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2 1 COMO ESTÃO REPRESENTADAS AS TRAVESTIS NO ESTADO DA ARTE As travestis, pois, estão representadas numa dimensão epistemológica que o

2.3. A TRAVESTI E SUA IDENTIDADE

A identidade é um modo de expressar-se idêntico a alguma coisa, mas também é o modo como as pessoas percebem/identificam e são percebidas/identificadas umas as outras em relação às suas práticas sociais o que elas “são”. É também uma espécie de marcador lógico. Evidente que se esta explanação findasse aqui resultaria em muitos problemas. Parece-me que as primeiras considerações que fiz a respeito da “identidade” são bastante vulgares. Identidade, contudo, aplicada aos estudos de gênero e sexualidade está longe de significar coisa tão simples. E hoje nem se fala mais em identidade, assim, no singular. A nova ordem discursiva estabeleceu a sua pluralização e por quê? Creio que tenha sido uma tentativa de fugir às essências ou, pelo menos, aos processos de essencialização não raro. Stuart Hall46 parece ter se notabilizado como uma das principais referências – senão a

principal - quando o assunto é identidade. Hall, para efeitos didáticos, apresenta-nos esta questão em três concepções de identidade: identidade do sujeito do período iluminista, identidade sociológica e identidade do sujeito na pós-modernidade. Para Hall (1992) o sujeito no período do Iluminismo era um sujeito centrado, unificado, dotado de consciência e de razão, ou seja, era um sujeito substancial, um sujeito cuja identidade nascia com ele, um sujeito, por conseguinte, sempre idêntico a essa substância, a si mesmo, auto- suficiente. O mundo moderno e suas transformações apresentaram uma nova concepção de sujeito não mais tão centrado, unificado, auto-suficiente; agora o sujeito dependia de suas relações sociais e sua formação de sujeito residia, justamente, aí, neste conjunto de relações interpessoais. Esta concepção de sujeito, pois, liga, ou como diz Hall “sutura” o

sujeito à estrutura de suas relações e o resultado desta ligação ou “sutura” é a estabilização entre sujeitos e culturas tornando-os unificados e predizíveis. Parece, entretanto, que é, justamente, a respeito do “sujeito sociológico” que um mundo de argumentações críticas está se desenvolvendo. Um tipo de indivíduo centrado, unificado, estável ou predizível está em processo de fragmentação: eis, então, o que é o sujeito da pós-modernidade. É um sujeito não apenas identitário, mas pluridentitário nem sempre coeso, mas às vezes contraditório e “mal resolvido”. Pois bem, os estudos que se dedicam/ram a explicar o “fenômeno travesti” encontraram nesta última concepção de identidade apresentada por Hall (1992) terreno muito fértil para o cultivo de suas ideias. Viram nas travestis e no seu processo de formação/constituição (construção como gostam mais de falar) inúmeras identidades. Como nos garante um determinado pesquisador,

Travesti: um misto de comportamentos femininos e masculinos. Uma identidade formada, muitas vezes, por uma desorientação da sexualidade. “O travesti na verdade não é do outro sexo. Ele migra de

mulher para homem ou de homem para mulher na hora em que ele quer. Mas não existe nada anatômico no cérebro que identifique isso” afirma o psiquiatra Jerson Laks (SALLES et. al 2003: 38) O grifo em negrito é meu

Concepções pós-modernas, pois, não apenas estritamente em relação à identidade. Elas revelam no conjunto das produções “um misto” de ideias antigas que intentam a todo custo renovar-se. Temos, então, que mesmo não sendo “do outro sexo” – feminino, neste caso – “o travesti” assume uma identidade feminina revelando em parte a sua “desorientação” sexual e em parte a busca por uma espécie de estabilidade de gênero. Basta, então, lembrar que para Chiland (2003) o que tortura travestis/transexuais é fazerem-se aceitar como homens ou como mulheres. Se, no entanto, tomássemos esta ideia de Chiland por verdadeira não seriamos forçados a afirmar, pelo menos, em relação às travestis que a questão central aqui é a centralidade, a estabilidade, a unidade do sujeito e não o seu contrário? Como assegura mais outro pesquisador,

