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2 1 COMO ESTÃO REPRESENTADAS AS TRAVESTIS NO ESTADO DA ARTE As travestis, pois, estão representadas numa dimensão epistemológica que o

5. PARA UMA NOVA AURORA TRAVEST

5.1. A SUPER-AÇÃO TRAVEST

Recordo, então, a fala de uma informante de Hugo Denizart que afirmava com todas as “letras” que ser travesti “é [ser] mais que uma mulher”114 - voltarei a esta fala de

Vanessa, informante de Denizart (1997) para aprofundá-la e melhor explorá-la -. Luciana, também informante de Hugo Denizart fala em busca de perfeição que se torna uma obsessão para as travestis e disto resulta, ao que parece, o seu desejo, querer, vontade de “superar a mulher em tudo” ou ser “mais que uma mulher”. A propria Luciana parece dar- nos pistas de como, em tese, poderia ser caracterizada esta “superação”, mas aí também alguns de seus opositores poderiam enxergar as suas ações como resultado ou fruto de uma mente doente ou ainda como fruto de uma exacerbada megalomania. Nem uma coisa, nem

113 Cf. Braga, 2010; Jabor, 2004 (amor é prosa, sexo é poesia citar) 114 Cf. cap. 3, sub-cap. 3.2 desta Tese

outra. O que se rechaça, como as próprias falas e práticas das travestis reforçam é, justamente, a redutibilidade a uma cena por um lado do direito e da justiça – empreendimento intelectual de apropriação -, por outro, a uma estagnação, a uma inconclusão, portanto, imperfeição – já que como alguns pesquisadores afirmam o que buscam travestis “obsessivamente” é aproximar o mais que puder sua imagem da imagem da mulher – intenta-se mostrar isto em mínimos detalhes. E não há, assim, portanto, “verdade” que seja mais compartilhada entre as produções contemporâneas do que esta. Mas, então, para este mister preparei-me, aprofundei-me, escalei-me profundamente. Pois bem. O que não conseguiram realizar os que me antecederam na interpretação travesti foi identificar a qualidade da força e a propria força, por suposto, que move as travestis, isto é, que as impulsionam para o jogo das relações de força que constitui o seu universo e o interesse que disto aí resulta, bem como, a característica utilitária que isto aí representa para as travestis. E por que não conseguiram identificar tais coisas os que me antecederam? É muito simples; estavam demasiadamente preocupados em batalhas discursivas – próprias do seu campo analítico - que determinados quadros apresentavam e, assim, tornaram-se uns os samaritanos e bons juízes e outros preconceituosos e radicais e todos com um único fim: dominar os meios de produções (discursivas de verdade) pelos quais as travestis aparecem verdadeiras ou falsas em suas proprias batalhas pessoais, individuais ou em “classe”, mas sem guardar nenhuma afinidade com seus analistas.

O que ninguém percebeu, portanto, é que a força que move travestis para o seu fim – o domínio, porque este é seu desejo, querer e vontade – foi reduzida aos meios utilitários que elas empregam para alcançar tal fim. Negando esta realidade, portanto, foi possível aos analistas, pesquisadores e intérpretes travestis chegarem à conclusão – reafirmando suas ideias de domínio – que travesti “é um processo” para o qual não há um “encerramento”, uma solução, ou seja, identificaram mal a força, a perspectiva e o trabalho travesti ou

como prefiro dizer, reduziram um feixe descomunal de forças poderosas a um feixe de forças fracas, reativas, ressentidas. Longe, portanto, de uma pretensa estagnação – o fim seria tornar-se fatidicamente “mulher” – algumas travestis afirmam como Luciana e Vanessa que o seu desejo, querer e vontade são outros. Como nos afirma Adriana, mais uma informante de Denizart,

[...] Travesti é uma fotocópia de uma mulher. Eu sou melhor que

uma mulher, a única diferença é que ela tem uma boceta e eu não... Eu sou melhor no amor, na maneira de vestir, de me comportar, quando

eu quero... Sexualmente faço tudo... Sou completa. Os homens me abordam dizendo que querem transar comigo porque eu pareço com uma mulher que eles querem transar e não conseguem (Adriana in DENIZART, 1997: 31) O grifo em negrito é meu

