• Nenhum resultado encontrado

Contextualização e instrumentos de atuação concertada precedentes: Estados Unidos da América e França

SUMÁRIO

7. CONCLUSÃO: OPERAÇÕES URBANAS CONSORCIADAS COMO MODELO COMPLEXO DE PLANEJAMENTO E DE GESTÃO URBANOS

2.1. Contextualização e instrumentos de atuação concertada precedentes: Estados Unidos da América e França

As operações urbanas surgiram no Brasil a partir de conceitos que podem ser atribuídos a diferentes origens. É possível inferir que possuem elementos da experiência norte-americana de parceria público-privada, surgida na década de 1970 com o Community Development Block Grants e o Urban Development Action Grants, e

posteriormente, as Enterprises Zones (COTA, 2010, p. 140 e 141), e da experiência francesa coeva das Zones D’Aménagement Concerté4 (BRASIL, 2009, p. 11).

Os Estados Unidos da América, assim como outros países centrais, inseriram- se em uma reorientação política na década de 1970, baseada na parceria entre setor público e setor privado como mecanismo para implementar projetos de urbanização e transformação urbana ou para viabilizar a implantação de infraestruturas e equipamentos coletivos. As formas de intervenção do Estado na organização do espaço urbano sofreram diversas alterações, com o intuito de proporcionar flexibilização das normas jurídicas e das programações de investimentos, muitas delas presentes nos planos diretores de ordenamento físico-territorial, e novas alternativas de relacionamento entre setor público e setor privado (COMPANS, 2005, p. 81)5.

A origem da parceria público-privada americana, que se replicou em outras partes do mundo, baseia-se na alteração da situação da economia global e na crise fiscal e financeira, fatores que impulsionaram os governos locais a promoverem concessões economicamente vantajosas ao capital. Os governantes viam as parcerias, ou a própria “dependência” dos recursos do setor privado (FIX, 2001), como alternativa para atenderem demandas necessárias ao crescimento das cidades frente à escassez de recursos configurada à época. A parceria com o setor privado acabou sendo considerada pelas administrações públicas como a única, ou a mais provável, fonte de financiamento disponível para a renovação urbana.

A revisão do modelo da política urbana norte-americana ocorreu na iminência do esgotamento da forma de desenvolvimento fordista e da crise fiscal do Estado. O período foi marcado pelos primeiros sinais de estagnação econômica, tais como a decadência de atividades portuárias e o fechamento de número significativo de indústrias. O país estava sob o governo de Richard Nixon (gestão 1969-1974) como presidente, que declarou, em 1973, a falta de recursos para intervenção nas cidades, com a finalidade de contenção da crise urbana. Foram assumidas limitações dos sistemas nacionais para combate à pobreza e para oferta de habitações, assim como para assistência a outras necessidades da população. As responsabilidades dos governos locais, sobretudo na prestação de serviços sociais e na promoção de desenvolvimento, passariam, contudo, a ser mais cobradas pela população daquele país.

4 As traduções mais comuns para a expressão zones d’aménagement concerté nas referências bibliográficas pesquisadas são “zonas de ocupação concertadas” ou “zonas de ordenação concertadas”. Será adotado, entretanto, conforme ressaltado anteriormente, o termo em francês nesta tese.

5 As alternativas de intervenção do Estado no planejamento urbano por meio da flexibilização das concepções territoriais e das normas que regulamentam a atuação no espaço e a viabilização das parcerias com o setor privado foram disseminadas para os países europeus na década de 1980.

[...] foi durante o governo de Ronald Reagan6 que a parceria público-privada se tornou um instrumento para a efetivação dos programas de interesse do poder público, em resposta à crise econômica e à penúria financeira dos governos locais. Esses governos ampliaram o uso de instrumentos fiscais para estimular as atividades privadas em novas construções; passaram a oferecer contrapartidas em terrenos, infra-estruturas e regras mais flexíveis, para viabilizar empreendimentos em áreas estratégicas para o desenvolvimento econômico – a exemplo das Enterprises Zones, áreas que tinham regime jurídico e urbanístico diferenciado; e formaram parcerias com empresas privadas, para a promoção de projetos de desenvolvimento urbano (COTA, 2010, p. 140-141, grifo da autora).

