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Contexto e espessura humana

Os factos aparentemente desconexos com que iniciei este texto foram publicados por mim, ao correr da vida, nos meus espaços públicos das plataformas sociais Facebook, Twitter, Google+ e LinkedIn. Além de- les, também publiquei outros ligados de forma mais óbvia à minha atividade profissional, como uma notí- cia sobre a forma como os algoritmos de seleção de publicações do Facebook estão a desagradar às empre- sas; expondo aspetos da preparação da conferência internacional SLACTIONS sobre mundos virtuais, que fundei e já por duas vezes organizei, com a cooperação de vários colegas e alunos; anunciando a oportuni- dade de alunos concorrerem com os seus trabalhos ao Federal Virtual Worlds Challenge, ou que um antigo aluno ganhou um prémio num concurso de programação para Windows 8.

Imaginemos agora que só publicava estes factos, mais claramente “profissionais”. Um perfil muito mais professoral, sem dúvida. Mas não poderiam os alunos, os colegas, igualmente encontrar esses factos sem a minha publicação? Claro que sim. E isso é o que têm se – imaginemos por instantes um ensino totalmente automatizado – assinarem (ou “subscreverem”, como por vezes se diz agora) fontes informativas várias, ligadas aos seus interesses. Mas irão reparar nesses factos mesmo que se deparem com eles? Irão dar-lhes relevo? Como irão enquadrá-los? Em que mudam os factos “profissionais” ao serem integrados com factos da minha vida ou da visão e preferências da minha pessoa?

A pergunta mais objetiva poderia ser: porque há de um aluno estudar algo? Já muitos autores têm debatido os deméritos do ensino que se foca na veiculação de factos e exercita métodos na convicção de serem os factos mais necessários e os métodos mais pertinentes à vida futura do aluno. Paulo Freire (1997), famo- samente, criticou-o como ensino “bancário”, baseado no depósito de algo nos alunos, para mais tarde po- derem “levantar” o “saldo” desse depósito. Há décadas ou séculos – desde que encontramos autores que refletem sobre o ensino – que constatamos a dificuldade de implementar este método. As propostas de abordagens pedagógicas tentam desde sempre combater essas dificuldades, com engenho de refinação ou mudança, ou convicções de reformulação ou revolução – ou recuperação de um passado idealizado.

Sabemos que a generalidade dos docentes é eclética nas suas práticas pedagógicas, envolvendo aspetos de propostas teóricas diversas. Assim, em lugar de atender a alguma proposta isolada ou a tentar atender a todas – manifestamente impossível neste espaço – apoio-me em ideias genericamente comuns a várias propostas, que se centram em conferir um significado mais imediato ao conteúdo das aprendizagens, seja ele factual ou metodológico. Penso nas metodologias de projeto, onde este é tema, motivo e alibi para o esforço de aprendizagem (Kilpatrick, 1951); nas abordagens por comunidades de práticas, onde a autorida- de crescente da periferia para o centro proporciona confiança ou motivação para esse esforço (Wenger, 1998); no construcionismo papertiano, onde o confronto com as exigências da construção de algo real seja confronto e teste às ideias e convicções, fonte de motivação para o aprofundamento das aprendizagens (Papert, 1999); na perspetiva ambiental de Bronfenbrenner onde o contexto pessoal, organizacional, social e cultural deve ser considerado e atuado, como fonte causal do esforço de aprendizagem (Bronfenbrenner, 1979); na visão de contínuo abstrato-concreto de Wilensky, onde o grau de abstração dos conceitos e méto- dos não depende deles, mas das formas de relação pessoal de cada pessoa com eles (Wilensky, 1991); na inspiração de Gee, que viu nos videojogos o veículo para reinterpretação pessoal e visão modificada sobre o mundo, como forma de encontrar significado e sentido para o esforço de aprendizagem (Gee, 2003); en- fim, em todas as perspetivas que não dão por assumido que uma pessoa – aprendente – parta desde o pri- meiro momento com uma vontade clara de dedicar à aprendizagem formal o esforço que ela exige. (E por isso não me baseio aqui nas perspetivas behavioristas/comportamentalistas, nem às cognitivistas, nem às de processamento de informação, por muito eficazes que sejam em contextos específicos.)

Estando estas visões pedagógicas ligadas a uma relação humana, entre um aprendente – ou desejado aprendente – e um tema ou um ensinante, temos de considerar aspetos de empatia, de significado mais profundo que o meramente objetivo e superficial. Creio que não é possível encontrar, para todos os concei-