Como as próprias travestis costumam explicar, ser travesti é apresentar-

se socialmente como mulher em tempo integral, ou como elas

costumam dizer, “[...] travesti é quem passa 24 horas por dia como mulher [...]”. E nessa representação não basta somente vestir-se com

roupas do universo feminino. (FERREIRA, 2009: 38) O grifo em negrito é meu

Parece-me, então e, talvez, contrariando os meus iguais, e se não faço tão má leitura a respeito da questão identidade, uma espécie de tendência a uma centralização identitária, que chamarei aqui de identidade primária a despeito da qual se estabelece uma órbita de fragmentos gregários a esta identidade primária, parece querer estabelecer-se na figura de uma pluralização independente destes fragmentos. Assim, para que surjam novas identidades – ou características relacionais da identidade primária - é fundamental que exista um centro lógico de comando para o qual convirjam ou orbitem os seus fragmentos. Assim, por exemplo, uma travesti pode declarar que sua identidade é feminina e declarar- se com uma identidade de puta, contudo, a puta só existe em detrimento da identidade feminina (identidade primária: centro identitário) sem a qual inexistiria como fator lógico relacional e de continuidade. Assim, para que uma identidade seja constituída não basta apenas uma declaração do tipo “sou isto, sou aquilo, sou aquilo outro”. Como nos diz Ferreira (2009) para que uma identidade seja razoável, digamos, na sua contrariedade, é preciso que ela expresse o desejo ou que esteja subordinada à lógica da norma cultural. Daí de travestis para conseguirem os efeitos pretendidos, segundo o conjunto das produções “passar-se por mulher” ela precisa seguir religiosamente o que a norma cultural estabeleceu como sendo coisas de mulher, como sendo o feminino. Aprofundando um pouco mais a questão nos diz Butler que,

No desafio de repensar as categorias do gênero fora da metafísica da substância, é mister considerar a relevância da afirmação de Nietsche, em

A genealogia da moral, de que “não há ser” por trás do fazer, do realizar e do tornar-se; o “fazedor” é uma mera ficção acrescentada à obra – a obra é tudo”. Numa aplicação que o próprio Nietzsche não teria antecipado ou aprovado, nós afirmaríamos como corolário: não há

identidade de gênero por trás das expressões do gênero; essa

identidade é performatividade constituída, pelas própria “expressões” tidas como seus resultados (Butler, 2003: 48) O grifo em negrito é meu

No entanto, o conjunto das produções que analisei como que numa investigação do estado da arte parece afirmar o contrário do que afirma a despeito das ideias nietzschianas como corolário Butler (2003) em relação à perspectiva do gênero. Mas, então, como explicar que os pesquisadores ainda busquem os autores/fazedores do que as obras, quer dizer, como explicar que os pesquisadores estejam demasiadamente preocupados e destinados a encontrar uma resposta para uma pergunta que aparentemente só tem como resposta uma gargalhada? E que pergunta é esta? Evidente: o que são travestis? Então, se Butler (2003) nega a identidade de gênero com a qual os pesquisadores estão bastante familiarizados, o que existe? Como podemos, então, identificar travestis? Que diferença existe entre a travesti e a mulher? O gênero se torna performatividade. Não existe uma identidade porque não existe um “ser” anterior ao próprio ato, um ser como causa do ato (como a exemplo do sujeito do iluminismo), ou seja, o que encontramos no conjunto das produções identidades ligadas a ações, na verdade, não ultrapassa muito à dimensão da ação em execução, ou seja, a própria força, apenas o ato. O que tudo isto quer dizer, então? Que não existe um ser travesti, mas determinadas ações ou conjunto de ações inteligíveis ou antes relações de força que tendem a uma estética – que Butler chama performatividade – que determinadas pessoas realizam e por isto são caricaturadas como travestis, como homens, como mulheres, etc. Assim, o que chamamos travestis está muito mais para atos, determinadas práticas do que para a constituição de uma determinada entidade (ser, aquilo que é). Assim, travestis são meras ficções (estrategias do poder: o saber) acrescidas às ações, aos atos, aos acontecimentos; a performance é tudo. Tratar, pois, as travestis nos termos de uma identidade significa voltar ao tempo em que o gênero ainda era tratado na base da metafísica da substância47. Talvez, isto explique porque as travestis se tornaram

para o conjunto das produções seres ambíguos ou como afirma tão categoricamente Salles

47 Cf. Butler, 2003

et.al (2003) seres “mistos” onde “mistos” quer dizer aqui e exatamente homem e mulher ao mesmo tempo.

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