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CORPO-PROTÉTICO: AFINAL, O QUE É O CORPO TRAVESTI?

2 1 COMO ESTÃO REPRESENTADAS AS TRAVESTIS NO ESTADO DA ARTE As travestis, pois, estão representadas numa dimensão epistemológica que o

3. O CORPO TRAVEST

3.3. CORPO-PROTÉTICO: AFINAL, O QUE É O CORPO TRAVESTI?

Em dezenas de artigos seus autores copiam-se uns aos outros ao afirmar que travestis fabricam uma prótese inacabada, imperfeita (corpo) para suas almas. Tal ideia me chamou rapidamente a atenção desde que comecei a levantar material para o estudo do estado da arte. Não tenho como contradizer tais estudos. Se tomarmos a mesma perspectiva que tomam tais pesquisadores não há o que contestar, nem mesmo criticar. O trabalho travesti, de fato, torna-se uma atividade fabril, arte de engenharia simbólica. No entanto, se conseguirmos por algum momento que seja fugirmos das perspectivas naturalistas de tais análises, talvez, possamos encontrar no verbo fabricar algo muito mais fundamental. Ou seja, talvez, pudéssemos encontrar um modo de valorizar melhor o trabalho travesti. A ideia de “fabricação/construção” adquire um valor negativo para as próprias travestis e, assim, todo o seu trabalho nunca é avaliado do ponto de vista da utilidade individual que ele representa, menos da ainda da força que elas empregam. Os pesquisadores afirmam este caráter de coisa quando em suas interpretações procuram demonstrar a contradição aparente que envolve todo o trabalho travesti. Como nos diz determinado pesquisador, os

[...] travestis “constroem” seus corpos, por meio de um longo

trabalho de “engenharia” física. [...] É justamente no corpo que elas

manifestam os principais dados simbólicos, daquilo que é considerado masculino e feminino pelas normas de gênero (ANTUNES, 2010: 71) O grifo em negrito é meu

Afinal de contas que corpo não é fabricado/construído? Por que o trabalho das travestis aparece como um trabalho de engenharia à parte? Que querem as análises, as interpretações, os pesquisadores ao insistir na perspectiva anti-natural da fabricação de seus corpos? Afirmar que travestis “constroem [fabricam] seus corpos por meio de um trabalho [...] de engenharia” e tal ideia só existe em relação com corpos perfeitamente dados não significa em última análise afirmar – querendo negar – que tais corpos são do ponto de vista do valor o que menos importam? Ou de outro modo, não significa, assim, na

relação entre o “corpo natural” e o corpo fabricado reafirmar que um é verdadeiro e o outro falso? Não significa reacender a perspectiva que afirma que o corpo assim entendido é um “ser”? Mas, como nos lembra Butler,

Se o corpo não é um “ser”, mas uma fronteira variável, uma superfície

cuja permeabilidade é politicamente regulada, uma prática significante dentro de um campo cultural de hierarquia do gênero [...] então que

linguagem resta para compreender esta representação corporal, esse gênero, que constitui sua significação “interna” em sua superfície?

Sartre talvez chamasse este ato de “estilo de ser”; Foucault de “estilística da existência” (sic). Em minha leitura de Beauvoir, sugeri que os corpos marcados pelo gênero são “estilos de carne”. Esses estilos nunca são plenamente originais, pois os estilos têm uma história, e suas histórias condicionam e limitam suas possibilidades. Consideremos o gênero, por exemplo, como um estilo corporal, um “ato”, por assim dizer, que tanto é intencional como performativo, onde “performativo” sugere uma construção dramática e contingente do sentido (BUTLER, 2003: 198-9) O grifo em negrito é meu

Talvez, o problema não seja apenas o de inventar uma nova linguagem que seja capaz de dar conta destes novos fenômenos, mas o de fazer girar a roda das perspectivas e dos valores. As pesquisas ainda ressentem os impactos de um pensamento que bravamente resiste a sair de cena: o pensamento metafísico cuja ação é por vezes disfarçada em determinadas formas de linguagem como “corpo masculino”, “biologicamente masculino” ou “corrigir a natureza”, etc. A forma como aparecem nas análises, nas pesquisas, nas interpretações a intenção e execução das práticas travestis de reformatarem seus corpos é muito negativa e, às vezes, o único valor positivo é dedicado a apreciações políticas num quadro de luta de classe: heterossexuais e suas normas X queers e suas contestadoras ações. Como, então, apareceriam as travestis em tais pesquisas se tomássemos a perspectiva que nos oferece David Le Breton? Diz-nos ele que

