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TRAVESTIS POR ELAS MESMAS: UMA DOCE ‘REBELDIA’

2 1 COMO ESTÃO REPRESENTADAS AS TRAVESTIS NO ESTADO DA ARTE As travestis, pois, estão representadas numa dimensão epistemológica que o

3. O CORPO TRAVEST

3.2 TRAVESTIS POR ELAS MESMAS: UMA DOCE ‘REBELDIA’

As opiniões que podem ser colhidas entre travestis de todo o Brasil, segundo os dados das pesquisas levadas a cabo nas Ciências Sociais a respeito do que “elas são”, isto é, quando indagadas a respeito de sua situação de gênero com o que se identificam melhor, encontramos ideias bastante diversificadas e demasiadamente contrastantes. Umas confirmam o que já sabemos79, outras querem libertar-se do lugar-comum das opiniões80,

mais outras sequer conseguem dizer categoricamente, para um ou outro lado, o que são. Dom Kulick81 entrevistou e estudou as travestis de Salvador, na Bahia, nordeste brasileiro,

e é categórico ao afirmar que as travestis de Salvador não se afirmam “mulher”. Kulick chegou ao Brasil falando nada ou quase nada do português, talvez, algumas de suas conclusões se deva a isto, porque nas falas das suas informantes encontram-se algumas oposições às suas afirmações categóricas.

Uma informante de Diego Pontes Gonçalves diz que,

(...) “Quando me recusei a ser homem, a me olhar no espelho e ver barba, que sempre odiei ter, ver roupas simples e largas, me recusei também a me ver como homem, por dentro sempre fui mulher, mesmo quando tinha barba (...) hoje sou uma mulher de verdade.” (...) (diário de campo, 03/07/09) (GONÇALVES, 2010: 145)

Desfazem-se, então, perspectivas generalistas que intentem encontrar ou a dibujar (desenhar) uma noção universal com a qual possamos conceituar travestis? Algumas ideias que travestis fazem a seu próprio respeito parecem, fatidicamente, ir de encontro a noções bastante vulgares que encontramos no conjunto das produções. Não quero, enfaticamente, dizer com isto que o resultado a que chegam determinados pesquisadores é explicitamente um erro, contudo, parece-me é fruto de pesadas seduções a que se submeteram alguns até

79 Que se nasce homem ou mulher 80 Que se pode tornar homens ou mulheres 81 Cf. Kulick, 2008

ingenuamente. Hugo Denizart82 em uma obra bem interessante indaga às travestis, objeto

de sua pesquisa artística, como se enxergam, como fez Gonçalves (2010), Kulick (2008) e tantos outros. A resposta de uma das informantes de Denizart é surpreendente; diz-nos ela que

Mulher é normal, ninguém olha... Quando vêem (sic) que você é um

travesti, se interessam mais... Ficam na dúvida. O que atrai é uma relação dupla [de ser homem e mulher ao mesmo tempo]... A gente complementa isso (Luciana in Denizart, 1997: 18) O grifo em negrito é meu

Poderíamos indagar se há entre as informantes dos pesquisadores pontos de ligação e o que teríamos como resposta? Também poderíamos ceder a uma diversidade de seduções e procurar em interpretações ou análises apressadas uma verdade para determinada informação. Seríamos, então, rapidamente conduzidos para os mesmos abismos e, certamente, cairíamos até ao fundo, se nos deixássemos de ponderação em ponderação superficial tentar “traduzir” palavra a palavra o que afirmam ou explicitam, o que negam ou apenas dissimulam as travestis. Não veríamos, então, na afirmação da informante de Gonçalves (2010) a negação de sua condição feminina? Esta inexplicável, imponderável ideia de ser mulher “por dentro” não marcaria ou justificaria determinado tipo de análise que afirma que travestis jamais serão mulheres e que elas próprias sabem disto? E quanto à informante de Denizart? Também não nos encontraríamos em face de conclusões psicológicas muito fáceis? A este respeito Marcos Benedetti tem a seguinte opinião:

[...] uma das instâncias importantes acionadas pelas travestis para a

explicação do gênero e sua relevância na constituição dos sujeitos é aquilo que poderia ser chamado de “dimensão interna”, concebida

como uma realidade imutável e natural que, em sua perspectiva, é responsável por uma série (sic) de processos na constituição do sujeito enquanto social. (BENEDETTI, 2005: 106) O grifo em negrito é meu