merecedor de esforço e empenho. Especialmente por razões biológicas: o nosso cérebro não desenvolve métodos de raciocínio de forma imediata: necessita de exposição regular a contextos de atuação e informa- ção específicos para isso. Por exemplo, a mera aprendizagem da leitura em criança – por oposição a essa aprendizagem após alcançada a idade adulta – está correlacionada com formas de funcionamento estrutu- ralmente diferentes do cérebro, mesmo em atividades não ligadas à leitura (Castro-Caldas, 2004). Se o cérebro se molda funcionalmente ao longo do tempo, não é totalmente correto – é em certa medida uma falsidade – apresentar valores imediatos como fonte essencial de motivação para o esforço de aprendiza- gem. Para grande parte do caminho de aprendizagem, temos de decidir segui-lo com base numa decisão de confiança, de esperança nesse caminho, não numa visão clara e imediata da sua utilidade ou validade. Reflito assim sobre o papel do docente na promoção das condições para estas decisões pessoais dos alunos: da necessidade, valor ou desejo de dedicar o seu esforço. Reflito sobre a engenharia do contexto onde essa decisão – essa decisão contínua – tem lugar, segundo a perspetiva de Dias de Figueiredo. O docente é um ator, uma peça muito relevante nesse contexto. Reflito sobre a fotografia de um polvo grelhado que parti- lhei, em frente aos olhos do aprendente, que a viu sobreposta mentalmente à ideia difusa do docente, se- gundo a perspetiva do contexto desse momento: essa fotografia e o texto que a acompanha, o “like”/”gosto” ou comentário noutra publicação do Facebook, o retuíte no Twitter, o “+1” do Google+, outras partilhas recentes ou que tenham ficado frisadas nesse aprendente, como os problemas das afinações algorítmicas do Facebook ou o grito de BRIOOOSA que ganhou ao Atlético de Madrid – e a alegria e exposição humana que contém. Este conjunto desconexo de elementos não é de um livro ou de uma máquina: é de uma pes- soa. É isso que faz do docente alguém mais do que a figura no corredor, a fotografia no sítio Web, o profes- sor que gere uma aula e depois desaparece: fá-lo mais pessoa. Dá-lhe mais espessura humana. Enquadra ou ladeia as suas atuações, intervenções – altera o contexto. E, lanço a hipótese – pode ser fator de empatia humana, a partir da qual se possa gerar com os alunos um cerne de confiança ou esperança na validade de um caminho – ou de outro – na virtude de dedicar esforço à aprendizagem, na construção de uma coopera- ção mais estreita entre docente e discente. Ou, aplicada a outros contextos sociais, na construção de uma cooperação mais estreita entre colegas, entre cidadãos, entre a humanidade em geral.

Contradições

A ideia que avancei como hipótese não deixa de enfrentar várias contradições. Logo a um nível humano, a pessoalização do professor pode criar empatia, mas também pode criar atritos: as preferências, gostos, opiniões que extravasam as temáticas profissionais podem facilmente ser fonte de desacordo mais ou me- nos sério. As possibilidades de ocorrerem mal-entendidos, de equívocos, enfim de más decisões, deslizes e infelicidades naturais da vida humana. Voltemos ao polvo de sabor tradicional na tasca: pode ser interpre- tado como uma apreciação dos sabores tradicionais; mas também (por usar-se a palavra “tasca”) como uma presunção de contenção financeira por parte de um docente, que aufere um rendimento superior à média da população; ou, se visto por alguém enquanto come da sua marmita e se sente frustrado por ter acabado de receber um recibo de vencimento com um corte, como origem de inveja por ser um momento de alguém que ainda pode almoçar fora. Pode ainda ser fonte de asco para algum vegan mais radical na apreciação alheia, fonte de irritação por ser uma trivialidade para alguém que as despreze, entre muitos outros pontos negativos que possam surgir, no contexo de quem vê a partilha.

Outra contradição – um aspeto que tem sido realçado recentemente em trabalhos da investigadora Sherry Turkle – é a relação entre os momentos de partilha e os de privacidade, ou dito de outra forma, entre a imersão social total e a solidão e recolhimento ocasionais necessários a momentos de reflexão. Estaremos, nas palavras delas, sozinhos juntos (Turkle, 2011)? Estaremos a optar por nos recolhermos nos contactos e partilhas on-line, em detrimento do investimento pessoal? E não causará um contexto estranho, incoeren- te, alguém que partilha sistematicamente e depois se recolhe prolongadamente? Não causará, por exemplo, preocupação pela ausência (“será que lhe aconteceu algo?”); ou frustração e irritação pelo silêncio (“está sempre disponível mas não agora não está para participar nisto”); ou desconfiança pela privacidade (“sei que está por ali mas nada diz… curiosa constatação…”)?

Finalmente, a contradição final é que a quantidade de factos partilhados não é adequada simultaneamente a todas as pessoas que os possam receber: nos fluxos lineares das plataformas sociais atuais, alguém que publique regularmente pode tornar-se demasiado presente para alguns destinatários, que seguem as plata- formas com menos regularidade, mas insuficientemente presente para outros, que as seguem em perma- nência. Pode ser sobrepujante para quem as segue numa perspetiva informal e de convívio, e irrelevante ou

fútil para quem as segue de forma mais utilitária ou reflexiva. Mas note-se que nesta contradição o proble- ma não está no contexto de quem partilha – o partilhador – mas no contexto de quem pode receber essa partilha, contexto que pode ser desconhecido do partilhador!