Em nossas sociedades, a parcela de manipulação simbólica amplia-se,

[...] a plasticidade do corpo tornam-se lugares-comuns. A anatomia

não é mais um destino, mas um acessório da presença, uma matéria-

prima a modelar, a redefinir, a submeter ao design do momento (LE BRETON, 2003: 27-8) O grifo em negrito é meu

Já não se faz mais a menor distinção aqui, então, de como os corpos são lançados ao mundo. Sua igualdade, pois, aparentemente, é a falta de igualdade cultural-simbólica. Apagam-se todas as marcas e registros naturais83 para em seu lugar surgir a vontade, o

desejo individual de cada um, o querer interno da vontade (da força). As determinações anteriores são rapidamente transformadas em valores culturais, simbólicos dos quais os indivíduos fazem uso para levar seu corpo, uma espécie de massa informe, a novos patamares de significações simbólicas, quer dizer, a novas inscrições, novas tabuas de valores e aqui, então, sobressai todo o trabalho travesti e a qualidade/quantidade de força que ela emprega para obter sua vitória. A cultura, a determinação natural, os constructos históricos passam a ser ferramentas úteis a cada individualidade no rumo que deseja dar à sua vida. Enfim, empurram-se as análises, as interpretações para novos lugares, novas linguagens, novas razoabilidades.

Mas, afinal, o que é o corpo travesti? Não é uma oposição a uma naturalidade dada – mas, se poderia dizer que ele pode ser lido do ponto de vista político-partidário como uma oposição discursiva desde que se tome o corpo como um discurso determinado -, nem uma reinvenção ou atualização do que já existe, ele reflete para um ou outro lado na perspectiva de gênero o masculino ou feminino. A este respeito poderíamos usar a perspectiva foucaultiana da “estética da existência” para o dotar de alguma razoabilidade ou sartriana como talvez diria, segundo Butler (2003), Sartre “estilo de ser” ou mesmo como a própria Butler (2003) preferiu chamar “estilo de carne”. Qualquer dos casos resulta o mesmo. De todas elas gosto mais da “estética da existência” usada por Foucault por conter nela um maior teor artístico. Contudo, ainda trabalhando nesta mesma perspectiva esclarece-nos Bento que

A verdade dos gêneros, no entanto, não está nos corpos; estes, inclusive, devem ser observados como efeitos de um regime que não

83 A anatomia é obrigada a se refazer

só regula, mas cria as diferenças entre os gêneros [...] A própria idéia

(sic) de origem perde o sentido e a/o “mulher/homem de verdade” passa a ser considerado também cópia, uma vez que tem de assumir o gênero da mesma forma: por intermédio da reiteração dos atos (BENTO, 2006: 1004)

O que nos interessa agora considerar é que não havendo uma verdade a priori em relação ao corpo cabe indagar se existe uma verdade a priori para os gêneros84.

Naturalmente, se levadas às últimas conseqüências tal indagação resultaria também como resposta uma provável negação. Tanto quanto os corpos os gêneros também fazem parte das invenções com que somos designados ou auto nos designamos, identificados ou auto nos identificamos e cujos valores obedecem, na escala social, ao domínio daqueles que conseguiram estabelecer determinadas ideias (domínios), isto é, como verdade ou mais precisamente, como diz Bento (2008) influenciado por Foucault, regimes de verdade. O que quero dizer, exatamente, é que a verdade, se preferir, as verdades, são resultados das relações de saber e de poder, pelo menos, neste campo específico da análise. Estabelecem verdades quem neste jogo de forças beligerantes consegue demonstrar melhor inteligência de guerra e força de combate.

3.4. TRAVESTIS E AS RELAÇÕES DE PODER: SUA REALIDADE CIENTÍFICA

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