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REPETIÇÃO E ESTILIZAÇÃO: FUNDAMENTO DE GÊNERO

2 1 COMO ESTÃO REPRESENTADAS AS TRAVESTIS NO ESTADO DA ARTE As travestis, pois, estão representadas numa dimensão epistemológica que o

2.4. O QUE “É” GÊNERO

2.4.1. REPETIÇÃO E ESTILIZAÇÃO: FUNDAMENTO DE GÊNERO

O fundamento de gênero assim aceito – pela repetição e estilização do corpo – nos lança para um problema que muitos pesquisadores procuraram em suas problematizações evitar, escapar ou mesmo mascarar. Para aceitarmos plenamente as ideias de Butler (2003) temos também de aceitar a ideia de que não existe uma diferença essencial, substancial, ontológica entre homens e mulheres, mas apenas uma igualdade nas condições de partida – chamemos estas condições de partida de pré-discursivas - regulada por uma inteligibilidade político-normativa – ao alcance de uma narratividade universal de gênero - prenhe de intenções. Nas condições, pois, de não aceitarmos que um indivíduo naturalmente nasça

com um ou outro gênero aceitamos, como nos diz Simone de Beauvoir64, que nos

tornamos65 um gênero. Parece-me, portanto, que este “tornar-se” usado por Beauvoir

funciona como um espectro processual cuja base estabilizadora, digamos assim, é inacessível ou mesmo inalcançável e, assim, não é só e apenas travestis que são seres inacabados66, mas todos os indivíduos que passam pela formação ou processo de

generificação. É este um ponto essencial neste ínterim a meu ver. Mas, assim dizendo, creio eu, que nem Butler com sua teoria da performatividade, menos ainda Beauvoir com suas ideias de processualidade quanto ao gênero, afirmaram datas iniciais, espaços limítrofes de quando estes processos formativos deveriam ocorrer – começo e fim - na vida dos indivíduos. E eis aqui, pois, um segundo ponto de mesma importância, grandeza que muito, individualmente, acredito, para quem estuda gênero e sexualidade.

Por injunções feitas até aqui, então, somos forçados a crer que as diferenças ontológicas, essencializadoras, substancializadoras relativas ao gênero dos seres humanos devem cair no descrédito para daí aplicarmos a profunda separação diferenciadora entre metafísica da substância e biologia sendo que esta última não pode figurar veladamente como a autêntica expressão daquela. Isto é, o organismo físico – o corpo físico - é a base sobre a qual a cultura imaterial (simbólica) relativa ao gênero age e se desdobra e se fixa ou se instala, mas não é o mecanismo fundante desta cultura no próprio corpo (como seu fundamento) – como que um desdobramento da sua constitucionalidade. O que se depreende de tais ideias na hipótese do seu acato?

Muito provavelmente um pesquisador de linha foucaultiana, por acaso é por onde caminho, diria que se em aceitando a inexistência de uma substancialidade reguladora pré- discursiva relativa ao gênero, bem como, admitindo-se verdadeiramente sem quaisquer

64 Cf. Beauvoir in Butler, 2003 65 O tornar aí é a margem do gênero

subterfúgios de quaisquer naturezas ideias contraditórias a este respeito, encontramos primeiramente aquela ideia de Beauvoir em bastante evidencia – na hipótese da negação do fundante metafísico -, também encontramos as ideias de Butler relativas a uma performatividade e, por fim e, sobretudo, encontramos na base destas duas últimas ideias o jogo de correlações de forças, as relações de poder aventadas por Foucault como, digamos assim, o mecanismo ou a força universal que dá sentido e regula as relações humanas em suas mais variadas esferas no mundo social em que vivem. Chegamos, então, a um ponto do qual não podemos senão afirmar que o gênero por ser uma realidade social é uma de suas invenções, mas por está lotado num jogo de forças, num jogo de relações de poder (desejo, a vontade de poder, etc.), o gênero deve ser considerado mais do que um lócus normatizante sendo este a sua expressão final – social e pelo qual se busca libertá-lo ou limitá-lo, reduzi-lo ou conhecê-lo -, mas como uma conquista que se conquista pela luta – sobretudo, nalguns casos, individual -, pelo jogo das correlações de forças, pelo jogo das relações de poder. Ou seja, na conquista do gênero é o gênero – sua estética inteligibilizadora - o que menos importa e o que menos se procura conquistar67, pois ao

estudar gênero devemos procurar as lutas, as batalhas que ele encobre, mas que o fundamenta. O gênero – estética inteligibilizadora -, assim, está na ordem da superficialidade, da aparência significadora, identificadora, o elemento propagandista das glórias e derrotas destas batalhas – o fundamento ou o jogo de relações de forças -. O que importa, pois? O importante são os meios pretendidos e utilizados de batalha, as estratégias e as táticas montadas e executadas, todos os mecanismos de ataque e defesa, toda a formação arquitetônica da batalha, cada passo em direção do gênero que é troféu, isto é, expressão da glória, da violência, do poder conquistado; o que importa mesmo é a sua intelligentsia. O gênero conquistado, pois, confere a quem o conquista a qualidade da força

67 O gênero como uma marca, uma identidade encobre toda a luta, toda a batalha pelo emblema que passa a

utilizada na batalha algo negligenciado até aqui, uma vez que, pareceu aos pesquisadores de gênero muito mais importante as guerrilhas em nomes das assunções e o próprio emblema do que a qualidade da força empregada na conquista do gênero. O gênero conquistado deve, pois, indicar menos para ele próprio – sua aparência - do que para a qualidade da força que o indivíduo emprega/ou para ostentá-lo. Assim, o gênero não pode recair em repetições e estilizações apenas – a repetição/estilização é garantia apenas de sua sobrevivência, existência estética – no cenário social, cultural, histórico, espacial - tal qual aparece não garantindo, assim, a qualidade da força que é o seu fundamento estético -. O conceito de gênero deve, portanto, a meu ver passar pelo emprego da força e sua qualificação. O que esta Tese procura demonstrar é que o gênero não se alcança simples ou meramente por uma batalha ao nível das instituições políticas – o jogo entre as dominâncias e as ações libertárias ou insurrecionais -, mas pelo fragor e beligerância que resulta por intermédio de sua força em luta, batalha e a qualidade/quantidade desta força em meio a estas batalhas.

O corpo é a grande razão, uma multiplicidade unânime, um estado de guerra e paz, um rebanho e o seu pastor.

Nietzsche in “Assim falava Zaratustra” (38)

CAPÍTULO III

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