A parceria público-privada foi viabilizada pela implementação de novos instrumentos de planejamento urbano e pela abertura à participação do setor privado na gestão da cidade. Agências de desenvolvimento como a Economic Development Corporation, de Nova York, a Minneapolis Community Development Agency e a Office of Communit Development, de São Francisco, foram formadas para implementar e garantir os privilégios das parcerias aos investidores.

Essas instituições eram, geralmente, presididas por pessoas escolhidas pelo Prefeito, apesar de não integrarem a Administração Municipal, e tinham Conselho Administrativo composto por representantes oriundos do setor privado. As organizações obtinham financiamento por meio de contratos e eram dotadas de atribuições como as seguintes:

[...] escolher terrenos para novos empreendimentos, definir programas financeiros, melhorias da infraestrutura e vantagens a serem acordadas com os investidores, além de negociar contrapartidas como a melhoria dos transportes públicos, a manutenção do nível de emprego, a formação profissional dos trabalhadores ou ações concernentes à preservação do meio ambiente (COMPANS, 2005, p. 85).

A abertura à participação dos detentores do capital imobiliário no meio urbano significou a captação de recursos, entretanto, concomitantemente, surgiram processos de subordinação das ações públicas ao capital, que acabava por definir as regras para investimentos. Os interesses dos investidores, a partir da reprodução imobiliária no solo urbano, estariam vinculados à completude da infraestrutura instalada, normalmente mais qualificada em lugares centrais ou passíveis de constituírem centros.

Outra situação criada por essa lógica de formação das parcerias, citada por Compans (2005, p. 86), foi a alteração da escala de planejamento urbano. As ações de planejamento e de intervenções não se voltavam mais para amplas zonas, mas consistiam em projetos limitados a áreas específicas, tais como “a revitalização de áreas centrais, a renovação de antigas zonas industriais e portuárias, a construção de

teleportos, etc”. O Poder Público passou a subordinar decisões à lógica do capital e, por conseguinte, a abandonar, gradativamente, o planejamento normativo, elaborado pelos planos diretores e pelas leis de zoneamento, para formatar acordos “projeto a projeto” com os interessados em investir na cidade.

De fato, nas cidades americanas as parcerias tiveram êxito como instrumento de planejamento urbano, mostrando-se eficazes ao promoverem a revitalização de áreas degradadas. As revitalizações urbanas americanas acabaram por alavancar oportunidades, otimizando a arrecadação tributária e atraindo empreendimentos potencializadores das possibilidades econômicas dos lugares em que foram implantadas, constituindo a forma encontrada pelas administrações das cidades para enfrentar a competitividade global e garantir as condições para a atração de capital, em um contexto de crise fiscal e financeira (COTA, 2010, p. 141-142, grifo da autora).

Convém ressaltar, entretanto, que as políticas de desregulação e as parcerias que disponibilizavam partes das cidades à escolha do mercado para intervenção geravam segregação socioespacial. A periferia, desinteressante ao capital, não recebia as qualificações necessárias à solução dos problemas que reunia.

A experiência francesa das zones d’aménagement concerté7 foi instituída em 1967 e reformulada em 1977. A partir da Loi Relative à La Solidarité et au Renouvellement Ubains, aprovada em 13 de dezembro de 2000, as ZACs passaram a ser atreladas a um plan local d’urbanisme, o principal plano urbanístico no âmbito comunal instituído na França, que lhes serve como norteador de implementação. O PLU contém diretrizes estruturantes e regras urbanísticas gerais para a cidade (HÔTE, 2009, p. 97). O artigo L 311-1 do code de l’urbanisme define o instrumento:

As zonas de ordenação concertada são zonas no interior das quais uma coletividade pública ou um estabelecimento público competente devem intervir para realizar ou fazer realizar a ordenação e a implementação de equipamentos nos terrenos, em especial aqueles que a comunidade ou o estabelecimento tenha adquirido ou que venha a adquirir, a fim de cedê-lo ou licenciá-lo para usuários públicos ou privados (OLBERTZ, 2011, p. 124)8.

