I. UMA BREVE TEORIA DA CORRUPÇÃO
1.2. Conceito jurídico-penal de corrupção
1.2.1. Corrupção na esfera pública
A corrupção na esfera pública está enraizada na existência de variados e inúmeros
exemplos nos três Poderes constitucionalmente organizados (Executivo, Legislativo e
Judiciário) e nas três esferas do Estado (federal, estadual e municipal).
A corrupção no Executivo envolve denúncias que ensejaram o impeachment de dois
ex-Presidentes da República, bem como a prática de ilícitos em licitações e contratações públicas,
recebimento de propinas resultantes de financiamento irregular de campanhas eleitorais, além
da malversação do patrimônio público com o envolvimento de governadores de Estado e
prefeitos.
No alcance nacional talvez o principal motivo ensejador de referidas posturas
reprováveis e fundamentais para justificar o atraso que o país vivencia no âmbito político,
cultural e econômico venha a ser a existência de uma classe política desprovida de uma
formação ideológica, a qual não domina conteúdos mínimos, sendo eleita por diversos partidos
em um multipartidarismo extremamente inconsistente, poroso e volátil e ensejando a eleição de
cada legislatura de um Congresso multifacetado e fragmentado, o que obriga o chefe do Poder
Executivo a valer-se de prática política denominada de “presidencialismo de coalização”.72
72
Cuida-se de magistral definição de cientista político que, ao se debruçar sobre o assunto, apontou suas causas,
lecionando que: “em formações de maior heterogeneidade e conflito, aquela estratégia é insuficiente ou inviável.
Nestes casos, a solução mais provável é a grande coalizão, que inclui maior número de parceiros e admite maior
diversidade ideológica. Evidentemente, a probabilidade de instabilidade e a complexidade das negociações são
muito maiores. Estes contextos, de mais elevada divisão econômica, social e política, caracterizam-se pela
presença de forças centrífugas persistentes e vigorosas, que estimulam a fragmentação e a polarização. Requerem,
portanto, para resolução de conflitos e formação de ‘consensos parciais’, mecanismos e procedimentos
institucionais complementares ao arcabouço representativo da liberal democracia”. ABRANCHES, Sérgio
Henrique Hudson de. Presidencialismo de coalização: o dilema institucional brasileiro. Revista de Ciências
Sociais, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, p. 27, 1988.
A formação de um amplo leque de alianças entre o chefe do Poder Executivo e os
parlamentares integrantes dos mais variados segmentos desfigura a ideia inicial de coalização,
sendo praticado em nosso país desde o advento da República Nova e da Constituição Federal
de 1988 uma espécie de “presidencialismo de cooptação”, valendo-se o Presidente da República
de práticas promíscuas para obtenção de aprovação dos projetos de interesse do Poder
Executivo.
Referida situação obriga o chefe do Poder Executivo a negociar com um Congresso
Nacional completamente fragmentado,73 composto de uma base política porosa e fluída, quer
pela ausência de fidelidade partidária, quer ainda por conta da existência de 26 (vinte e seis)
partidos políticos com representação no Parlamento, sendo registradas diversas práticas no
intuito de desvirtuar a coalizão política. Existe a celebração de acordos com base nas trocas de
favores, na liberação de emendas parlamentares (com negociação expressa do pagamento dos
valores contidos em referidas emendas apresentadas por parlamentares ou bancadas em troca
de votos relevantes para aprovação de medidas provisórias, Emendas Constitucionais ou até
mesmo admissibilidade de duas denúncias criminais ofertadas em desfavor do Presidente da
República), elevado número de cargos públicos de livre nomeação, sendo utilizados critérios
eminentemente políticos e de “apadrinhamento” para o seu preenchimento, além de diversas
outras sinecuras.
A corrupção no Legislativo sempre foi uma tônica durante todo o período da
redemocratização brasileira, sendo várias as Comissões Parlamentares de Inquérito74 e
denúncias de malversação dos recursos públicos praticada por integrantes do Congresso
Nacional.
