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PARA UMA NOVA PERSPECTIVA DE GÊNERO E AS TRAVESTIS

2 1 COMO ESTÃO REPRESENTADAS AS TRAVESTIS NO ESTADO DA ARTE As travestis, pois, estão representadas numa dimensão epistemológica que o

5. PARA UMA NOVA AURORA TRAVEST

5.2 PARA UMA NOVA PERSPECTIVA DE GÊNERO E AS TRAVESTIS

A maioria das inúmeras produções que trabalham as questões travestis desde a perspectiva de gênero costumam todas falhar sempre no mesmo ponto. E por quê? Porque são uma das outras copias com algumas características subjetivas - de estilo - diferenciadoras. E qual é este ponto onde todas convergem e falham? O campo estabelecido para a disputa. O que salta às vistas, pois, de um bom pesquisador é que o campo estabelecido para a apreciação de gênero nunca é o campo estabelecido pelas próprias travestis e, nisto, convenhamos, elas já começam em larga desvantagem. Depois, que o campo onde os seus analistas, pesquisadores e intérpretes as situam goza de uma instável estabilidade conceitual mesmo em seu núcleo duro. O que quero dizer? Exatamente, que o pensamento melhor desenvolvido, portanto, melhor sistematizado e que serve de base para os pesquisadores colocarem as travestis em perspectiva sofre de algumas limitações. E, aponto, portanto, a primeira limitação que é de natureza estritamente política. Diz-nos Butler que

O que circunscreve esse lugar como “o corpo feminino”? É “o corpo” ou “o corpo sexuado” a base sólida sobre a qual operam o gênero e os sistemas da sexualidade compulsória? Ou será que “o corpo” em si é

modelado por forças políticas com interesses estratégicos em mantê- lo limitado e constituído pelos marcadores sexuais? (Butler, 2003:

185) O grifo em negrito é meu

Os problemas aí levantados revestem-se de uma aparente profundidade quando relacionados às travestis pelo conjunto das obras que analisei. Mas, revela também por outro lado a dificuldade que enfrentam os interessados pesquisadores, intérpretes e analistas de encontrar novos caminhos, principalmente, os caminhos que as próprias travestis apontam. Reduz-se quanto se impõe, assim, doutrinariamente uma via de mão única – o jogo de forças políticas/relações de poder – pelas quais desde esta perspectiva de gênero se pode encaixar, para poder entender, as travestis. E o que se quer dizer com

política115? Bom, a política também é uma força, mas qualitativamente uma força fraca. É

pela política que se amesquinha e enfraquece o que é grande e forte, pelo menos, é politicamente que assim estão situadas as travestis no jogo das correlações de força. Assim, para que se consiga obter algum êxito via o jogo de forças políticas é preciso que o “sujeito” negue (se) – e tal negação só é possível num quadro geral dos estabelecimentos simbólicos – o que a seu respeito fora imputado, inventado ou como se prefere dizer, construído. Como se percebe ali nos problemas levantados por Butler (2003) é, justamente, esta a sua preocupação. Encontrar um meio pelo qual no jogo das relações de forças políticas, bem como, no jogo de relações de poder-saber, as agências de determinados “sujeitos” adquiram força suficiente (força de conjunto) – a questão da qualidade é decisiva – para que consiga tomar os meios de produção da verdade, este é o primeiro ponto (a construção de poderosas análises); segunda limitação, re-significar todo o estabelecido, aqui entra a força política, sua ação (o alargamento dos canteiros de significados). E isto só se consegue – esta é a política queer – desde que se procure afirmar a negação que acabou por se constituir como condição de um sujeito determinado. Assim, é preciso tomar determinados termos como “viado”, “bicha”, “traveco”, “canequeiro” “boga”, “péla”, etc., para afirmar (afirmação fraca) esta sua condição como requisito para a deflagração das batalhas. Então, o ponto mais alto desta política é transformar a injúria, digamos, em orgulho ou em ação política de combate – ao preconceito, à discriminação e a intolerância, etc. É, assim, que, sub-repticiamente, no jogo de relações de forças políticas que esta política queer se impõe e domina mais uma vez o que já se encontrava dominado. Nasce-se, assim, sob o estigma da injúria – como determinação do poder disciplinar - uma classe/categoria onde todos estão reduzidos por baixo a uma sentença de igualdade – são

