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O JOGO DAS CORRELAÇÕES DE FORÇA: A DISTANCIA TRAVESTI O que é este jogo chamado de “jogo de correlações de forças”? É a luta – ou

LEGISLATIVAS, RESOLUÇÕES JUDICIAIS

5.4.5. A CONQUISTA TRAVESTI OU A NATUREZA ESTETIZANTE TRAVESTI O que devemos tanto às travestis? Antes, devemos-lhes alguma coisa? Talvez,

5.4.5.1. O JOGO DAS CORRELAÇÕES DE FORÇA: A DISTANCIA TRAVESTI O que é este jogo chamado de “jogo de correlações de forças”? É a luta – ou

relação - entre “o” poder, ou antes, os poderes e as diversas formas, maneiras, modos, manifestações, expressões de resistência: a dinâmica neste ínterim é estritamente política. Aqui, então, insere-se uma questão que é muitíssimo mais fundamental: a liberdade. O pesquisador, o analista, o intérprete, então, quando não muito bem orientado – seduzido já pela mais fundamental armadilha estratégica do poder: o saber – termina por assumir – na forma de um imperativo -, por fazer circular e a disputar – mesmo querendo negar ou da disputa fugar – os meios de produção da verdade. Ou seja, luta-se, e esta luta é menos das travestis do que dos seus pesquisadores, analistas ou intérpretes, pela manutenção da coisa já interpretada ou por sua superação, mas que, de qualquer forma, a sua manutenção ou a sua superação, não corresponde a uma superação da própria estratégia que totalizadora

sobrevive em meio a disputas internas. O que quero, exatamente, dizer é que esta luta pelo domínio da coisa interpretada e que Foucault chamou de a luta pelo domínio dos “mecanismos de produção da verdade” faz uso de determinado objeto não estritamente interessado em se chegar à verdade (isto já demasiadamente denunciado, revelado) do objeto – um dos ideais confessos e velados da ciência - ou da coisa interpretada, antes, em dominar os meios pelos quais as verdades a respeito da coisa interpretada são estabelecidas. Portanto, nunca é o objeto mesmo o interesse do saber – ele provoca esta miragem, esta vertigem, é como “o” poder produz estrategicamente a ilusão que nos afaga o espírito, eis aí a sua sedução -, mas, como meio estratégico do poder, o que interessa, a sua função é garantir o domínio daquilo que já é dominado (manutenção, conservação, preservação, etc. ou seja lá o termo que se quiser dar), é procurar dominar o que ainda não tem domínio, é expandir os próprios domínios, sua vontade é a do mais poder. Então, o que tem tudo isto a ver com as travestis?

A superação do poder-saber – leia-se poder disciplinar - não é nunca a revelação de uma verdade ou verdades (figuram-se como sub-estratégias da estratégia maior que é o proprio saber) ou mesmo o perspectivismo das análises. Sua superação implica numa feição e acabamento novos de sua fachada, quero dizer, na confecção de novas problematizações, no alcance de novas soluções a respeito sempre das mesmas coisas interpretadas de maneira que velhos problemas encontrem novas roupagens com que se apresentar, que nos apresente novas resoluções. Ou o que quero dizer mais exatamente: tudo o que se diz, como se diz, por que se diz e quando se diz a respeito das travestis como coisa interpretada ou objeto de estudo faz parte de um programa ou de uma determinação que o próprio poder se impõe – alargando ou estreitando, limitando ou concedendo – demandas, pedidos, direitos, eliminando perigos, ou seja, pasteurizado. Portanto, a tomada de objeto para investigação – o que anima pesquisadores, analistas e intérpretes pelo

mundo todo – e que Foucault chamou influenciado por F. Nietzsche de “a vontade de saber” é, na verdade, e mais fundamentalmente a vontade de dominar e, assim, como disse antes, “o” saber entra aí como sua estratégia de autodefesa ou de conservação (do poder), sua lógica fundadora, organizadora e reguladora, sua tática de manutenção que recria sempre objetos e cenários sem nunca desfazer ou olvidar a própria estratégia reguladora. Pois bem, mas como ou em que as travestis podem a este respeito ser consideradas superadoras deste domínio?