Há, então, em muitas teses, um desejo contrário ao querer e vontade travesti que deseja, quer e sente vontade de dominá-las e tenta por meio do conhecimento – uma forma de apropriação – rebaixar (desqualificar) a força que move as travestis. Mas, aqui é onde entra a qualidade da força que move as travestis, o seu caráter de ser afirmadora, de ter construído para si uma tábua de novos valores (um universo de novos significados), de ter feito de sua vida uma vida criativamente combativa. Soa muito mal aos ouvidos desacostumados afirmações do tipo como aquelas que constroem as informantes de Denizart e, ao mesmo tempo, desperta em tais ouvidos um sentimento fortemente negativo – leia-se, reativo, vingativo. Afinal, o que são todas estas ponderações sobre travestis que não esta vontade negativa? Isto é, uma vontade reativa que inverte todos os valores travestis – do ponto de vista do conhecimento -, que reduz toda finalidade (vontade de domínio) de suas ações aos meios utilitários – o que chamam de “processo de transformação” - de que fazem uso. Pois bem. Um analista, então, tenta captar com perfeição e traduzir para o seu grande público a realidade da vida travesti. Diz-nos ele que,

No cotidiano dessas pessoas [travestis], nem sempre a convivência é tranqüila (sic), pois a competição é muito acirrada. Algumas travestis

interage cotidianamente em suas vidas, e que se manifesta pela disputa pela melhor imagem, pelo cabelo mais bem cuidado, pelo

vestido mais glamouroso, assim como pelo “ponto de batalha” mais rentável (PERES, 2005: 62) O grifo em negrito é meu; itálico do autor

Aqui, então, é onde marco a diferença. Há, então, o embate das duas forças. Por um lado, o que Foucault chamou na esteira de F. Nietzsche de “vontade de saber”, que é o apropriar-se, pois, das ações travestis movida por sua força afirmadora, para interpretá-la e avaliá-la, mas num quadro geral de valores já estabelecidos e tidos por normativos, por outro, a propria força travesti agindo, afirmando-se, criando seus próprios valores para significar suas ações – para isto enfrentará o que for preciso enfrentar. Mas, então, que faz esta “vontade de saber” que não reduzir toda esta força travesti primeiro aos seus mecanismos de produção da verdade e depois aos seus próprios valores analíticos? Que termos se usa, então, para avaliá-la? Termos, então, como “fogueira de vaidades” e “disputa” aparecem numa escala de valor muito negativa. Disputar, então, por uma “melhor imagem” ou mesmo pelo “melhor ponto de batalha/prostituição” soa como trivialidade, como uma futilidade, algo cuja importância é nula. Que significa, então, viver numa “fogueira de vaidades”? No entanto, que são todas estas coisas que não o fermento necessário pelo qual travestis crescem, superam-se? E superar, neste caso, significa triunfar sobre uma força que lhe impõe uma enorme resistência impotencializadora, desvitalizadora e, neste caso, que força maior lhe impõe resistência que não esta “vontade de saber” – expressão das relações de poder-saber - para os quadros que aqui consideramos?

Não é, pois a mera trivialidade, futilidade, uma vontade fraca que impulsiona as travestis a entrarem no jogo das relações de forças para o qual estão destinadas e menos ainda o jogo das relações de poder-saber é capaz de bem avaliar para um ou outro lado – positivo ou negativo - a realidade travesti instituindo para um ou outro lado toda uma discursividade a seu respeito. Assim, toda vez que um discurso se erguer para tentar legitimar suas interpretações é preciso também, por outro lado, levantarem-se forças

contrárias não para negá-lo (o discurso), mas para superá-lo, porque o discurso não é algo que se deva tomá-lo e invertê-lo na perspectiva de que sobre ele se continue a produzir verdades de mesmo quilate. Fazer, então, do conhecimento algo bem mais do que uma inversão de produção de verdades é fazê-lo, assim, uma conquista, ou seja, aquilo que deve imperativamente dominar.

