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CAPÍTULO 3. OS ASPECTOS SUBJACENTES AOS COMPORTAMENTOS VISÍVEIS

3.3 DO INCONSCIENTE

A investigação de questões relativas à natureza humana, de modo especial, os processos de estruturação da personalidade, os comportamentos e as motivações dos indivíduos em um plano inconsciente, tem sua base referenciada, principalmente, nos trabalhos de Sigmund Freud e Carl Jung.

Freud foi o precursor88 desses estudos e a orientação de suas pesquisas parte do princípio da primazia do fator erótico sexual na origem dos conflitos. Por acreditar que o desejo sexual é a motivação primária para a vida humana, esse pesquisador creditava às memórias ocultas ou reprimidas uma conotação desta natureza. Assim, de acordo com sua

uma subjetividade serializada. A “fabricação” de um sujeito passa doravante por longos e complexos caminhos, engajando, através da família, da escola, sistemas “maquínicos” tais como a televisão, os mass mídia, o esporte... Insisto no fato de que não é apenas o conteúdo cognitivo da subjetividade que se encontra aqui modelado mas igualmente todas as suas outras facetas afetivas perceptivas, volitivas, mnêmicas...”

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Apesar de Freud ter atribuído a Joseph Breuer as primeiras investigações sobre o tema (quando de sua fala em uma conferência norte-americana, em 1909), em sua publicação The History of the Psychoanalytic Movement, de 1914, ele assume toda a responsabilidade pela criação da Psicanálise.

teoria, o conteúdo do inconsciente corresponde às tendências infantis reprimidas em função da “incompatibilidade” com o caráter humano e contém apenas “partes da personalidade que poderiam ser conscientes se a educação não as tivesse reprimido” (JUNG, 1978, p.15).

Os trabalhos de Freud, de acordo com Paula (2017)89, se inspiraram em outros pesquisadores que o antecederam90. Freud foi, ainda, contemporâneo de Wilhem Wundt, que, como visto anteriormente, trabalhou a partir das preocupações tradicionais relacionadas às sensações, às percepções e à aprendizagem. Dentre os predecessores de Freud, Gustav Fechner contribuiu com o conceito de que uma parcela consideravel da mente está oculta sob a superfície onde é influenciada por forças não observáveis; Já Pierre Janet91 antecipou muitas idéias de Freud sobre os fenômenos inconscientes e, por causa disso, se ressentiu do reconhecimento dado a ele.

Os trabalhos de Freud, que tinham como objetivo inicial a investigação dos processos inconscientes visando o tratamento das “doenças nervosas”, inauguraram uma vertente de pesquisa que utiliza a interpretação de sonhos e a associação de palavras como formas de investigar os desejos ocultos do indivíduo. Neste contexto, fundou-se a Psicanálise, com um método de investigação que buscava desvendar o significado oculto do que é manifestado pelas ações, palavras ou produções imaginárias (como os sonhos, delírios, atos falhos, associações livres...).

Dentre as várias contribuições que os estudos de Freud trouxeram para a compreensão dos aspectos ligados à personalidade e ao desvendamento dos mecanismos que impulsionam os comportamentos dos indivíduos, está a definição da estrutura do aparelho psíquico. Na primeira concepção, elaborada em 190092, Freud identificou nesta estrutura a existência de três instâncias: o inconsciente, o pré-consciente e o consciente, às quais, com o desenvolvimento dos seus estudos, e na perspectiva de lhe inserir dinamicidade, foram acrescentadas, a partir de 1920, as noções de eu, super eu e isso.

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Aulas ministradas no programa de pós-graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais no primeiro semestre de 2017.

90Gottfried Wilhelm Leibnitz (1646 – 1716); Franz Anton Mesmer (1734 – 1815); Johann Friedrich Herbart

(1776 – 1841); Arthur Schopenhauer (1788 – 1860); Gustav Theodor Fechner (1801 – 1887); Jean Martin Charcot (1825 – 1893).

