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Cooperação Jurídica em matéria civil para obtenção de provas na União Europeia

E DO MERCOSUL P ietro d e B iAse d d iAs

1. Cooperação Jurídica em matéria civil para obtenção de provas na União Europeia

Desde o início do processo de integração europeu, a cooperação jurídica tem sido uma preocupação dos países-membros. Como prova disso, temos a Con- venção de Bruxelas de 1968 que instituiu o sistema uniicado de regras de competência, litispendência e reconhecimento de sentenças estrangeiras, em matérias civil e comercial3. O objetivo, em última análise, é o de robustecer

o Direito Processual Comunitário, eliminando assim o problema da incidência de diversas leis processuais no mesmo processo. Desse modo, contribuir-se-á para o desparecimento de alguns óbices impostos pela tradicional noção de soberania, acabando por agilizar e simpliicar procedimentos internos.

Como ora esboçado, o reconhecimento mútuo das decisões judiciais é a pedra angular de toda a cooperação jurídica europeia. A partir dele, desde despachos a sentenças judiciais devem ser respeitados pelas autoridades na- cionais. Nesse diapasão, observa-se a proliferação de um instrumento de au- xílio jurisdicional cuja aplicabilidade tem-se revelado revolucionária quando o assunto é litígio transfronteiriço.

A. Auxílio Direto

O auxílio direto é um mecanismo de cooperação pelo qual o Estado abre mão de dizer o direito sobre determinado objeto de cognição para transferir às au- toridades de outro Estado essa tarefa4. Ele possibilita o intercâmbio direto

entre autoridades administrativas e judiciais de estados diversos, sem o rótulo de carta rogatória5.

3 HESS, Burkhard. Nouvelles Techniques de la coopération judiciaire transfrontiére en Euro- pe. Revue Critique de Droit International Privé. N.2, p 216, 2003.

4 Deinição do Ministério da Justiça do Brasil - Cooperação Internacional. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/>

5 BARBOSA JÚNIOR, Márcio Mateus. O auxílio direto judicial e administrativo. In:  Âmbito

Jurídico, Rio Grande, XV, n. 98, mar 2012. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.

br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11254&revista_caderno=16>. Acesso em junho de 2014.

Embora possua algumas similitudes com esta última, ainda não há vedação a que seu conteúdo seja executório. Seu funcionamento tem início com o pedi- do de auxílio de um magistrado de um país para outro de alhures. Nota-se que, diferente de outros modos de cooperação, o auxílio direto pode não ensejar juízo de delibação, isto é, não necessita de uma análise sobre sua legalidade por parte do tribunal do país requerido. É dizer que o pedido vai diretamente para o magistrado estrangeiro, passando pela autoridade central de ambos os países.

É interessante salientar que este instrumento veio na esteira do Progra- ma da Haia nº 2, relativo ao Processo Civil Internacional e ao nº 20 que versa sobre a obtenção de provas no estrangeiro em matéria civil e comercial. A Convenção de Auxílio Judicial Mútuo da União Europeia6 de 29 de maio de

2000, voltada para a área penal, consagrou a assistência jurisdicional mútua como instrumento eicaz de comunicação processual. A criação da assistência jurisdicional foi uma reação dos governos à crescente criminalidade transna- cional. Houve consenso que nenhum país sozinho seria capaz de combater tais práticas delituosas, era preciso uma “união mais estreita” entre os Estados- -Membros para atingir objetivos comuns.

Embora o auxílio direto esteja, pela tradição, associado ao campo penal, ele tem-se mostrado muito eiciente na cooperação civil no direito europeu. Não somente para comunicação processual, expedição de diligências, obten- ção de provas, a assistência judicial revela-se como um instrumento, em última análise, de efetividade à Justiça.

Na União Europeia, a assistência judicial mútua abrange a cooperação di- reta entre autoridades, a im de trocar informações, sendo efetuada por carta rogatória ou auxílio direto. Como melhor assevera a professora Maria Rosa Gui- marães Loula, os europeus utilizavam as expressões “carta rogatória” e “auxílio direto” como sinônimos. A primeira, por sua vez, tem sido deixada de lado, até mesmo, pelo estigma da morosidade e burocracia, que a ela, classicamente, importa. Hodiernamente, a doutrina tem preferência pela terminologia mutual

legal assistance ou simplesmente, assistência mútua legal. Não se apercebeu,

contudo, nenhuma diferença substancial entre a terminologia doutrinária e o auxílio direto.

6 Art. 3°, I “o auxílio mútuo também é concedido em processos instaurados pelas autoridades administrativas para fatos puníveis nos termos do direito do Estado-Membro requerente ou do Estado-Membro requerido, ou de ambos, como infrações a disposições regulamentares e, quando da decisão caiba recurso para um órgão jurisdicional competente, especialmen- te, e matéria penal”.

