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1.6 Incidência de normas e aplicação do direito

1.6.1 Evento, fatos e fato jurídico

A incidência da norma e a aplicação do direito, tomadas como sinônimos, contudo, exigem a adoção mais uma premissa, qual seja a diferenciação entre evento, fato e fato jurídico. Trata-se de um corte metodológico de teoria geral do direito que vem permitindo avanços céleres e profundos na análise do direito e que tem sido de extrema fertilidade em sua adoção no campo do direito tributário e explica algumas das definições já adotadas quando da classificação da norma jurídica e da exposição da norma de tributação.

A possibilidade de expressar linguisticamente que houve uma ocorrência no tempo e no espaço é enunciar um fato. Aquilo que o fato relata é um evento. Esta é uma distinção de extrema utilidade adotada tanto por Paulo de Barros Carvalho67 quanto por Tércio Sampaio Ferraz Jr.68 ao se referirem ao relato linguístico de uma ocorrência no tempo e no espaço como fato, enquanto aquilo que o fato narra é o evento ou, mais precisamente, uma parte do evento escolhida pelo narrador. Isto porque, por ser um objeto da experiência, o evento não pode ser captado em todas as suas vertentes. Uma vez ocorrido, não se pode mais apreendê-lo, apenas sendo passíveis de verificação os relatos daqueles sujeitos que o presenciaram ou as marcas que remanesceram de sua ocorrência.

Tércio Sampaio Ferraz Júnior leciona que “‘Fato’ não é, pois, algo concreto, sensível, mas um elemento linguístico capaz de organizar uma situação existencial como realidade”69. E na organização desta realidade, deve-se voltar, sempre, para o passado: é um relato daquilo que aconteceu e exclui, pois, o futuro.

É assim que de um evento pode-se construir fatos jurídicos, fatos sociais, fatos econômicos, fatos políticos. O resultado dependerá dos detalhes da ocorrência escolhidos pelo observador para o relato e sua competência para tanto, v.g. o nascimento de uma criança será um fato social quando os pais informarem aos familiares e amigos; será um fato sociológico, ao constar em pesquisas referentes à taxa de natalidade; será um fato jurídico se registrado em cartório, porque esta é a linguagem competente prevista pelo direito. Pode-se dizer que se predica o fato mediante o foco dado ao relato linguístico de um evento. É neste sentido que

67 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 6. ed. São Paulo:

Saraiva, 2008, p. 101.

68 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6. ed. rev.

amp. São Paulo: Atlas, 2008, p. 244.

Paulo de Barros Carvalho afirma o absurdo da interpretação econômica do fato jurídico tributário:

Existe interpretação econômica do fato? Sim, para os economistas. Existirá interpretação contábil do fato? Certamente, para o contabilista. No entanto, uma vez assumido o critério jurídico, o fato será, única e exclusivamente, fato jurídico; e claro, fato de natureza jurídica, não econômica ou contábil, entre outras matérias. Como já anotado, o direito não pede emprestado conceitos de fatos para outras disciplinas. Ele mesmo constrói sua realidade, seu objeto, suas categorias e unidades de significação.70

Fato jurídico deixa de ser a parte colorida do suporte fáctico que nasce automaticamente com a incidência, antes da aplicação. No constructivismo lógico semântico, o fato jurídico passa a ser um relato linguístico de uma ocorrência social prevista pelo e conforme o direito e apenas encontra sua gênese na aplicação, logicamente simultânea à incidência, realizada pelo agente competente. Não antes. Não depois. O fato jurídico apenas o é quando assim reconhecer o homem. Enquanto o fato jurídico é o relato linguístico, o evento jurídico é o relatado.

Relevante para a constituição do fato jurídico é a teoria das provas exatamente por permitir estabelecer a relação entre a verificação dos eventos, fora do mundo do direito, com as prescrições abstratas jurídicas. Fato jurídico sem prova ou não suficientemente provado é fato viciado, anulável, pois requer, sempre, linguagem competente e verificável, ou seja, linguagem das provas. Apenas pelas provas em direto admitidas ter-se-á por ocorrido o evento jurídico e encontrar-se-á fundamento de validade para seu relato a constituir licitamente o fato jurídico tributário.71

Ao se diferençar evento de fato, sendo aquele impossível de apreensão em todas suas infinitas e irrepetíveis nuances e este obtido mediante corte metodológico ao ser relatado em linguagem pelo sujeito competente, tem-se que reconhecer que a incidência depende, exclusivamente, da ação do homem e implica, necessariamente, a aplicação para ser prescritiva.72

No caso, o fato jurídico (antecedente concreto de uma norma jurídica em sentido estrito) é a tradução daquele mesmo evento em linguagem jurídica fundamentado nas provas

70 CARVALHO, Paulo de Barros. O absurdo da interpretação econômica do “fato gerador” – direito e sua

autonomia – o paradoxo da interdisciplinaridade. Revista de Direito Tributário, n. 97, 2007, p. 16.

71 TOMÉ, Fabiana Del Padre. A Prova no Direito Tributário. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2008, p. 35. 72 ARAÚJO, Clarice von Oertzen. Incidência Jurídica: Teoria e Crítica. São Paulo: Noeses, 2011, p. 116.

em direito admitidas e que se subsome ao antecedente abstrato de outra norma jurídica em sentido estrito. Neste sentido, vertido o evento jurídico em fato jurídico, a incidência tributária também pode ser vista como automática e infalível, pois simultânea à aplicação do direito: incidência e aplicação implicam-se mutuamente.

Conclusivamente, pode-se definir, para os fins desta dissertação, fato jurídico como o relato em linguagem competente conforme previsão do direito positivo, ou seja, deve ser produzido por autoridade e procedimento adequados e em consonância com a teoria das provas73. E aquela ocorrência no mundo social relatada pelo fato jurídico é chamada de evento jurídico.