91Pierre Janet (1859- 1947), médico e psicólogo francês, desenvolveu estudos sobre neurose. De acordo com sua

teoria, a divisão da consciência é um traço primário da modificação mental na histeria. É baseada em uma fraqueza inata da capacidade de sínteses psíquicas, na estreiteza do "campo da consciência" (PEREIRA, 2008).

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A primeira perspectiva compreende o inconsciente – que é constituído pelos conteúdos reprimidos, o pré-consciente – instância na qual se situam os conteúdos que são acessíveis pela consciência – e o consciente, que recebe as informações e na qual se inserem o fenômeno da percepção, da atenção e do raciocínio.

A segunda proposta configura o psiquismo em uma estrutura dinâmica na qual o isso corresponde à zona inconsciente e instintiva a partir da qual se formam o eu (que é a zona fundamentalmente consciente) e o super eu (base da consciência moral, essencialmente inconsciente e pré-consciente) que age sobre o ego, pressionando-o, a fim de controlar o isso e decidindo o destino das pulsões.

Scharinger e Chatelard (2010, p.405) elencam de forma sucinta a trajetória do desenvolvimento desta teoria mencionando que

A partir dos estudos sobre histeria Freud começou a dar importância a um tipo de estado mental o qual ele denominou de inconsciente. Trata-se de um estado que faz lembranças importantes serem inacessíveis à memória provocando falta de inibição, lapsos de memória e falta de controle das associações segundo os estudos de Breuer e Freud em 1893. Implica-se a partir daí que muitos de nossos processos mentais são desconhecidos. Ou seja, há algo em nós mesmos que desconhecemos. A partir disso não somos mais sujeitos da consciência. Esta é a ideia central na psicanálise que fundamenta toda a obra de Freud.

Na outra perspectiva de pesquisas em psicologia profunda tem-se Carl Jung que esteve ligado à escola freudiana por vários anos, mas, por considerar que o inconsciente não era integrado apenas por “recalques”, como postulado pela Psicanálise, desenvolveu uma corrente de estudos denominada Psicologia Analítica. Jung (1978) diverge das proposições de Freud ao postular que o inconsciente possui todo o material psíquico que subjaz ao limiar da consciência (o que inclui todos os componentes psíquicos subliminais, incluindo as percepções). Esta perspectiva considera o indivíduo como um todo, rejeitando uma concepção fragmentária da personalidade, e busca auxiliar os pacientes a recuperarem a “unidade perdida” e a fortalecer a psique93

que é responsávelpor abranger todos os pensamentos, sentimentos e comportamentos conscientes e inconscientes. (HALL; NORDBY, 1973)

A psique, na perspectiva do Jung, é composta de numerosos sistemas e níveis, que, apesar de serem diversificados, são interatuantes, e pode ser distinguida em três níveis: a consciência, o inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo.

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Segundo o autor, a consciência é a única parte da mente conhecida diretamente pelo indivíduo que compreende quatro funções mentais (pensamento, sentimento, sensação e intuição), além de duas atitudes que determinam a orientação da mente consciente (extroversão e introversão). Neste nível, Jung identifica também a ocorrência do processo de individuação, que é o meio pelo qual uma pessoa se torna um “individuum” psicológico94

e que objetiva a autoconsciência, ou seja, o conhecimento de si mesmo. No processo de individuação identifica-se o ego, nome dado por Jung à organização da mente consciente, responsável por selecionar e eliminar materiais psíquicos visando a coerência da personalidade (HALL; NORDBY, 2003).

Segundo Jung (1985, p.4), a consciência constitui-se como uma película que cobre o inconsciente, cuja extensão é desconhecida: “um quinto, um terço, ou talvez metade da vida humana se desenrola em condições inconscientes”. O autor, que considera não ser possível lidar com os processos inconscientes devido a sua natureza intangível, o classifica em duas espécies: pessoal e coletivo.