115 Leia-se aqui pequena política

todos iguais nesta diferença -. A própria Butler (2003) procura aprofundar a questão para que não seja má compreendida e sugere que deveríamos considerar

[...] o gênero, por exemplo, como um estilo corporal, um “ato”, por assim dizer, que tanto é intencional como performativo, onde “performativo” sugere uma construção dramática e contingente do sentido (BUTLER, 2003: 198-9) O grifo em negrito é meu

Tais ideias geraram enormes confusões. Primeiro, porque negava a condição metafísica do corpo, isto é, o corpo como um “ser”, depois, porque sugeria que deveríamos enxergar o gênero como resultado de uma serie de atos repetidos ou repetitivos historicamente, na sua linguagem específica, atos repetidos compulsoriamente. E o compulsoriamente é, justamente, aquele termo que sinaliza para uma realidade política sujeitada por um lado e assujeitadora por outro. Portanto, o trabalho analítico de Butler (2003) tem por finalidade oferecer um novo caminho pelo qual a realidade dos sujeitos sujeitados inverta-se de tal forma que, de uma forma ou de outra, libertem-se das opressões de que são vítimas. Em inúmeras produções que tive acesso não encontrei uma única produção para quem todo o trabalho travesti fosse um trabalho cuja finalidade tivesse como regra o estabelecimento de sua vontade de domínio. Pelo contrário, a ideia de domínio e suas implicações soavam mal. Portanto, o quadro geral que nos apresentam as produções sobre travestis é de que elas são vítimas de uma política opressora, discriminatória e que é preciso libertá-las de tal jugo e, assim, configuram-se como veneno e antídoto. A título de uma exemplificação encontrei em uma apreciação da obra etnográfica de Don Kulick realizada por Miriam Goldenberg o valor mais fundamental de minha crítica e que nos diz que,

Don Kulick mostra que a principal característica das travestis de

Salvador, e de todo o Brasil, é que elas adotam nomes femininos, roupas femininas, penteados e maquiagens femininos, pronomes de tratamento femininos, além de consumirem grande quantidade de hormônios femininos e pagarem para que outras travestis injetem até 20 litros de silicone industrial [...] em seus corpos, com o objetivo de

adquirir aparência física feminina, com seios, quadris largos, coxas grossas e, o mais importante, bundas grandes. A despeito de todas estas transformações, muitas das quais irreversíveis, as travestis não se definem como mulheres. [...] Ao contrário, afirmam, são homossexuais

– [...] Portanto, as travestis não se consideram homens, muito menos

mulheres (GOLDENBERG, 20/08/2008 in Jornal do Brasil) Destaques

meus

Bom, antes de tudo é necessário que se desfaça o caráter de falsa unidade – também de sua pretensão universalista - que o próprio Dom Kulick empresta à sua obra para tratar as travestis e que Goldenberg (2008) aceitou sem a menor desconfiança. Sua pesquisa está ambientada na Bahia, restritivamente, em Salvador, e não transcende tais limites geográficos, portanto, pretender e querer universalizar seus achados a um país tão vasto e de mentalidade tão diversificada como é o Brasil é forçar um pouco a barra. Por outro lado é mesmo verdade que há travestis que afirmam o seu caráter homossexual – mas, antes seria preciso demarcar as condições em que tal afirmação emerge e Dom Kulick a este respeito ignora ou finge ignorar tais condições. Depois, que inúmeras travestis afirmam, diferentemente, a sua condição feminina, de sentir-se mulher, de ser mulher e aí, o sentir e o ser, ganham um status completamente novo, um novo valor.

