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GETÚLIO E O RÁDIO

II. 6 – CONTROLE PELA MÚSICA

Com o surgimento do rádio, iniciou-se um casamento indissolúvel entre esse veículo e a música. As ondas radiofônicas eram perfeitas para divulgação e democratização da produção musical. Poucos tinham acesso aos caros aparelhos de audição e aos discos de acetato.

Porém, a antes do rádio, a transmissão da música era feita através de espetáculos, com apresentações de músicos e cantores, o que limitava o raio de divulgação pela impossibilidade de os artistas estarem presentes em vários pontos e pelo alto valor das montagens. O cinema também dava a sua contribuição, mas, devido ao custo elevado da produção, também era muito restritivo, principalmente para produções nacionais, como explica Luís de Carvalho (2005):

Antes do rádio, o meio musical era muito diferente. Tinha -se a música erudita, a dos bacanas e a popular, que carregava muito do folclore brasileiro, e a transmissão boca a boca que atravessava gerações. A população mais pobre não tinha dinheiro para os shows que os artistas montavam. Então, o contato era com os que se apresentavam em praças, feiras, circos. O cinema ainda era tímido e com muita coisa estrangeira. O cinema nacional só começou a usar o artista musical brasileiro quando eles já estavam famosos pelo rádio, para atrair público.57

57 Para fins de pesquisa, o assunto foi aprofundado em contato telefônico posterior à entrevista do

A música brasileira não encontrou espaço imediato no rádio. Ela foi aumentando a sua participação conforme as estações foram popularizando a sua programação. Nos anos 20, as emissoras transmitiam quase que exclusivamente músicas eruditas importadas, conta Luiz de Carvalho (2005):

As primeiras [estações] que surgiram eram muito elitizadas, o que fazia com que as músicas que veiculavam fossem sempre clássicas e como aqui no Brasil produzia -se pouco nesta área nas décadas de 20 e 30, o material era todo estrangeiro. Essa situação só começou a mudar com a popularização do rádio na década de 30.

Porém, com a popularização alavancada pela permissão de comerciais, as emissoras passaram a demandar um produto com maior identificação das massas, o que permitiu uma efervescência da música popular, como pode ser observado no depoimento do radialista Luiz de Carvalho (2005):

O rádio ajudou muito o mercado fonográfico, que passou na década de 30 a investir mais em artistas nacionais. Porém, as rádios ainda usavam os discos emprestados de muitas lojas. Só depois, as gravadoras passaram a mandar como parte de divulgação de seus artistas. Eu tive muito que levar discos meus para as emissoras e passar nas lojas para pedir emprestado, ter um cuidado danado para não arranhar e devolver depois.

A ligação com o rádio era tão amarrada que, com a implantação do esquema de controle cultural na década de 30, a autorização para execução da música passou a ser de incumbência da própria Divisão de Rádio do DIP.58 Segundo Luiz de Carvalho, foi uma forma de controlar também o setor musical.

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O governo percebeu logo a importância da música e que ela e o rádio caminhavam juntos, um ajudando o outro a crescer. As gravadoras eram quase todas, como até hoje, estrangeiras. Vargas tinha a preocupação nacionalista e passou a entrar neste ramo para impedir que dominassem a cultura nacional. Como era através do rádio que músicas e artistas estavam se popularizando e o governo não tinha ingerência direta nas gravadoras estrangeiras, passou a controlar as veiculações nas emissoras, onde detinha um grande raio de ação. (CARVALHO, 2005)

A música foi classificada pelo governo como importante aliada no processo de formação da cultura nacional e do cidadão brasileiro. Por isso, entre os ritmos que eclodiam nas camadas populares através do rádio, o governo teve a preocupação de eleger um estilo que representasse o genuinamente brasileiro, como parte do processo de nacionalismo.

O samba surgiu como um representante do ritmo nacional eleito entre diversos outros gêneros populares. Esse ritmo foi elevado a categoria de nacional após ter tido um passado de resistência. Chegou a ter a execução proibida no início do século XX, inclusive com a prisão de sambistas que insistiam em cultivá -lo.

Mas, antes de ser “promovido”, ele precisou ser “saneado”. O ritmo foi “moldado”, “educado” e teve as arestas aparadas, para que não comprometesse as diretrizes governamentais, como se observa em crítica do especialista em rádio Martins Castelo (1942), na revista governamental Cultura Política: “Os nossos autores têm-se entregue, na verdade, com excesso ao elogio da vadiagem, à exaltação do vagabundo de camisa listrada”.

