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Capítulo 2 O conhecimento profissional do professor

2.3 Conteúdo e estrutura do conhecimento do professor

O conhecimento profissional do professor é eminentemente prático, mas sempre com uma base teórica, forte e adequada. Tal como foi referido anteriormente, o professor além de dominar o saber, tem de dominar o saber ensinar. É essencial aos professores conhecerem a matéria que ensinam e as representações que a tornam compreensível aos alunos (Borralho, 2002). Este facto contraria a máxima de Shaw, “Quem sabe, faz; quem não sabe, ensina”, referida e rejeitada por Shulman (1986), que a considera ofensiva para os professores. Este autor considera que os professores são possuidores de um saber dificilmente entendido por outros.

Carter (1990) considera o estudo das características do conhecimento prático e não o conteúdo desse conhecimento a grande contribuição da investigação educacional, no entanto, são vários os autores que se dedicaram ao estudo do conteúdo do conhecimento, assumindo como fundamental conhecer as suas especificidades.

Segundo Elbaz (1983), apesar do conhecimento do professor estar baseado no conhecimento teórico da disciplina, este conhecimento é analisado e filtrado pelos valores e crenças pessoais dos professores, originando um conhecimento que orienta a prática, que foi designado pela autora por conhecimento prático, e sobre o qual a autora afirma que este é um conhecimento sobre alguma coisa. O conhecimento prático está organizado em cinco áreas: conhecimento de si, conhecimento do ambiente de ensino, conhecimento do conteúdo, conhecimento do currículo e conhecimento do processo instrucional. Segundo a autora, o conhecimento de si refere-se à forma como os valores e os propósitos pessoais do professor se relacionam com o conhecimento. É nesta área que Elbaz (1983) relaciona o conhecimento do professor com a imagem que o professor tem da sua pessoa, da sua profissão, do seu papel na sala de aula e na escola, das suas capacidades e do tipo de autoridade e responsabilidade que assume. Na sua perspetiva, estes aspetos influenciam fortemente a forma como o professor aborda o conhecimento quando está a exercer a sua atividade profissional. Na segunda área, conhecimento do ambiente de ensino, inclui o conhecimento que o professor tem do meio profissional envolvente. Nesta área, está incluída, a sua experiência social na escola, o conhecimento da escola e do contexto em que está inserida e o conhecimento dos colegas e da aula enquanto espaço e

turma. O conhecimento do conteúdo engloba as especificidades da área disciplinar que o professor ensina, nomeadamente, o conteúdo, a capacidade de ensinar e a aprendizagem por parte dos alunos. Por último, surge o conhecimento do processo instrucional, este integra o conhecimento relativo sobre o modo como se pode desenvolver a aprendizagem dos alunos, a gestão e o desenvolvimento da interação na sala de aula.

A investigadora estrutura o conhecimento prático do professor em três níveis de generalidade: o das regras de prática, o dos princípios práticos e o das imagens. O primeiro nível consiste em regras de prática, ou seja, são ações específicas que regem situações frequentes na prática do dia-a-dia como, por exemplo, a organização de materiais e a distribuição de tarefas. O princípio prático abrange ações de nível mais geral, que têm como objetivo serem aplicadas a circunstâncias específicas e utilizadas na reflexão das mesmas. O terceiro nível é o das imagens que consistem em quadros orientadores gerais. As regras e os princípios dão corpo ao conhecimento do processo de ensino, enquanto as imagens orientam as tomadas de decisão. Dos três níveis de conhecimento, as imagens são as que consistem no conhecimento menos explícito e mais inclusivo, têm um carácter específico para cada professor e juntam experiências com conhecimento teórico e cultura de escola. Cada um destes modelos de conhecimento reflete diferentes formas de mediação entre o pensamento e a ação.

É notória a grande relevância que Elbaz (1983) dá ao autoconhecimento do professor, o que não acontece com todos os investigadores, no caso de Shulman (1986) o grande destaque é dado ao conteúdo disciplinar.

Shulman (1986) considera que a investigação está a deixar de lado questões fundamentais como: o que sabem os professores sobre os conteúdos que ensinam, as perguntas que devem realizar e as explicações que devem dar aos alunos em sala de aula, para que estes se consigam apropriar dos conteúdos lecionados. Em suma, o que o autor pretende é realçar a importância do conhecimento didático de conteúdo, na análise do saber dos professores. Inclusive o autor considera que o conteúdo do conhecimento docente tem estado ausente das recentes investigações em educação, chamando-lhe por isso o “paradigma perdido”.

Shulman (1987) organiza o conhecimento do professor para ensinar em sete categorias: conhecimento do conteúdo, conhecimento pedagógico geral (onde estão incluídos as estratégias e os princípios de gestão e organização da sala de aula), conhecimento do currículo, conhecimento pedagógico do conteúdo, conhecimento dos alunos e das suas características, conhecimento dos contextos educacionais e

conhecimento dos fins, propósitos e valores educacionais. Das sete categorias referidas três estão diretamente ligadas com a disciplina: o conhecimento do conteúdo, o conhecimento do currículo e o conhecimento pedagógico do conteúdo (Shulman, 1986), ou como refere Ponte (1995) conhecimento didático2, dado que associado ao mesmo está

sempre um conteúdo de ensino.