82 Cf. Denizart, 1997

“Dimensão interna” é o correlato de substância, essência e no discurso que desconstrói ou desestrutura é o correlato de descontinuidade, isto é, o espírito diz que é, mas o corpo não pode atestar, uma vez que, as travestis corrompem a literalidade, - a inteligibilidade de gênero como preferiu Butler (2003) falar. No fundo, todas estas construções, invenções intelecto-conceituais só cabem desde que se considere o campo de saber – os mecanismos de suas produções – em disputa. A disputa que travestis realmente travam é, digamos, de uma natureza mais nobre e pode ser sintetizada assim:

Anaciclin, sempre quatro comprimidos por dia. Fernando se consome

lentamente. O pau míngua, os testículos encolhem. Os pêlos (sic) diminuem, os quadris se alargam. Fernanda cresce. Um pedaço depois

do outro, gesto sobre gesto, desço dos céus à terra (sic), um diabo – um espelho. Minha viagem (ALBUQUERQUE e JANNELLI, 1985: 79) O grifo em negrito é meu

Que perspectiva analítica, política ousou recolocar a questão travesti em tais termos? Quando, pois, voltamo-nos para as questões que são propostas pelas mais diversas interpretações, pelos mais diversos pesquisadores seus problemas e respostas não transcendem muito ao universo de uma luta pelo estabelecimento de verdades – a luta pelo domínio dos campos e dos meios de produção da verdade de maneira muito superficial. Suas interpretações e/ou análises nunca ou quase nunca são úteis para travestis, porque elas nascem, partem, desenvolvem-se a partir daquilo que pretendem negar: o binário de gênero. Tomando por um momento a fala de uma informante de Dom Kulick, o que vemos?

Banana sintetizou o pensamento da maioria das travestis sobre esse tema, quando me disse, tout court: “Eu nasci homem e vou morrer homem. Como eu posso ser mulher um dia, se eu nasci homem? Se eu por acaso

me castrasse e pusesse uma buceta, isso faria de mim uma mulher?

(KULICK, 2008: 101) O grifo em negrito é meu

E mesmo que ela, a travesti, optasse por intervenções cirúrgicas e mudasse ou corrigisse sua “natureza” como nos lembra Silva (1993 in Lourenço, 2009) dificilmente ela se livraria de quem é (com que aparelho genital nasceu), porque não pode existir um

passado biológico, nem uma descontinuidade, digamos, metafísica. As descontinuidades percebidas são da ordem da história, não fruto de determinações ontológicas. Como diz Chiland,

Não se pode esperar que os progressos da cirurgia cheguem a mudar o corpo todo, os cromossomos e os órgãos (sic) internos; mesmo que fosse possível, isso não apagaria a história vivida. Portanto, é

importante que se consiga encontrar um tratamento que se distinga da reatribuição hormonal-cirúrgica do sexo (CHILAND, 2008: 121) O grifo em negrito é meu

Realmente, não se pode apagar a “história vivida” e isto significa, exatamente, dizer que não se pode apagar pela intervenção cirúrgica todo o conjunto de relações e significações – morais e axiológicas - que a travesti viveu, não pode apagar das mentes das pessoas de suas relações, nem mesmo esconder das futuras relações – sociais e sexuais – com quem travará a história vindoura de sua vida, assim, travestir-se não significa um recomeço, mas parte de um processo: ideia dominante. A consequência é que entre as que afirmam e negam seu “passado biológico” e as que não procuram negar, mas afirmam a sua “essência”, digamos assim, será estabelecida uma luta sem vencedores, inglória. E o pesquisador diante disto e tendo que batalhar pela própria sobrevivência no campo especial de suas batalhas tomará partido para um ou outro lado conforme lhe parecer melhor um ou outro lado. Partidarizemo-nos ou faliremos eis a sentença. Mesmo que as noções, as análises, as interpretações não cheguem todas a um só resultado a respeito das travestis é ponto pacífico entre elas que travestis utilizam determinadas tecnologias, bem como, fazem uso de determinadas técnicas para aproximarem-se esteticamente (na feitura e estrutura físicas femininas) das mulheres. Tais usos, para alguns pesquisadores, abusos, levaram as travestis, mas não apenas elas, a darem “adeus ao corpo”.

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