Apesar da aceitação do ritmo, o governo repudiava algumas expressões empregadas pelos sambas, como afirma Luiz de Carvalho (2005):

A figura do malandro, o boêmio, que eram presentes nos samba, já que era um ritmo marginalizado, entrou em atrito com o governo que passou a aceitá-lo, mas a proibir essas expressões que batiam de frente com a política trabalhista. Mas nem sempre isso era obedecido. Muitas vezes se driblava a censura [o locutor passa a cantar]. “Não quero outra coisa na vida, pescando no rio de Jererê. Tem peixe bom, tem siri, patola de dar no pé”. E tinha outra:

“Trabalhar, eu não vou”. Com o tempo, essas que tinham escapado não foram proibidas, mas desestimuladas suas execuções. Na década de 40 é que o controle ficou mais forte e começaram a vetar muita coisa.

Para o governo, era preciso exorcizar a figura do “malandro-boêmio carioca”, presente em boa parte das letras, que entrava em confronto direto com a política trabalhista de Vargas.

Foi durante o Estado Novo que surgiu o chamado "samba da legitimidade", em que se buscava converter a figura do malandro na figura exemplar do operário de fábrica. O DIP incentivava os compositores a exaltar o trabalho e abandonar a boemia. Também através do samba se ensinava a repudiar o comunismo como ameaça à nacionalidade ("Glória ao Brasil", 1938). Procurando construir uma imagem positiva do governo junto aos artistas, em 1939 Vargas criou o “Dia da Música Popular Brasileira”.59

O governo via esse saneamento feito no samba como resultado de sua política de melhoria de vida da população pobre brasileira, destacando-se dois fatores: as leis trabalhistas e a derrubada das favelas, como ressalta Martins Castelo (1942) em artigo na revista estatal

Cultura Política : “Esses dois acontecimentos assinalam, mesmo, uma nova etapa na evolução

do samba, que veio respirar ar diferente da atmosfera dos barracões do morro”.

Mas as proibições não chegavam diretamente aos programadores musicais. As músicas eram vetadas antes. O gargalo da censura ficava na autorização para a gravação no processo de registro da obra. Desta forma, o Departamento de Rádio do DIP impedia que letras que contrariassem a política da época fossem registradas em discos e conseqüentemente fossem veiculadas pelas emissoras, recorda-se Luiz de Carvalho (2005).

Nós que trabalhávamos com discos, como eu, que na maior parte do tempo fui disk-jóquei, mesmo antes de ter essa determinação, não tínhamos

59 DIRETRIZES DO ESTADO NOVO: EDUCAÇÃO, CULTURA E PROPAGANDA. In:

muitos problemas. Pois quando apareciam os discos eles já tinham passado pela censura. O nosso trabalho era só verificar se tinha algum que tivesse sido vetado depois de liberado. Mas isso era raro. Já os que comandavam programas de auditório, com música ao vivo, como Paulo Gracindo, César de Alencar, César Ladeira, o governo resolveu o problema, só permitindo que apresentassem músicas que mesmo que não tivessem sido gravadas, tivessem sido registradas como direito autoral e passado pela censura.

Além de cuidar da divulgação da música, o Estado também buscava moldar as manifestações culturais que vinham das ruas. O governo buscava ainda controlar e incentivar a produção de acordo com sua conveniência (através de uma série de concursos oficiais promovidos) e vetar as letras consideradas “inconvenientes”. De acordo com Othon Jambeiro (2003, p.122), “para gravá -las e executá-las, os autores sofriam pressões para modificar as letras e incluir forçosamente os valores estadonovistas”.

Essa preocupação pode ser observada na coluna do crítico de rádio da Revista governamental Cultura Política, Martins Castelo (1941b).

A Divisão de Rádio do DIP vem se esforçando... Proíbe o lançamento das composições que, aproveitando a gíria corrutora da língua nacional, fazem o estúpido elogio da malandragem. Não querendo limitar a sua ação ao campo da censura, distribui, pelas estações dos estados, gravações de música fina, com noticiários de interesse coletivo... Aliás, nesse capítulo, a secretaria Geral de Educação e Cultura do Distrito Federal vem também levando a feito uma iniciativa de enorme alcance patriótico, com as suas coletâneas de melodias infantis e músicas heróicas.

Dentro do próprio governo, setores mais conservadores pressionavam para que fosse feito, com ainda mais rigor, o controle das letras dos sambas veiculados, principalmente durante os programas estatais, como pode ser observado através de diálogo por telefone entre o diretor do DIP, Lourival Fontes, e o major Afonso de Carvalho:

Afonso de Carvalho: Vários generais fizeram ver, ao ministro, a

inconveniência de certas letras de sambas irradiadas na ‘Hora do Brasil’. O Ministro então mandou que eu falasse com você, para chamar a atenção dessas pessoas encarregadas das irradiações.