Deste sentimento, desta psicologia de domínio as travestis estão cheias, pesadas, profundas. Nada lhes é mais característico do que o sentimento de que “são mais” e de que “podem mais” e disto resulta, portanto, aquele sentimento de completude, de felicidade, de alegria. Justifica-se, assim, toda esta psicologia travesti pelo fato de que a quantidade de força que se investe no jogo das relações de força gera consequentemente uma quantidade de prazer de mesma quantidade e intensidade. Como afirma um pesquisador,

Apesar das insistentes recriminações e proibições dessas práticas pela família, vizinhança e outras redes, elas não desistem. As travestis se

apóiam na perspectiva “naturalista” sobre o gênero e sobre a

sexualidade para explicar e justificar as práticas que contrariam

aquilo que é socialmente esperado delas, pois se trata de uma perspectiva que evoca uma lógica interna, sobre a qual elas não teriam

controle racional (BENEDETTI, 2005: 101-2) O grifo em negrito é meu

No entanto, nada é mais falso do que afirmar que as travestis servem-se da “perspectiva naturalista” – como uma vasta gama de intelectuais a entendem – para “explicar e justificar” suas práticas. Esta é, pois, uma apropriação intelectual indébita – interpretativista -, na verdade, muito corriqueira nas análises, com a qual os seus intérpretes julgam as travestis através de seus próprios valores invertendo, por conseguinte, toda a tábua de novos valores que as travestis escreveram. E o que o analista chama de “insistentes recriminações e proibições” na verdade é o poder que a força contrária movimenta em relação à força travesti – e esta força travesti resulta muito mais forte do que sua adversária – procurando re-estabelecer o estabelecimento (quebrado duramente pelas travestis), atuando para manter ou conservar toda a sua construção do ideal, ou seja, o

seu domínio. O fato de que travestis “não desistem” nunca e suportam as adversidades, as dores e os maus momentos (impostos) que deste quadro de coisas resulta e revela melhor o quão poderosa é sua força, o seu desejo, o seu querer, a sua vontade de domínio. De tamanho esforço e não encontrando força suficiente que lhe entrave os caminhos da sua escalada – da conquista - as travestis – que pouco ou nada possuem materialmente, pelo menos, a maioria – triunfam no combate com seus inimigos e saem dele com aquele sentimento de superioridade que lhe é demasiadamente característico. Curioso, portanto, é o modo generoso com que os seus analistas emprestam-lhes suas racionalidades para inocular nelas (travestis) os seus “venenos”. Como afirma Paulete, mais uma informante de Hugo Denizart,

Você tem que ter uma força muito grande, querer muito aquilo, mas é uma força tão grande que você supera e vai em frente com aquilo. Foi o que aconteceu comigo, eu não deixei de fazer a faculdade, eu não

deixei de ir ao colégio, eu não deixei de... [...] Agüentar (sic)... Aguentar a família, a sociedade, eu superei e consegui muitas coisas que, por exemplo, meus irmãos machões não conseguiram (Paulete in DENIZART, 1997: 29-30) O grifo em negrito é meu.

A super-ação travesti, pois, não se reduz, como aparece nas dezenas, centenas, talvez, milhares de novas obras – obras contemporâneas - que procuram sobre ela (travesti) demarcar temas a um manejo técnico, tecnológico de suas ações a conquistar um espaço em meio às instituições sociais; não se reduz à sua imagem, a imagem que constroem – como também estratégia de combate - e que lhe serve de escudo e lança, como arma de combate. A super-ação travesti significa a inscrição de uma nova tábua de valores que nasce por meio do seu querer, de sua potência. Portanto, quem melhor desejar avaliar as travestis que o faça menos em detrimento de suas imagens (os artefatos técnicos e tecnológicos de que fazem uso) e mais pela dose de resistência, de dor, de tortura que o seu querer, a sua potência é capaz de tolerar e aproveitar. Pois é, deste modo, cortando na própria carne que o tormento aumenta o saber. O saber, assim, se torna uma conquista.

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