas120, perspectiva que considera os participantes ativos em uma narrativa. Esta análise trata de três conjuntos de relações: sujeito- objeto, destinador-destinatário e adjuvante-oponente. O desejo de resolver a ansiedade constitui o eixo do modelo (Figura 10), no qual se destaca a posição central do sujeito e sua relação com o objeto. As principais categorias e funções auxiliares dessa análise constam da Figura 11. Yves Durand (1988, p.279) propõe, ainda, a elaboração de um diagrama que auxilia na análise dos actantes que constituem um universo mítico, configurando este como uma ferramenta de análise na qual os actantes são graficamente representados. O inventário dos actantes segundo Durand (1988, p.265) pode ser visto no Quadro 1.

Figura 10. Modelo actancial mítico

Fonte: baseado em Durand, Y. (1967, p.97)

119 O quadro é apresentado nesta tese no capítulo sobre percurso metodológico. 120

Figura 11. Principais categorias e funções

A. SUJEITO Personagem do teste

B. OBJETO Resolver a ansiedade

C. DESTINADOR Examinador

D. DESTINATÁRIO Sujeito criador do espetáculo do teste (resposta à questão “e” do questionário)

E. OPONENTE Tempo mortal (obstáculos lógicos; dificuldades pragmáticas,

mistério, morte) sob a forma de Monstro devorador ou Queda

F. ADJUVANTE a) Temática: Espaço... Refúgio

Ação ... Espada b) Formais: Elemento cíclico

G. POLIVALENTES Água, Animal, Fogo

Fonte: baseado em Durand, Y. (1967, p.96)

Quadro 1. Inventário dos actantes As actanciais (operantes no AT.9)

Actantes dos universos míticos (Segundo Durand, Y.) Isomorfizante, atualizante (todas as estruturas organizadas) Actante principal

Potencialmente (estruturação defeituosa) Actante potencial Diferenciação-exclusão (universo heroico) Actante individuado Matricial-inclusão (universo místico) Actante matricial Atrativo (universo sintético diacrônico progressivo) Actante atrativo Evolutivo (duplo universo existencial e universo sintético

diacrônico cíclico)

Actante evolutivo Bipolarisante: duplo universo existencial e universo

sintético sincrônico (dualismo)

Actante diferencial Interativo (universo sintético sincrônico/mediação) Actante interativo

Fonte: adaptado de Durand, Y. (1988)

A análise das conexões das imagens, que também é prevista nos protocolos do teste, irá permitir verificar as relações estabelecidas entre o indivíduo e os nove elementos representados. As conexões podem ocorrer por união ou por separação (denominadas respectivamente como classe primal e classe dual). Essa análise compreende o registro das conexões por meio de traçados que irão demonstrar de forma gráfica as relações estabelecidas.

Segundo Yves Durand (1967, p.94-95), vários planos de compreensão do AT.9 são possíveis. Desde a análise estrutural baseada nas Estruturas Antropológicas do Imaginário, à análise actancial baseada nos estudos de Greimas (1966), que permite demonstrar o aspecto

dinâmico do teste, o AT.9 tem se configurado em um instrumento que possibilita compreender como o indivíduo se posiciona frente à angústia existencial e visualizar as ações que o mesmo executa nesse enfrentamento.

O teste, que obteve mais de 10.000 protocolos, apresentou resultados que validaram a estrutura proposta por Yves Durand (MELLO, 1994). O instrumento elaborado possibilita identificar os micro-universos míticos dos indivíduos, o que permite compreender como estes reagem à interferência externa, denotando o que permeia suas ações no dia a dia.