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Contradição no sistema e coerência lógica: definição de “antinomia”

O sistema jurídico pode ser descritivo, permeado pelo functor “ser”, a constituir o sistema da Ciência do Direito em sentido estrito, e pode ser prescritivo, manifestando-se mediante o functor “dever-ser”, caracterizando o sistema do direito positivo. Dois sistemas diversos. O primeiro articula-se com proposições teoréticas verdadeiras ou falsas e a contradição é um erro capital, inadmissível, e tem na lei lógica da não-contradição um de seus fundamentos mais firmes; sua violação tolhe o apelo de seu produtor. Já o segundo, sendo um sistema proposicional prescritivo, carece de obediência às leis lógicas e concebe a contradição como algo acidental em seus elementos válidos; o conflito é possível. Se as leis lógicas fossem normas, seriam suscetíveis de serem ab-rogadas por normas de direito positivo.228

O conflito se apresenta de forma tão corriqueira nos sistemas de direito posto que os ordenamentos normalmente positivam sobrenormas para solucionar estas antinomias e garantir sua efetividade. São normas que tratam de outras normas, regulando a conduta do agente competente para que este possa determinar qual das normas deve ser imposta. O próprio sistema, implícita ou explicitamente, fornece o critério de escolha e estabelece uma sobrenorma N’’’, em nível superior, quando da contradição entre as normas N’ e N’’.229

No conflito encontra-se a coexistência de duas ou mais normas válidas e vigentes passíveis de incidirem sobre um mesmo evento e, consequentemente, darem causa a um mesmo fato jurídico o estabelecimento de relações jurídicas conflitantes. Para Riccardo Guastini, “há uma ‘antinomia’ quando a uma mesma hipótese são ligadas duas (ou mais) conseqüências jurídicas”230.

Noberto Bobbio define a antinomia como aquela situação em que há uma contradição ou contrariedade, desde que pertençam ao mesmo ordenamento e tenham o mesmo âmbito de

228 VILANOVA, Lourival. Estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. 3. ed. São Paulo: Noeses, 2005, p.

180 et seq.

229 Id. Causalidade e Relação no Direito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1989, p.126.

validade (temporal, espacial, pessoal, material).231 Tércio Sampaio Ferraz Jr. elabora uma definição semelhante:

Podemos definir, portanto, antinomia jurídica como a oposição que ocorre entre duas normas contraditórias (total ou parcialmente), emanadas de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo, que colocam o sujeito numa posição insustentável pela ausência ou inconsistência de critérios aptos a permitir-lhe uma saída nos quadros de um ordenamento dado.

Esta situação pode ser observada, novamente, a partir de dois sistemas de referência distintos. O participante do sistema de direito positivo, tendo que decidir sobre se deve obedecer à prescrição N’ ou N’’, não tem outra saída senão utilizar-se da norma N’’’ para, inicialmente, resolver o conflito e, só então, agir conforme a norma que entendeu prevalecer segundo o próprio sistema. Neste caso, é possível dizer que, como o sistema se autorregula e preestabelece critérios de solução, internamente não há contradição. Isso porque uma decisão obrigatoriamente tem que ser tomada para agir ou omitir. A situação se verifica seja para o participante tomar a atitude quanto para o Poder Judiciário ao ter que solucionar um conflito de interesses, quando dois sujeitos discordam sobre a interpretação na norma N’’’, por exemplo.

O observador, no entanto, ao olhar o sistema e reconhecer que as normas N’ e N’’ prescrevem contraditoriamente e mesmo tendo acesso à mesma norma de solução de conflito N’’’, pode entender que há contradição, como no caso de sustentar erro em decisões proferidas pelo Poder Judiciário ou na inconstitucionalidade de leis produzidas pelo Legislativo. Assim, afirma uma contradição interna e a sustenta insolúvel.

Segundo Hans Kelsen, “um conflito de normas não é nenhuma contradição lógica e, em geral, nada que possa ser comparado com uma contradição lógica.”232. Na obra do autor originário de Praga, realiza-se uma distinção interessante entre contradição e oposição. Afirma-se que na primeira situação um dos enunciados jurídicos em contradição sempre foi falso e sua verdade não pode ser abolida porque nunca existiu desde o princípio. Ao contrário, não sendo a norma passível de valores de verdade ou falsidade, mas de validade ou invalidade, o conflito entre N’ e N’’ é apenas um caso indesejado, não obstante possível e

231 BOBBIO, Noberto. Teoria geral do direito. 3. ed. Trad. Denise Agostinetti. Revisão da trad. Silvana Cobucci

Leite. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 246.