Enfim, se levássemos a sério a inteligência teórica de Judith Butler – quanto à formação de gênero – parte de toda a problematização que as pesquisas contemporâneas se colocam dissolver-se-ia como castelos de cartas que desabam a um leve sopro. A própria caracterização a que chega Goldenberg (2008) a respeito da obra de Dom Kulick é uma confirmação das apreciações teóricas de Butler (2003) por um lado e por outro identifica muito bem o trabalho realizado pelas travestis. O que se diagnostica muito mal, como já afirmei, aí é a intencionalidade, a finalidade que se pretende com todo este trabalho (travesti). Se Butler (2003), então, sugere – por questões de estratégia política – vermos gênero como um conjunto de atos repetitivos/repetidos, performativos, – historicamente fundados -, onde, pressupõe-se que o ato sobrepõe-se, porque esta é a sua ação, ao corpo (a

a outros atos) “dado” para transformá-lo, re-significá-lo, no limite, libertá-lo de suas determinações históricas naturalizadas, então, as diferenças significadoras que separam e valorizam “travestis” e “mulheres” deveriam desaparecer, no entanto, não é o que vemos. Pelo contrário, nas obras contemporâneas ainda se perde muito tempo e dinheiro procurando identificar o gênero das travestis quando não, como assevera Benedetti (2005), afirma-se que as travestis têm um gênero próprio, o gênero travesti. Vemos, então, a dificuldade dos pesquisadores em aceitar a redução da “mulher” à revelação de que a “mulher” é mais uma “falsidade” que afirmada por mil meios como verdade naturalizou- se. A crítica de Dom Kulick, então, às pesquisas sobre o tema vai noutra direção ao afirmar que,

Ao invés de escutarem o que dizem as travestis – e elas dizem

explicitamente que são homossexuais -, esses autores preferem formatar a imagem das travestis como ícones pós-modernos,

sugerindo que elas rejeitam toda e qualquer identidade. O cineasta e

escritor Arnaldo Jabor, por exemplo, assegura que “o travesti não deseja a identidade; ele quer a ambigüidade (sic) (1993: 27). Hélio Silva (1993: 125, 162) concorda e acrescenta, com um toque poético mas de muito pouca serventia, que a condição travesti é uma “não- condição” e que as travestis não ocupam espaço – ocupam um “não-

lugar” (p. 91) (KULICK, 2008: 233) O grifo em negrito é meu

Toda essa formação discursiva a respeito das travestis é uma formação discursiva de superfície. Ela ainda se ressente e guarda resíduos metafísicos – política discursiva imperativa. Todas as pesquisas estão voltadas para esta pífia – que já teve o seu lugar, mas que agora é preciso superar – discussão. As relações de forças, isto é, os jogos das relações de forças, por exemplo, entre “mulheres” e “travestis” devem agora transcender para um campo não de forças políticas limitadoras – o próprio gênero -, mas para o campo das transvalorações dos valores, das superações, da afirmação de si por meio de suas práticas afirmadoras ou o que no dizer de Michel Foucault assumiria o termo de subjetivação (estética da existência), pelo menos, do último Michel Foucault. O gênero, assim, deveria assumir primeiro, a condição de campo no sentido aproximado ao que P. Bourdieu

emprega para significar tal coisa; segundo, que este campo não fosse um simples campo onde as forças lutassem para dominar e limitar as efetividades de outras potências, mas que deveria ser lido como um campo de agônicas batalhas – o sentido de agonia aqui deve prevalecer – onde a dinâmica da vida seria a superação de si por si pelo outro. Portanto, quando travestis afirmam, como fazem Luana e Vanessa, ambas informantes de Hugo Denizart, que “travesti é mais do que mulher, é melhor do que mulher” é que elas já ultrapassaram as querelas intelectualoides nas quais os seus pesquisadores pretendem rebaixá-las, prendê-las e dominá-las no que eu parafraseando Foucault diria ser fruto de um mal uso do uso dos poderes. O gênero aí, entendido, transcendeu às formas fixas de identidades ou de identidades múltiplas e variáveis. O que se deseja aí é a disputa, é a agonia, a luta, a guerra e o prazer que disto resulta. Assim, quando Peres (2005) afirma, segundo uma informante sua, que a vida das travestis é uma “fogueira de vaidades” que isto possa ser lido num aspecto transcendental e não apenas como algo trivial como se costuma apreciar. É, preciso, então, avaliar neste campo de agônicas batalhas as forças subjetivadoras ou forças cuja vontade é de potência para qualificá-las conforme elas afirmem ou neguem a vida, restrinjam/limitem ou se efetivem em sua vontade.

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