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4. POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA ESTUDANTIL DO IFPI: trajetória institucional e

4.1 O contexto do Campus Parnaíba do IFPI

4.2.2 Contrapartida do estudante

A noção de contrapartida é uma tendência das políticas sociais atuais, especialmente norteadas pelo princípio da focalização. Nessa perspectiva, o público alvo dos programas sociais é selecionado com base em determinados critérios e, quando inseridos, assumem determinadas responsabilidades, compromissos individuais, como condicionalidades para a manutenção do benefício. Na fala dos sujeitos, a questão da contrapartida emerge da seguinte forma, primeiramente para estudantes.

Assim, de início eu fui bolsista da assistência mesmo, mas aí depois eu migrei pra de trabalho. Foi bastante boa a experiência, principalmente a do trabalho, porque você está ali fazendo alguma coisa e está recebendo um dinheiro, mas você está recebendo dinheiro, mas por estar merecendo mesmo, porque você está ali trabalhando e tal... sem falar também da experiência que eu adquiri naquela parte de trabalhar, porque até então eu nunca tinha tido de estar em um ambiente, ainda mais um ambiente como o IFPI, um ambiente de trabalho assim... foi positivo, gostei bastante sim. Pena que hoje em dia não tem mais (Estudante IV).

O Estudante IV relata sua experiência como beneficiário da assistência estudantil em sua trajetória acadêmica no IFPI, onde pontua dois momentos: sendo beneficiário sem a contrapartida do trabalho e com a contrapartida do trabalho. Neste último, julga ter recebido o auxílio financeiro por “merecimento”. Destaca ainda a importância desta experiência como uma iniciação ao trabalho, um aprendizado para uma futura atuação profissional. Lamenta ainda a extinção desse tipo de atividade no âmbito da assistência estudantil. Abaixo, outra opinião convergente.

É porque a maioria dos benefícios não exige dele um retorno, ao meu ver pelo menos, não exige. Porque eu acredito que o que exigiria o retorno seria os resultados da monitoria, que também entra né? Então, os de monitoria exige o retorno do aluno, mas outros benefícios não exigem. Então fica uma coisa muito passiva. O aluno está lá, o programa está aqui e acaba não tendo aquela relação. Se houvesse, por exemplo, algo que exigisse do aluno que ele estivesse ativo em alguma coisa, como é o caso da monitoria, talvez seria melhor, por exemplo, um aluno que estivesse aqui na parte do setor de saúde, auxiliando aqui, ou então algum outro setor que ele pudesse estar aqui na instituição... ou sei lá, outra coisa, que ele pudesse estar fazendo algo por aquilo que ele está recebendo (Estudante X).

O Estudante X também acredita ser positiva a contrapartida do beneficiário, no sentido de prestação de serviço. O retorno do estudante, portanto, é visto como uma atividade que o mesmo possa exercer para fazer jus ao recebimento do benefício. Este raciocínio é compartilhado também entre professores.

Eu acho que seria interessante se voltasse. Às vezes uma bolsa para um aluno desses é muito importante. Além dele receber, ele ainda está aprendendo. Enquanto que tem muito aluno... que eu vejo... tem aluno que recebe bolsa da POLAE que nem... tipo assim... só pra vir mesmo pra cá. [...] Eu acho que seria interessante porque ele vai ajudar o aluno a fixar aqui, porque ele não vai querer perder aquele dinheiro, ele vai trabalhar, ou seja, vai aprender um ofício e... serve até como um primeiro emprego. E eu acho que vai ter o mesmo efeito de uma bolsa dessas sem o aluno precisar trabalhar, na minha opinião... assim, de efeito de fixar o aluno... porque se ele está estagiando aqui, ele não vai querer sair daqui também e vai até se entrosar mais com a instituição (Professor II).

O Professor II admite ser interessante que o estudante tenha uma vivência de “estágio” na instituição de ensino como contrapartida da assistência estudantil. Para o mesmo, tal atividade promove aprendizado e contribui para a permanência do estudante, prevenindo a evasão. O Professor V ainda revela:

Eu acho assim... porque eles recebem sem precisar prestar algum serviço para o campus... eu acho assim, poderia se pensar em ele ganhar essa bolsa, mas poderia se pensar em colocar o aluno pra prestar algum serviço para o campus. Assim, eu acho que iria valorizar mais, o aluno ia valorizar mais... eu tiro por mim, porque quando eu era bolsista de trabalho no campus... eu estudei no IFPI... e eu valorizava muito, estudava mais... (Professor V).

Para o Professor V, a contrapartida de trabalho para o beneficiário promove a valorização do benefício pelo estudante. Na fala de estudantes e professores, portanto, emerge a concepção de que é correto o estudante receber repasse pecuniário mediante “merecimento”, ora atribuído à situação de vulnerabilidade social (abordada no item anterior), ora relacionado à prestação de serviço.