O conhecimento do conteúdo da disciplina “refere-se à quantidade e organização do conhecimento em si na mente do professor” (Shulman, 1986, p. 9). Este conhecimento implica ir mais além do conhecimento de factos ou conceitos; na realidade, implica atingir a compreensão das estruturas do conteúdo. Ao professor não basta compreender uma “coisa”, tem de compreender o porquê dessa “coisa” ser assim. É ainda fundamental que o professor consiga distinguir de entre os conteúdos disciplinares os essenciais dos acessórios, pois só assim é possível fazer uma gestão curricular adequada.

Segundo o autor, o conhecimento pedagógico do conteúdo é o conhecimento que permite ao professor transformar o conhecimento científico num conhecimento ensinável e compreendido pelos alunos. Neste contexto, Shulman (1986) afirma: “ainda falo aqui de conhecimento de conteúdo, mas de uma forma particular de conhecimento de conteúdo que inclui os aspectos do conteúdo mais relativos ao seu ensino” (p.9). Este conhecimento abrange representação de ideias, analogias, ilustrações, exemplos, explicações e demonstrações, ou seja, inclui a forma de representar e formular a matéria de modo a torná-la compreensível aos outros. Além disso, inclui ainda a compreensão das conceções e dos conhecimentos que os alunos de diferentes idades manifestam na aprendizagem. Em suma, é a interligação entre o conteúdo da disciplina e a pedagogia, com o principal objetivo de promover a compreensão de como se devem organizar, representar e adaptar tópicos específicos para o ensino, respeitando os interesses e as capacidades dos alunos (Borralho, 2002). Daí ser considerado um conhecimento fundamental para o professor, na medida em que permite antecipar os (des)entendimentos dos alunos em contextos educacionais específicos, com estratégias prontas a utilizar, como questões e/ou comentários previamente realizados, assim que os alunos demonstram estar com dificuldades em compreender alguma das matérias abordadas (Schoenfeld, 2005). Por exemplo, quando se está a lecionar, em álgebra, o caso notável: (𝑎 + 𝑏)2 = 𝑎2 + 2𝑎𝑏 +

𝑏2, um professor experiente consegue prever o erro cometido pela maioria dos alunos,

2 No presente estudo o conhecimento didático deve ser entendido como o conhecimento que permite ao professor transformar o conhecimento científico num conhecimento ensinável e compreendido pelos alunos (Shulman, 1986).

(𝑎 + 𝑏)2 = 𝑎2+ 𝑏2, podendo antecipá-lo, criando diferentes estratégias que possam levar o aluno a entender o seu próprio erro. Um caminho possível é questionar o aluno: “Por que não experimentas a tua fórmula com o a = 3 e o b = 4?”. Segundo Schoenfeld (2005), de acordo com Shulman (1986), este conhecimento ultrapassa o conhecimento pedagógico geral uma vez que está estreitamente ligado ao conteúdo disciplinar.

O conhecimento curricular envolve o conhecimento que o professor tem dos programas e de outros documentos curriculares, a sua articulação horizontal e vertical, os materiais adequados a determinados tópicos e as indicações metodológicas para a sua utilização (Shulman, 1986).

Simultaneamente às três categorias do conhecimento referidas anteriormente, Shulman (1986) estrutura o conhecimento em três formas distintas: o proposicional, o de caso e o estratégico.

O conhecimento proposicional é o mais comum e assume a forma de afirmações baseadas quer na investigação, neste caso designadas por princípios, quer na sabedoria prática, sendo designadas por máximas, quer ainda em valores éticos, onde são denominadas por normas. Um exemplo apresentado pelo autor como uma máxima assumida pelos professores é “nunca sorrias antes do Natal” (p. 11).

Seguidamente, surge o conhecimento de caso, que é um conhecimento de eventos bem documentados e descritos. “Os casos podem ser exemplos de aspectos concretos da prática – descrições detalhadas de como ocorreu um evento – completados com informação sobre o contexto, os pensamentos e os sentimentos” (Shulman, 1986, p. 11). Embora não sejam passíveis de generalização, do ponto de vista prático, podem ajudar a atuação do professor. Tal como anteriormente, também no conhecimento de caso são distinguidos, em protótipos, provenientes de princípios teóricos, em precedentes, baseados na prática e em parábolas, assentes em normas éticas. Também aqui o autor apresenta um excelente exemplo de um caso que pode ser visto simultaneamente como um precedente de gestão de aula, ou como um protótipo, cujo objetivo final é evitar reforçar positivamente comportamentos desadequados: um determinado professor, cujos alunos não traziam habitualmente lápis para a aula, obrigava os alunos em falta a trabalhar com um lápis minúsculo (trazido pelo próprio professor numa caixa própria) durante todo o dia, evitando assim emprestar-lhe um lápis normal ou permitir que estivesse a aula toda sem trabalhar. Por fim, é referido o conhecimento estratégico, que surge no confronto do professor em contradições de princípios, quando não há soluções fáceis para o problema.