Os conteúdos inconscientes são de natureza pessoal quando se pode reconhecer no passado seus efeitos, sua manifestação parcial ou sua origem específica. São partes integrantes da personalidade, pertencem ao seu inventário e tem fácil acesso à consciência quando necessário. Contém lembranças perdidas, reprimidas, evocações dolorosas, percepções que, por falta de intensidade, não atingiram a consciência. Possui a característica de reunir conteúdos para formar um aglomerado ou constelação (chamada por Jung de complexo).

O inconsciente coletivo, ao contrário dos anteriores, não é fruto das vivências do indivíduo. Corresponde a um reservatório de “imagens” (na realidade, embora Jung utilize frequentemente essa descrição abreviada, talvez fossem melhor descritos como a potencialidade para representar imagens – padrões estruturadores dessas representações mentais e do psiquismo) latentes (denominadas por Jung como primordiais) herdadas de um passado ancestral no qual estão incluídos todos os antecessores (humanos, pré-humanos ou animais). Conforme denomina Jung (1985a, p.57),

94Jung (2011, p. 275) usa o termo individuação no sentido do processo que gera um individuum psicológico, ou

Afora as recordações pessoais, existem em cada indivíduo, as imagens “primordiais”, como foram designadas acertadamente por Jakos Burckhardt, ou seja, a aptidão hereditária da imaginação humana de ser como era nos primórdios. Essa hereditariedade explica o fenômeno, no fundo surpreendente, de alguns temas e motivos de lendas se repetirem no mundo inteiro e em formas idênticas [...] Isso não quer dizer, em absoluto, que as imaginações sejam hereditárias; hereditária é a capacidade de ter tais imagens, o que é bem diferente.

De acordo com o autor, trata-se da camada mais profunda do inconsciente onde estão adormecidos os padrões estruturadores universais e originários, dos quais o cérebro humano está impregnado há milênios estando, por esse motivo, no inconsciente de todos e requerendo apenas certas condições para vir a tona. Denominadas inicialmente por Jung (1985a, 2011) como “imagens”, esses arquétipos são simultaneamente sentimento e pensamento, possuem vida própria e são facilmente encontrados nas expressões dos sistemas filosóficos, gnósticos, religiões e outras formulações apoiados nas percepções do inconsciente como fonte de conhecimento:

Qualifico a imagem como primordial quando ela possui caráter arcaico. E só falo de caráter arcaico quando a imagem apresenta uma concordância explícita com motivos mitológicos conhecidos. Neste caso, expressa, por um lado, sobretudo, os materiais derivados do inconsciente coletivo (JUNG, 1991, p. 418-419).

Verifica-se, portanto, na perspectiva de Jung, que o inconsciente contém, não só componentes de ordem pessoal, mas também impessoal e coletiva, sob a forma de categorias herdadas (ou arquétipos). Assim como os sonhos se definem como resíduos da infância ainda ativos no indivíduo, os mitos e os elementos do folclore se configuram para a psicologia profunda como a sobrevivência de um estado psíquico primitivo. Conforme menciona Guerriero, (2001, p. 26)

Acumulamos o saber de nossos ancestrais, reelaboramos esse conhecimento eliminando algumas partes e acrescentando o que descobrimos e inventamos e transmitimos tudo isso a nossos descendentes. Não nos limitamos apenas às nossas experiências, mas através da linguagem simbólica temos acesso também às experiências de nossos semelhantes. A capacidade de simbolização e criação cultural permitiu-nos constituir uma extraordinária característica: pensar no que não está presente diante de nossos olhos. Essa capacidade de abstração e transcendência possibilitou superar as limitações impostas pela natureza.

Nesse sentido, Eliade (1991) já mencionava que não é necessário conhecer a mitologia para se viver os grandes temas míticos, pois o inconsciente é a morada dos deuses, heróis, fadas e monstros mitológicos. Esse imaginário simbólico revela certos aspectos da realidade, sendo o que auxilia o sujeito a libertar-se, fazendo “explodir” a realidade imediata. Conforme destaca o autor (p.21), os símbolos e os mitos vêm de longe e fazem parte do ser humano, sendo impossível não reencontrá-los “em qualquer situação existencial do homem no Cosmos”.