Para alguns, então, é válido para os estudantes a prestação de serviço como contrapartida para o recebimento de auxílio financeiro, tanto no sentido de possibilitar experiência e aprendizado, quanto instigar nos estudantes efeito moral de valorização do benefício. Esse é realmente um ponto polêmico da concepção e implementação do PNAES, pois a assistência em forma de benefício pecuniário ao estudante é aqui confundida por uma visão mercantilizada da vida social que implica em uma relação de troca com envolvimento de força de trabalho.

Nas discussões nacionais, registradas por Cavalheiro (2013), em torno da implementação do PNAES na Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, que subsidiaram a construção do projeto PNAES-EPCT (abordado no capítulo anterior), “há uma orientação para a extinção da contrapartida de trabalho do estudante como requisito para o repasse financeiro de auxílios”, pauta que foi redimensionada para os aspectos da frequência e aproveitamento acadêmico como contrapartidas (CAVALHEIRO, 2013, p. 61). Esta foi uma orientação basilar da POLAE no IFPI, um dos aspectos que a diferencia do antigo Programa de Atendimento ao Educando (PAE), que previa bolsas de trabalho aos estudantes como ação de assistência estudantil.

Atualmente, no âmbito da assistência estudantil do IFPI, a contrapartida do estudante beneficiário é visualizada especificamente quanto aos critérios estabelecidos para o estudante permanecer recebendo benefícios, que, como já mencionado, foi um aspecto construído durante a implementação da POLAE já instituída. Tal contrapartida emerge como expectativa em relação aos beneficiários na fala de professores entrevistados.

O único questionamento que eu tenho da POLAE é em relação à cobrança, que às vezes você pensa que deveria cobrar pelo menos a iniciativa dos alunos, que em relação a isso eu não vejo... porque professor faz tudo pra ajudar os alunos, sabe, então quando chega o final do ano, então quando você vê aquele aluno que chega a não ter as notas boas, se você vê que ele é um aluno que busca, você tenta ajudar o máximo, você dá todas as oportunidades possíveis... (Professor IV).

Para o Professor IV, o estudante beneficiário da POLAE deve ser cobrado por bons resultados no desempenho escolar, ao menos no sentido de que demonstre interesse pelos estudos, iniciativa e esforço pessoal. No mesmo sentido, outro sujeito aponta:

Eu acho que seria interessante vocês fazerem periodicamente uma triagem, um acompanhamento do histórico do aluno, vendo como está a situação dele, se ele está progredindo, se ele está se interessando no curso, presença, ver se está tendo frequência no curso... Se vocês puderem estar verificando a aprendizagem do aluno... depois, sei lá, de três meses que ele está recebendo a POLAE, chama o aluno: “Olha, a gente está analisando o seu histórico, a gente percebeu aqui que houve uma queda do seu rendimento e a gente queria saber por que”... é isso... eu acho que um pouco de cobrança também, pra ter uma maior valorização (Professor V).

O Professor V evidencia a importância do trabalho de acompanhamento ao estudante beneficiário, no sentido de verificar o rendimento escolar e identificar dificuldades, motivos para a ocorrência de resultados insatisfatórios. Tudo isso levando o estudante a perceber que é preciso dar retorno, contrapartida pelo benefício, através do desempenho escolar. O relato abaixo destacado ainda explicita de maneira mais detalhada o pensamento do professor acerca desse tipo de cobrança aos beneficiários.

O aluno tem que mostrar o retorno disso. Como é que o aluno mostra? É no empenho, é nas notas. Então muitas vezes eu vejo o aluno que fica aqui até o fim do ano letivo pra ele não tomar falta, mas entregando provas em branco. Então assim, onde é que está o comprometimento do aluno em receber esse auxílio, que pouco, que muito, mas é um auxílio que ele recebe que o grupo entendeu que era o suficiente pra mantê-lo aqui e ele tem que dar esse retorno. Então nesse ponto, eu acho que a gente tem que melhorar ainda [...] Então aí você vê um aluno que levanta cinco horas da manhã do Buriti pra vir pra cá pra estudar... o aluno que vem pedalando né, não sei de onde, do Bairro São Vicente, enfim, são áreas bem carentes que eu tenho alunos assim e eu vejo eles pegarem o valorzinho que eles recebem e reverter ali... Você vê eles tirarem boa nota... quando tira uma... não estão muito bem de rendimento, correm atrás. Você vê a preocupação e tudo. Ali eu vejo o retorno da POLAE. Por isso que eu digo assim que, a gente realmente assim talvez pelo quadro... não sei, buscar algum software, alguma coisa ajude a gente a ter esse retorno mais rápido dos rendimentos dos alunos beneficiários e chamar a família e dar ciência: “olha, está recebendo, é pra vir, é pra estudar”. Qual o retorno? O retorno é a aprovação do aluno no final do ano. Se esses casos isolados, se o aluno tem déficit de atenção, sei lá, dislexia, problema de memória, não sei. Esses casos médicos, aí a gente tem que ponderar. Fazer o diagnóstico, ponderar realmente: “não, ele vai continuar recebendo, mas ele só vai até aqui”. Tudo bem. Isso daí a gente respeita. Mas assim, o aluno que eu não tenho o diagnóstico médico e eu vejo que o aluno está vindo por vir, só porque se ele pegar falta, ele não recebe benefício... aí isso daí me incomoda. Isso aí me incomoda muito. [...] Às vezes me parece realmente desinteresse. Mas eu não vou generalizar isso, mas alguns casos, realmente é o que eu estou dizendo, o que me incomoda é isso. Como eu já ouvi, há algum tempo atrás, logo quando a POLAE começou, de alunos que me entregavam a prova em branco, botava o nome... E eu fui atrás perguntar por que não quis nem marcar, tinha duas questões de marcar na minha prova. Eu falei: “você não quer nem chutar?” “Não, professora, eu tô vindo pra não pegar falta”. “E por quê?” “Não, é porque se eu pegar falta eu não recebo minha bolsa”. Então desde que eu ouvi isso