Bom, em primeiro lugar todas as suas ações vão de encontro às determinações morais – aqui o modelo/referencial de moral única assusta - do poder e isto quer dizer, exatamente, que o que se poderia aí interpretar como uma resistência – como prazer em fugir, em enganar, burlar, correr, esconder, negar e mesmo enfrentar, etc. - ao poder resulta em algo muito mais profundo, em algo muito mais forte. Isto é, não é um mero exercício político de resistência, perversor, subversor, uma insurreição, etc. – disto tratarei um pouco mais a frente – com que investiram ou caricaturaram as travestis, ideologicamente. É muito mais. É uma afirmação de existência. Então, quando digo que é uma afirmação de existência quero dizer mais, exatamente, que o individuo aí que se afirma cria um novo modelo, uma nova regra, uma nova moral (individual) – se se quiser – para adornar a vida, para enfeitá-la com novos mantos simbólicos, que sabe que as dificuldades do caminho até a este momento triunfante – afirmação criadora, o sim de sua afirmação - requer mais do que o instinto ou o pathos da ciência, da insurreição, da subversão, da luta política. O pathos travesti está, justa e exatamente, no fato de que ele consegue transcender a todas as limitações/restrições constitucionais (impostas pelo saber como lógica inteligibilizadora) que “o” poder lhe impõe, a transcender a todas as táticas de combate124 (do fazer político)

124 Um bom exemplo disto se acha na prostituição. Que é a prostituição neste caso, isto é, a prostituição de

que “o” poder aí articula para lhe fazer desistir de sua própria vontade (negar-se), porque tal vontade é do ponto de vista do poder disciplinar muitíssimo perigosa, uma vez que, para que sua vontade se afirme ela precisa destruir a vontade que lhe obriga negar-se enquanto vontade, ou seja, ela necessita subjetivar-se, individualizar-se ou que quero dizer: ela precisa tornar-se, mostrar-se forte. A primeira martelada, então, travesti, vem justamente de seu desejo – sabe o que significa a palavra desejo? Desejo este que a impulsiona a afirma-se (fazer saber o que já se sabe a seu respeito, mas que não fora produzido, enunciado por ela mesma, de um modo, maneira, jeito completamente novo, sob o ponto de vista de seu próprio labor valorativo), desejo esse que se transforma em força. Como diz “Fernanda” em Albuquerque e Jannelli,

Duas metades de coco foram os meus primeiros seios. Diante do espelho grande, Cícera [sua mãe] me surpreendeu e: outra surra. Eu cobria entre as coxas com as mãos para ver como Aparecida. Na minha fantasia, barriga redonda e fenda de menina. [...] As meninas me afastavam: mas você é menino, vai com os meninos! [...] Então eu ficava, desafiava (Fernanda in ALBUQUERQUE e JANNELLI, 1995: 29) O grifo em negrito é meu

“Ficar” e “desafiar” neste contexto significam correlativa e respectivamente a dois outros verbos: afirmar e superar. Ou seja, afirmar está para ficar, como superar está para desafiar. Isto quer dizer mais, exatamente, que o que se procura, se deseja, se quer é dizer, fazer saber coisa diversa do que se diz e se afirma a seu respeito – saber individualizante, de sapore, isto é, da experiência individual -; que o modo como “o” poder que me toma como objeto de sua crítica, de seu saber; que me toma como objeto de suas limitações, restrições, de sua imperatividade moral; que me toma como o outro (negativo da relação) a quem se deseja impor, sujeitar, moralizar deve ser desafiado, isto é, lá onde ele estende as suas táticas, as suas estrategias, é justamente aí onde deve ser superado. Agora posso, então, voltar ao que chamei de a coisa mais fundamental do “jogo de correlações de força”:

vontade? Enfim, com que novo valor, com que nova tábua de valores a prostituição é condecorada pelas travestis?

a liberdade. A liberdade do indivíduo, portanto, consiste, como eu a entendo, em perceber, por meio de suas ações, como “o” poder se transforma em desejo, o desejo se transforma em força e a força, por fim, transforma-se em afirmação. E estas são as três metamorfoses do poder travesti.

5.4.5.2. A ANTIPOLÍTICA TRAVESTI: A METAMORFOSE DO ESPÍRITO

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