232 KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas. Trad. José Florentino Duarte. Porto Alegre: Sergio Antonio

comum. O raciocínio impressiona, porém parte de premissas diferentes das adotadas neste estudo, ao distinguir proposição jurídica de norma jurídica. Não se vê qualquer impedimento em tratar da contradição não apenas em proposições aléticas, mas também em proposições jurídicas, entendidas estas como sinônimo de normas jurídicas.233

Seguindo os ensinamentos de Guibourg e estabelecendo a relação de analogia entre a lógica alética e lógica deôntica234, é possível estabelecer algumas conclusões que indicam a existência de antinomias em casos de contradição e contrariedade de duas ou mais nromas, nos termos definidos por Noberto Bobbio235.

Contradição ou contraditoriedade é uma relação entre duas proposições opostas em que uma é necessariamente verdadeira e outra necessariamente falsa. Já a contrariedade é uma relação entre duas proposições em que ambas podem ser falsas, mas não é possível que ambas sejam, concomitantemente, verdadeiras. Essa relação torna-se mais facilmente identificável na chamada tabela de oposição da Lógica, assim disposta:

As letras maiúsculas “O”, “V” e “P” representam, respectivamente, os modais obrigatório, proibido e permitido. O “p” minúsculo é a simbolização de qualquer conduta, enquanto o símbolo “-” indica o operador da negação. Assim, lê-se: “Op” obrigado a

233 Kelsen distingue a proposição jurídica, juízo realizado pelo cientista, da norma jurídica, que não são

enunciados sobre um objeto dado ao conhecimento, mas comandos, permissões e atribuições de poder ou competência. (Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 80/81). Lourival Vilanova explica: “Mas a proposição jurídica (a rule of law, ou a Rechtssatz), em sua teoria [de Kelsen], passa do nível de norma para o nível de proposição sobre norma com somente mudar o sentido (cognoscivamente fica no descriptive sense). Cremos acertado dizer: “a mudança é tão-somente pragmática, não sintática, nem semântica, como veremos. Reside no uso que se faz o enunciado normativo, o que indica sua relação com os usuários e com o contexto.” (VILANOVA, Lourival. Analítica do Dever-Ser. In: ______. Escritos jurídicos e filosóficos. v. 2. São Paulo: Axis Mundi; IBET, 2003).

234 ECHAVE, Delia Tereza; URQUIJO, Maria Eugenia; GUIBORG, Ricardo. Lógica, proposición y norma.

Buenos Aires: Astrea, 2008, p. 127 et seq.

235 BOBBIO, Noberto. Teoria geral do direito. 3. ed. Trad. Denise Agostinetti. Revisão da trad. Silvana Cobucci

realizar a conduta; “V-p” proibido não realizar a conduta; “Pp” permitido realizar a conduta; “P-p” permitido não realizar a conduta.

A linha horizontal superior representa a contrariedade entre as proposições lógicas Op e Vp. Isto porque não é possível estar, ao mesmo tempo, obrigado e proibido a realizar a mesma conduta, apesar de ser possível que não haja obrigação ou proibição quanto à mesma conduta, sendo permitido fazê-la e não fazê-la. Ao ferir esta lei lógica tem-se um caso de antinomia por contrariedade.

Já as linhas diagonais no centro relacionam a contradição dos extremos, ou seja, são contraditórios, de um lado, Op e P-p e, do outro, Vp e Pp. Em outras palavras, ou se está obrigado a realizar uma conduta ou se está permitido não a realizar; ou é proibido realizar a conduta ou é permitido realiza-la: uma modalização sempre vigente, enquanto a outra nunca o será: a vigência, em determinado instante, não pode ser concomitante. Violar esta lei indica um caso de conflito de normas por contradição.

Em acréscimo, a subalternação, linha horizontal inferior, é a possibilidade lógica de ambas serem concomitantemente válidas, mas nunca inválidas ao mesmo tempo. As linhas verticais da esquerda e da direita demonstra a subalternação, respectivamente, entre os modais Op e Pp de um lado e Vp e P-p do outro, segundo a qual o superiores (Op e Vp) são os subalternantes e os inferiores (Pp e P-p) são os subalternos. As subalternações são leis lógicas em que a validade da primeira proposição é condição suficiente para a validade da segunda enquanto que a validade da segunda é condição necessária para a validade da primeira.

Não obstante ser uma lei lógica deôntica, repisa-se, o direito positivo não é um sistema nomológico, e sim nomoempírico, admitindo violações a leis lógicas. A contradição e a contrariedade podem e não raro fazem parte de sua feição. Estas leis deônticas, contudo, servem de instrumento para facilitar a constatação de conflitos de normas no sistema e, consequentemente, sua solução para que o sujeito não fique em posição insustentável nos quadros de um ordenamento dado.