realmente assim me chamou a atenção e me incomodou. Esse investimento que a instituição faz que o aluno, muitos alunos não dão esse retorno (Professor VI).

A expectativa de professores é de que o benefício deve causar efeitos do ponto de vista comportamental do indivíduo, enquanto retorno devido pelo mesmo mediante inserção no Programa. Portanto, os efeitos esperados pelo Programa passam pela conduta dos indivíduos contemplados, no tocante à obrigatoriedade de assumirem uma postura de comprometimento com os estudos. Assim, os beneficiários são vistos como “faltosos” no sentido apontado por Pereira e Stein (2010, p. 116) de que há uma inversão no campo das políticas sociais, posto que aqueles atendidos em direitos sociais básicos (educação, saúde, etc.), credores de uma dívida histórica, é que têm que assumir contrapartidas. As autoras ainda indicam como risco desse tipo de mecanismo regulador das políticas sociais focalizadas a tentativa de transformar problemas estruturais em faltas morais dos próprios afetados por esses problemas.

Na visão de Carvalho (2008), esse fenômeno contemporâneo que incide sobre as políticas sociais opera um esvaziamento da noção de direito transmutado em benefício.

O direito deixa de ser uma prerrogativa de todos e se transforma em elemento indexado ao desempenho individual, como “recompensa”. É o direito metamorfoseado em benefício, objeto de retórica, capturado pela racionalidade do Mercado, que retira a “alma do direito”. E, nesta perspectiva, ocorre uma transferência de responsabilidades sociais, também para a sociedade civil (CARVALHO, 2008, p. 23).

Infere-se, portanto, que a focalização das políticas sociais na pobreza, através de atendimento na forma de benefício assistencial, implica na deterioração da noção de direito social, sobretudo atribuindo-lhe um sentido individualizante. Essa perspectiva cabe na análise da implementação do PNAES no IFPI, uma vez que conforma uma concepção de assistência estudantil marcada pela assistencialização da pobreza na forma de benefício, o que se agrava pela noção de responsabilização do indivíduo por meio de condicionalidades para o recebimento do mesmo. A noção de direito é confundida, portanto, com a noção de mérito, própria da sociedade capitalista. Assim, o benefício da assistência estudantil representa uma moeda de troca pelo comportamento dos estudantes diante do processo educacional, visando o sucesso escolar como um resultado que emana do plano individual.

No campo educacional, por meio de ações de assistência estudantil, os próprios indivíduos, quando passam a ser atendidos, são cobrados pelos resultados esperados de minimização dos problemas de evasão e retenção. Esta situação pode ser analisada pela mesma linha da análise de Frigotto (2010) sobre a circularidade da teoria do capital humano, já abordada no capítulo anterior. Para o autor, essa teoria defende que a escolarização é fator

de mobilidade social; sua ausência ou deficiência é a causa das desigualdades. Ao mesmo tempo, essa teoria ilumina políticas de combate à evasão escolar como o PNAES, pois associa as causas dessa problemática às condições socioeconômicas dos sujeitos, ou seja, aqueles que possuem menos recursos financeiros possuem menos chances de obter sucesso escolar e, consequentemente, mobilidade. Para agravar tal raciocínio circular e evidenciar sua incongruência, os efeitos almejados pela POLAE passam pelo esforço individual dos sujeitos beneficiários, o que independe do auxílio financeiro em si. Fecha-se, portanto, todo esse ciclo no plano individual. Entretanto, quais dificuldades são vivenciadas pelos estudantes no percurso acadêmico e que podem representar riscos de evasão e retenção?