Lourival Fontes: Até agora, o controle das letras de samba era feito

pela polícia, mas daqui por diante, será feito por mim... Pode dizer-lhe que levarei, na devida consideração, a reclamação, porque, realmente, ela tem fundamento.60

Além da sua execução pelo rádio, a elaboração de enredos pelas Escolas de Samba também sofreu controle do Estado Novo, de acordo com Luiz de Carvalho (2005):

As escolas de samba, que surgiam nesta época, assim como outros tipos de grupos carnavalescos mais antigos, como rancho, clubes carnavalescos e blocos, também sofreram o controle da censura, que proibia enredos, fantasias e músicas que contrariassem o regime. Teve época em que até premiavam os que apresentassem temas que agradavam ao governo.

O pesquisador Márcio Nascimento (2002, p.65) credita ao rádio o sucesso do samba como ritmo nacional: “Foi a força do rádio que motivou a verdadeira explosão do carnaval carioca, culminando com a formação e a descida dos morros das pioneiras escolas de samba”. A máquina de propaganda do governo ainda incentivava a criação de letras que ressaltassem o que as autoridades definiam como nacionalismo. Vários concursos foram

60 Gravação de ligação telefônica entre o diretor-geral do DIP-Lourival fontes e o Major Afonso de

realizados e, mesmo “sob encomenda”, grandes clássicos da música brasileira foram produzidos nesta época, conta Luiz de Carvalho (2005):

Em 39, surgiram as músicas de exaltação no Brasil, por orientação do próprio Vargas. Além das músicas de Ari Barroso, também se destacou uma gravada por Francisco Alves [o depoente começa a cantar]. “Este Brasil, tão grande, cabe inteirinho no meu coração”. Foram muitas. E mesmo não sendo espontâneas, pelo talento do compositor brasileiro e a facilidade de se adaptar, fez com que surgissem grandes clássicos.

Também em 1939, no dia 04 de janeiro, o governo criou o Dia da Música Popular, como parte da programação da expos ição Nacional do Estado Novo, prática que foi abandonada após a queda de Vargas, relata Sérgio Cabral:

Um grande show, com a participação... da fina flor dos cantores brasileiros da época... Desde cedo, as ‘borboletas’ da exposição do Estado Novo rodavam constantemente. O movimento começou logo depois do meio-dia. E, antes das 10 horas da noite, haviam registrado mais de 200 mil pessoas. E maior ainda foi a onda popular, quando Barbosa Júnior, que servia de speaker, anunciou o aparecimento de Carmem Miranda. (CABRAL, 1994, p. 175).

Luiz de Carvalho lembra que estes eventos movimentavam diretamente o rádio, já que as emissoras noticiavam e transmitiam trechos dos eventos. Além disso, participavam das apresentações radialistas, cantores e músicos – na época, quase todos funcionários ou ligados a rádios. “As rádios participavam diretamente, chamando o público, cedendo seus artistas.” (CARVALHO, 2005)

Porém, ao mesmo tempo em que se tentava “adestrar” o samba como música popular, buscava-se também educar a população através do projeto de “Canto Orfeônico” organizado pelo maestro Villa-Lobos. Ele foi o responsável por apresentações musicais em grandes concentrações, quem viraram uma rotina no Estado Novo, tendo total apoio de Vargas. As bases eram as escolas e as indústrias, que formavam os corais que se uniam em

torno de grandes apresentações: “O povo era considerado uma espécie de matéria bruta a ser elaborada pelo saber das elites. Baseado nesse raciocínio, o governo justificava seu controle e fiscalização sobre as mais diversas expressões culturais”.61

Os eventos viravam uma grande vitrine para as ações cívicas do regime, se incorporando às inúmeras comemorações de datas criadas ou resgatadas pelo governo. O estádio do Vasco da Gama, na zona norte do Rio, foi o principal palco para esse tipo de evento. Além da grade quantidade de integrantes do coral no campo, outra multidão se reunia nas arquibancadas e cadeiras para assistir às apresentações.

Além disso, esses eventos tinham um grande efeito multiplicador. Suas mensagens eram repassadas através de transmissões ou reportagens pelo rádio ou ainda pela cobertura dos jornais do governo e os demais, controlados indiretamente pelo DIP. Buscava-se a legitimação do regime, procurava-se a exaltação e o apoio através da música para ações da política governamental. Muitas peças foram compostas para essa finalidade, algumas pelo próprio Villa-Lobos.

Através da Marcha para o Oeste, composta por Villa-Lobos com poesia de Sá Roris, o Estado incentivava a população a apoiar a política governamental de povoar o interior do país, reforçando a agricultura, e, dessa forma, estancar a vinda de agricultores para as cidades e destinar para essas regiões os estrangeiros que entravam no país.

Saudação a Getúlio era uma das contribuições para a manutenção do “mito Vargas”.

Já Canção do Operário se propunha a apoiar o trabalhismo, base do estado Novo62.

61 DIRETRIZES DO ESTADO NOVO: EDUCAÇÃO, CULTURA E PROPAGANDA. In:

http://www.cpdoc.fgv.br.

62 Essas canções constam da relação de peças executadas pelos Cantos Orfeônicos exibida em