A denominação do instrumento francês faz referência à demarcação de uma zona, um perímetro onde um mecanismo de transformação será empregado, e não à operação de parceria em si. A delimitação de uma área como ZAC implica a qualificação urbanística de um setor da cidade por meio de concertação público- privada organizada por um complexo processo de responsabilidade do Estado, contemplando participação da população envolvida, e com ações determinadas para

7 As condições de planejamento e implementação das ZACs não serão abordadas em detalhe nesta parte da pesquisa, por ser este assunto tratado na Subseção 6.1 desta tese. Serão abordadas, no presente ponto deste trabalho, certas características do instrumento francês de intervenção no território com o intuito de indicar sua possível influência para a conformação das operações urbanas brasileiras.

serem executadas por sociedades de economia mista, investidores públicos e privados.

O mecanismo de implantação das ZACs requer intervenção direta do Estado na propriedade privada. O Governo, geralmente, adquire, por meio de prioridade de compra ou de desapropriação, os imóveis do perímetro em que deseja promover o projeto urbanístico. As melhorias estruturais e o remodelamento da área são feitos e os terrenos são vendidos a órgãos públicos com responsabilidade em políticas setoriais (educação, saúde, áreas verdes) e a empreendedores privados nos setores da operação destinados a equipamentos públicos ou à livre comercialização. Os recursos angariados destinam-se a cobrir os custos necessários às intervenções e, usualmente, para auxiliar na produção de moradias.

Montandon (2009, p. 28) não concorda que a experiência francesa com as ZACs tenha influenciado incisivamente a concepção de operações urbanas no Brasil, ao contrário de outros autores, como Olbertz (2011) e Maricato e Ferreira (2002). Argumenta que, no formato francês, o Estado é o investidor primeiro das obras, não dependendo preliminarmente dos recursos privados para financiar as intervenções, e que a recuperação da mais-valia dá-se depois da implantação do projeto urbano. Outra diferença levantada por Montandon (2009) é a de que a mais-valia, no instrumento francês, é gerada pela valorização dos terrenos por meio das intervenções físicas para melhoria das localidades, e não por alterações de regras legais de ocupação da área, tal como pode ocorrer nas operações urbanas brasileiras. Convém ressaltar que a França possui um instrumento específico para recolhimento de contrapartida derivada do aumento do potencial construtivo por um mecanismo denominado plafond legal de densité (PLD)9. Montandon (2009) destaca a influência da lógica dessa ferramenta na construção do princípio do solo criado no Brasil, instrumento discutido na próxima subseção desta tese.

Mesmo com essas diferenças, a experiência de concepção das ZACs e a forma de parceria que promovem podem ter influenciado o tipo de relação entre ente público, sociedade e capital na concepção das operações urbanas no Brasil. Trata-se de um instrumento de conceituação preliminar às experiências brasileiras conhecido por técnicos, acadêmicos e gestores públicos que participaram das discussões sobre

9 O plafond legal de densité – teto legal de densidade – é definido para todo o território francês, com o propósito de limitar o potencial de edificação e permitir, com essa medida, maior controle no preço da terra e organização do adensamento construtivo. A construção acima do limite estabelecido pelo instrumento apenas pode ser executada sob a condição de pagamento de contrapartida. Os recursos arrecadados com o pagamento pelo potencial construtivo adicional são revertidos em estruturação da cidade, preservação cultural e ambiental, produção de moradia de interesse social, entre outras benfeitorias públicas.

reforma urbana no País, pessoas que influenciaram a criação de novos conceitos presentes na CF/88 e no EC, com lógicas semelhantes.

2.2. Do princípio do solo criado no Brasil à incorporação das operações