1. EM BUSCA DE UM PASSADO TRAVESTI: ANTECEDENTES HISTÓRICOS Quando delineei o tema da minha futura pesquisa de doutorado imaginei que não
1.4. MAIS PERTO DO FIM: A TRAVESTI FETICHISTA DE HIRSCHFELD E STOLLER
Desde o início do séc. XX apareceram novas ideias para tentar dar conta de outras expressões da sexualidade homossexual. Em 1910, então, é lançada a obra “Die Travestiten” de Magnus Hirschfeld. Como nos explica Pierre Henri Castel,
27 Subjetivas, comportamentais 28 Leia-se, disputas
O primeiro livro onde é usado o termo "transexual" é o que Magnus Hirschfeld lhe consagrou, Die Tranvestiten, em 1910. Como se vê no título, não se trata de separar o transexualismo (a palavra figura, de resto, inserida na expressão "transexual psíquico") do conjunto das perversões, mas sobretudo, de um lado, de separar as formas de homossexualidade, e de outro, de estabelecer que o transvestismo não é uma prática especificamente homossexual, em via de destruir a homogeneidade aparente da categoria de "atos contra a natureza" (CASTEL, 2001: 81)
De um modo ou de outro, a categoria, Foucault chamou espécie homossexual, parecia já não ser mais eficiente. Este novo indivíduo – travesti fetichista – continuou na categoria de homossexual, mas as expressões de sua sexualidade receberam um batismo novo. Eram já sinais de que o homossexual como espécie não suportava abarcar todo o conjunto das “perversões”, pois estava demasiadamente saturado. Um salto um pouco mais no tempo29 vemos se desenvolver novas tecnologias30 como é o caso da invenção de
hormônios sintéticos, a cirurgia plástica, a descoberta da endocrinologia no inicio do século XX, etc. Harry Benjamin31 irá se opor à concepção de
“travestismo/transvestismo/travesti fetichista” do Dr. Hirschfeld e uma disputa científico- conceitual estabelecer-se-á. A discórdia de Harry Benjamin a respeito da ideia de “travesti fetichista” do Dr. Hirschfeld assentava-se na tentativa de estabelecer uma nova categoria, digamos, anormal, mas esta já não podia ser inserida na grande categoria guarda-chuva homossexual. Tratava-se agora de algo diferente, algo novo, do transexual. A intenção de Benjamin era isolar esta nova criatura seu “desvio e sofrimento” de manifestações semelhantes, contudo, essencialmente diferente das outras. E Benjamin explica,
El transexualismo, es un problema diferente (del trasvestimo) y mucho más complicado. Es algo más que representar un papel. El es deseo intenso, y a veces constituye una obseción, el deseo de cambiar la
condición social por completo, incluyendo la estructura del cuerpo.
Mientras que el trasvestista masculino desempeña el papel de mujer, el
transexualista quiere ser y funcionar, como mujer, deseando asumir
tantas de suas características como le sea posible , física, mental y
29 Final dos anos 1930
30 Cf. Funch, 2007; Meyerowitz, 2002 31 Médico endrocrinologista
sexualmente. Transexualismo e trasvestismo, añade, ocurre con mayor
frecuencia entre hombre, al igual que todas las otras desviaciones sexuales (BENJAMÍN, 1966 in ALVARADO, 1986: 34)
Eis aqui, então, o que podemos chamar de o primeiro grande corte epistemológico na espécie homossexual. O transexual é outra coisa, é mais perturbador, é mais desestruturador e, por isto mesmo, parece ser mais perigoso. O travesti fetichista, pois, é apenas um homossexual que vez por outra gosta de “usar peças íntimas do vestuário feminino” afim de excitar-se sexualmente, sua ação é apenas uma representação momentânea fruto de excitações emocionais, sexuais. O transexual não; o transexual é um fenômeno novo e, portanto, merece outro status. Mas, foi o psicanalista Rober Stoller o primeiro a voltar ao tema travestismo e ver nele algo mais que o “a-normal” homossexual restabelecendo, pois, a agonia entre “o travesti” e “o transexual”. Como nos explica Stoller,
Estamos vendo um número crescente de tais pessoas que há vinte anos eram desconhecidas. [...] Esse grupo de indivíduos foi liberado pela publicidade e pela atitude mais branda do público em relação ao
comportamento genérico invertido. Eles ousam travestir-se e mesmo
passar por mulheres; as leis, a polícia e os tribunais tendem a tratar benignamente com eles [...] Tais homens são um outro teste para a hipótese transexual, que confirmam pelo contraste. Olhemos brevemente para esses homens. Começando na adolescência com experiências eróticas precipitadas simplesmente por peças de roupas femininas, o comportamento travestido ampliou-se à medida que os anos passaram, de forma que agora, na meia idade, excitação fetichista não é mais seu
aspecto exclusivo. Embora ainda aprecie sua excitação sexual com
roupas de mulheres, ele agora organizou sua vida de tal forma que vive como uma mulher por todo o tempo [...] Ele pensa sobre si, é aceito pelo mundo como uma mulher, e mantém-se como tal. Mas ainda ama seu
pênis e suas ereções. Não deseja uma operação para “mudança de sexo”. Por muitos anos de experimentação e aprendizado esse homem trabalhou laboriosamente na criação de uma identidade feminina. (Não se vê tal trabalho no transexual). Esse processo faz uso de imitações conscientes,
arremedo (com suas hostilidades) e representação, assim como de
técnicas não conscientes semelhantes àquelas usadas por impostores e por aqueles atores que não podem apenas representar a si próprios (STOLLER, 1982: 180-1). O grifo em negrito é meu.
Como se pode perceber, Stoller (1982) buscou compreender de mais perto o que eram essas criaturas que desde 1910 receberam um nome de batismo: travestis. Já não eram mais aqueles homossexuais dos anos 1940 – da forma clínica psicopática - que adoravam os vestidos e o carnaval como também não podiam ser inseridos nesta nova categoria inventada por Harry Benjamin lá na década de 1950, os transexuais. Como afirma Stoller (1982), “os travestis” (sic) não se sentem infelizes com o seu penis e até veem nele algum prazer ao contrario dos transexuais que desejam veementemente mudar o seu aparelho genital. As pesquisas futuras confirmariam as invenções de Harry Benjamim, especificamente, no que elas têm de conteúdo diferenciador das duas categorias e a linguagem de Stoller (1982) no que ela tem de metafísica.
1.5. ANTIGOS PROBLEMAS, ANTIGAS RESPOSTAS: A ‘AMBIGUIDADE’