Por exemplo, quando um professor deseja “ser amigo dos seus alunos” mas, simultaneamente, pretende manter a autoridade e a ordem na sala de aula.

Em suma, é imprescindível o professor conhecer bem os conteúdos que ensina, não da mesma forma que um cientista, mas sim de uma forma distinta deste, ou seja, o professor tem que dominar os conteúdos de tal forma que os consiga transformar tornando-os compreensíveis e relevantes para os alunos.

O trabalho realizado até este ponto mostrou uma ideia genérica do conteúdo do conhecimento do professor, em contrapartida a partir deste ponto o trabalho vai-se focar no conteúdo do conhecimento do professor de Matemática. De facto, parece haver um reconhecimento de que as limitações no conhecimento matemático dos professores podem interferir na sua capacidade de criar tarefas adequadas, além de poder dificultar a utilização de estratégias adequadas em sala de aula (Duarte, 2011). Professores experientes em comparação com professores com menor conhecimento matemático mostram ter maior capacidade de explicar o porquê de certos procedimentos, conseguindo mostrar de forma mais adequada aos alunos as relações entre os diferentes conceitos e a sua aplicação. Estes professores mostram também mais facilidade na envolvência dos alunos em atividades de resolução de problemas (Brown & Borko, 1992). Estes autores consideram a teoria de Shulman, e mais especificamente o conhecimento do conteúdo e o conhecimento didático, indispensável para a investigação sobre aprender a ensinar. Segundo os autores, o primeiro diz respeito ao conhecimento substantivo, relativo a factos e conceitos, e ao conhecimento sintático, relativo a regras e métodos, enquanto o segundo se refere ao conhecimento do assunto para ensinar, “consistindo da compreensão sobre como representar tópicos e questões de um tema específico sob formas apropriadas às diversas capacidades e interesses dos aprendentes” (Brown & Borko, 1992, p. 212).

Ponte e Santos (1998) e Ponte (1999a) assumem que o conhecimento profissional contém uma parte essencial que intervém diretamente na prática letiva. É um conhecimento fundamentalmente orientado para a ação e que se desdobra em quatro grandes domínios: o conhecimento dos conteúdos de ensino, ou seja, a Matemática, o conhecimento do currículo, o conhecimento do aluno, e o conhecimento do processo instrucional. Este conhecimento é o cerne do conhecimento profissional do professor no que se refere à sua prática letiva e está organizado em termos das suas conceções (Ponte, 2000). O conhecimento dos conteúdos de ensino inclui a terminologia e os conceitos utilizados, as conexões internas e com outras áreas disciplinares e os seus meios de raciocínio, argumentação e validação. O conhecimento do currículo engloba as

finalidades, os objetivos e a sua articulação horizontal e vertical. Além disso, é também aqui incluída a organização e utilização de materiais. O conhecimento do aluno engloba a forma como este aprende, os fatores que interferem na aprendizagem do conhecimento do aluno, nos seus interesses, e ainda as questões culturais e sociais que interferem de uma forma ou de outra no seu desempenho escolar. Por último, o conhecimento do processo instrucional, este diz respeito à preparação, condução e avaliação da prática letiva do professor, onde se inclui a estruturação da aula, as tarefas propostas e o discurso produzido. Este conhecimento é decisivo para a prática letiva do professor e está intimamente relacionado com vários aspetos do seu conhecimento pessoal e informal, da vida no dia-a-dia, como o conhecimento do contexto, na escola, na comunidade, na sociedade e o conhecimento que ele tem de si mesmo. Na sua maioria, este conhecimento é mais implícito do que explícito, e reconstrói-se em função das experiências que o professor vai vivendo e das situações de prática que vai enfrentando (Elbaz, 1983; Ponte, 2000).

Em suma, a atividade do professor exige que haja uma simbiose entre o conhecimento matemático científico e académico e o conhecimento de ordem educacional. Exige ainda o desenvolvimento das capacidades de análise, conceção, implementação e avaliação das opções de ordem prática, realizadas diariamente pelo professor (Ponte, 1999a).

Seguidamente, far-se-á uma análise conjunta, mais aprofundada do conhecimento matemático e didático do professor de Matemática por se considerar difícil estabelecer uma separação clara dos dois tipos de conhecimento, como será justificado posteriormente, do conhecimento curricular e das práticas de ensino. Quanto ao conhecimento dos alunos, e apesar de se considerar que este faz parte do conhecimento que os professores necessitam de ter (Canavarro, 2003; Duarte, 2011), optou-se por não o analisar em separado, na medida em que se considera que este conhecimento não existe isoladamente e tem uma forte relação com os outros, em particular com o conhecimento do currículo, uma vez que este tem “vindo a evoluir, atribuindo um novo papel aos alunos na forma como entendem a construção do seu conhecimento e aos professores, nas experiências que lhes devem proporcionar para promover a sua aprendizagem” (Duarte, 2011, p. 32).