B. Regulamento 1206/2001, cooperação no domínio da obtenção de provas

Ao analisar os pedidos de cooperação jurídica na Europa atual, não se pode ignorar o uso da assistência jurisdicional entre os membros da União. Os trata- dos, por serem pouco analíticos, não foram suicientes para preencher lacunas legais como a litispendência, regras de competência, dentre outras. Por conse- guinte, foi inaugurado o instituto dos Regulamentos.

O Regulamento é um instrumento de direito derivado que versa de forma mais especíica sobre determinado assunto. Insta salientar que, de acordo com o Direito Europeu, e seus três princípios basilares: toda norma europeia tem primazia sobre o direito nacional, o efeito direto, isto é, aplicam-se tanto às pessoas naturais como às jurídicas, e aplicabilidade imediata, pois entram em vigor sem precisar de recepção dos ordenamentos jurídicos, salvo a diretiva que possui a prerrogativa da adaptação.

Diante do exposto, tomaremos o Regulamento (CE) no. 1206/2001, do Conselho da União Europeia de 28 de maio de 2001, relativo à cooperação en- tre os tribunais dos Estados-Membros no domínio da obtenção de provas em matéria civil ou comercial. Esta norma tem a inalidade primordial de simpliicar e acelerar a cooperação jurisdicional, no que tange à obtenção de provas.

Este regulamento surgiu na esteira da iniciativa da República Federal da Alemanha, advertindo que a Convenção da Haia sobre a obtenção de provas no estrangeiro, em matéria civil e comercial, de 18 de março de 1970, não vin- culava todos os Estados-Membros da UE. Mais que obter um texto em vigor entre todos os Estados-Membros, buscava-se efetivar a transposição para o domínio da obtenção de provas, os princípios que inspiraram outro dispositivo, o Regulamento 1348/20007, relativo à citação e notiicação dos atos judiciais

e extrajudiciais em matérias civil e comercial, notadamente, a possibilidade de atuação direta em jurisdição estrangeira8.

Há de se aventar que o Regulamento 1206/01, assim como o 1348/00, se espelhou fortemente na Convenção da Haia de 19709. Todavia, faz-se mister

reiterar o caráter comunitário do regulamento. É dizer que, uma vez aprova- do, ele torna-se cogente para todos os Estados-Membros. Não se deve olvidar também que se trata de um dispositivo de 2001, portanto, de cunho mais mo- derno, e que, por muitas vezes, suplantou soluções propostas na Haia.

7 O Regulamento 1348/2000 versa sobre a citação e notiicação dos atos em matéria civil e comercial buscando como ora esboçado, a celeridade do trâmite judicial.

8 O Regulamento 1206/2001 dispõe em seu preâmbulo algumas metas a serem perseguidas pelo Conselho da União Europeia.

9 A Convenção da Haia no. 2 de 1954 tratou do Processo Civil Internacional enquanto a de no.20 de 1970 versou sobre obtenção de provas no estrangeiro em matéria civil e comer- cial. Vale lembrar que ambas fundamentaram a edição dos regulamentos sobre temas co- nexos da União Europeia e Mercosul.

Outra inovação do Regulamento em tela é o entendimento de que o diá- logo entre juízos de Estados diversos deve ser direto, eliminando, em alguns casos, o papel da autoridade central como intermediadora dos pedidos, como preconiza a doutrina clássica sobre o auxílio direto. A regra é clara ao conferir legitimidade aos tribunais de requererem diretamente a um tribunal estrangeiro.

Além da comunicação direta entre os juízos, este regulamento, sempre visando à celeridade e à desburocratização dos procedimentos, propõe uma padronização dos pedidos10, obrigando-os a terem identiicadores das partes

e determinantes daquilo que se está a pedir. Do contrário, o pedido pode ser impugnado, sem prejuízo de ser reencaminhado.

C. O caso 170/11, a aplicação material do Regulamento 1206/2001

Dentre os julgados do Tribunal de Justiça europeu, encontramos alguns casos que versam sobre obtenção de provas no estrangeiro. Pela jurisprudência atu- alizada da corte, percebe-se que o caso11 170 de 2011 é o que melhor exempli-

ica a importância desse normativo cuja aplicação não esvazia o direito interno. Em abril de 2001, a Suprema Corte dos Países Baixos (Hoge Raad der Ne- derlanden) submeteu ao Tribunal de Justiça da União Europeia um pedido de reenvio prejudicial acerca da interpretação do art. 1º, item 1 do Regulamento 1206/2001, sobre a eventual obrigação de aplicar um dos métodos de obten- ção de provas previstos no referido regulamento, ou faculdade de utilizar os previstos no direito processual em vigor no Estado-Membro onde se situa o órgão jurisdicional em causa.

O litígio opunha M. Lippens, G. Mittler e J. Votron (a seguir, conjuntamente, «M. Lipens e outros»), residentes na Bélgica, membros da direção da Ageas NV, anteriormente Fortis NV, a H. Kortekaas, à Kortekaas Entertainment Marketing BV, à Kortekaas Pensioen BV, a D. De Kat, a J. Visch, a E. Bökkerink e à Lamin- co GLD N-A (a seguir, conjuntamente, «H.  Kortekaas e  outros»), detentores de títulos imobiliários da Fortis NV (a seguir, conjuntamente, «Fortis»), sobre alegado prejuízo sofrido por estes, a partir de informação falsa fornecida pelos membros da direção sobre a saúde inanceira da empresa.

10 “(9) A celeridade da transmissão dos pedidos de obtenção de provas justiica a utilização de todos os meios adequados, desde que sejam respeitadas determinadas condições em matéria de legibilidade e de iabilidade do documento transmitido. A im de garantir o máximo de clareza de segurança jurídica, os pedidos de obtenção de provas devem ser transmitidos através de um formulário, a preencher na língua do Estado-Membro do tribu- nal requerido ou noutra língua de aceite por esse Estado. Por esse motivo, é igualmente aconselhável utilizar, na medida do possível, formulários para comunicações ulteriores en- tre tribunais em questão.”

11 Optou-se por citar o caso 170 de 2011 por ser o mais recente entendimento da corte versan- do sobre obtenção de provas. Enquanto o caso 175/2006, dado como exemplo da jurispru- dência pelo próprio tribunal não possui acórdão, visto que a extinção da instância deixara o processo sem objeto, portanto procedeu-se o cancelamento do feito.

O acórdão do caso Lippens e outros v. Kortekaas e outros, de 6 de setem- bro de 2012, gerou grande repercussão ao decidir que o Estado-membro tem a faculdade de, para proceder inquirição de testemunha residente em outro Estado-membro, convocar essa parte e de a inquirir em conformidade com o direito do Estado-membro do tribunal requerente.

A ação foi ajuizada em 3 de agosto de 2009 por Kortekaas e outros, no Re- chtbank Utrecht, tribunal nos Países Baixos, contra os três membros, Lippens e outros, da direção da empresa Fortis, domiciliados, por sua vez, no Reino da Bélgica, a pagarem uma indenização pela prática dos atos ilícitos retrocitados.

Os réus, por sua vez, solicitaram ao Rechtbank Utrecht que emitisse uma carta rogatória12 para poderem ser inquiridos por um juiz francófono na Bél-

gica. Solicitação que foi indeferida pela corte neerlandesa. Os acusados inter- puseram um recurso no Gerechtshof te Amsterdam que conirmou o despacho com fundamento no artigo 176, n. 1, do WBR13, o qual confere ao magistrado

holandês a faculdade de proceder por meio de carta rogatória.

Os reclamantes deveriam, portanto, ser inquiridos no lugar onde o proces- so está correndo, pois não se conigurava nenhuma circunstância especial para derrogação daquela regra em favor de Lippens e outros.

Ressaltou ainda que a diferença linguística não poderia ser invocada para justiicar a inquirição na Bélgica, haja vista que as partes seriam assistidas por intérpretes na corte neerlandesa. Por im, Lippens e outros ajuizaram uma ação perante a mesma Gerechtshof te Amsterdam com argumento de esta ter viola- do o Regulamento 1206/2001, ao obrigá-los a depor nos Países Baixos.

A Gerechtshof te Amsterdam submeteu ao Tribunal de Justiça da UE ques- tão prejudicial sobre a interpretação do art. 1º, I do Regulamento 1206/2001, que versa sobre a inquirição de testemunhas e obtenção de provas. A corte entendeu ser possível a oitiva de testemunhas no tribunal do país requerente, pelo fato de o Regulamento não possuir nenhuma cláusula que regule ou ex- clua tal hipótese. Além disso, o Regulamento vem a complementar dispositivos internos, correndo o risco de a aplicabilidade do direito interno tornar-se resi- dual, se suplantado por norma comunitária, o que não se observa, in casu.

Nesse diapasão, a Corte Europeia proferiu despacho no sentido de permi- tir ao Estado-membro de inquirir testemunha em seu território, quando a mes- ma não lá residir, sendo esta parte num processo previsto ou já em andamento.

12 Como ora aventado, carta rogatória e auxílio direto são utilizados como sinônimos pela doutrina.

13 O artigo 176, n.° 1, do WBR apregoa que salvo disposição em contrário contida em con- venção ou em regulamento da União, se uma testemunha residir em outro país, o órgão jurisdicional poderá solicitar a uma autoridade, por si designada, do Estado de residência da testemunha que proceda à inquirição sob juramento ou encarregar dessa inquirição a funcionário consular neerlandês da área de residência da testemunha.