Os escândalos referentes a práticas de corrupção, quando atingem elevados índices de
reprovação popular e indignação, acompanhados de apurações internas ou dos órgãos de
fiscalização, implicam em cassação de mandatos e denúncias ofertadas pelo Procurador-Geral
da República perante o STF em razão do foro por prerrogativa de função dos parlamentares
federais (art. 102, I, “b”, da Lex Legum).
73
“O presidencialismo de coalização é importante para a governabilidade no Brasil, mas recentemente se tornou
um problema para ela, assim como para a efetivação de uma agenda política progressista”. AVRITZER, Leonardo.
Impasses da democracia no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, p. 29.
74
CPI dos “anões do orçamento”, CPI dos precatórios, CPI dos Correios, que desaguou no “Mensalão”, entre
outras.
Da inclusão fraudulenta e do superfaturamento da lei orçamentária anual (anões do
orçamento) à compra de ambulâncias (máfia das sanguessugas) ou até mesmo à venda de apoio
parlamentar (“Mensalão”75), várias e multifacetadas são as formas de prática de corrupção por
integrantes do Poder Legislativo.
Também o Poder Judiciário não está distante da prática de condutas tipificadas como
corrupção; muito ao contrário, várias são as denúncias de envolvimento de magistrados em
situações reprováveis, etiquetadas como corruptas (venda de sentenças como apurado, v.g., na
operação Anaconda e na operação Naufrágio, desvio de recursos como no caso do escândalo
na construção do Fórum Trabalhista de São Paulo, dentre outras), chocando a opinião pública
e os estudiosos do direito penal, notadamente pelo fato de competir ao Poder Judiciário aplicar
a lei ao caso concreto de forma imparcial, punindo as hipóteses de corrupção devidamente
formalizadas em denúncias apresentadas pelo Ministério Público.
Ademais, embora existam órgãos próprios de fiscalização e controle (corregedorias
internas e o Conselho Nacional de Justiça – CNJ), quando se trata de investigar o Poder
Judiciário, entra em cena um elevado espírito de corpo e uma leniência na aplicação das regras
restritivas e punitivas, podendo-se afirmar que, “quando os principais suspeitos são membros
da magistratura, a Justiça no Brasil costuma tardar e falhar”,76 sem contar a existência da
absurda possibilidade prevista na Lei Orgânica da Magistratura Nacional – LOMAN de
aplicação da pena de aposentadoria para um magistrado condenado administrativamente pela
prática de falta grave (art. 42, V, da Lei Complementar nº 35/79).
Conclui-se que, infelizmente, a corrupção que campeia no Brasil afeta diretamente os
três Poderes da República, sempre tocando diretamente à administração pública e ao erário, o
que prejudica a regular prestação de serviço público e os interesses da coletividade.
Nesse sentido:
75
“O ‘mensalão’ certamente constitui um dos maiores esquemas de corrupção da história do Brasil. Envolveu
membros do Congresso Nacional, partidos políticos, dirigentes de órgãos da Administração Pública federal direta
e indireta, instituições financeiras e empresas privadas. O esquema foi batizado de ‘mensalão’ por envolver
repasses periódicos – em alguns casos os repasses eram mensais - de recursos obtidos ilicitamente a parlamentares
e a partidos políticos em troca de apoio a proposições e postulações do Governo no Congresso Nacional. (...) Os
recursos angariados tinham por finalidade o financiamento de campanhas eleitorais, o aliciamento de
parlamentares e partidos para a base de apoio do Governo, no Congresso Nacional e o enriquecimento ilícito de
agentes públicos, políticos, empresários e demais participantes do esquema”. FURTADO, Lucas Rocha. Ob. cit.,
p. 351.
Quem não conhece algum caso de magistrado, de qualquer grau de jurisdição, que
aceitou favores indevidos, proferiu decisões bizarras em benefício de amigos, diretos
ou indiretos, segurou processos em sua gaveta, levando à prescrição, entre outros
fatos? Se o Judiciário está enfermo de corrupção, o Legislativo e o Executivo
encontram-se na UTI.
77Dessarte, após restar demonstrado que a corrupção é uma prática comum e
lamentavelmente disseminada no funcionamento de todos os Poderes da República,
passar-se-á a analisar a corrupção na esfera pública, figurando como vítima a administração pública
brasileira.
Referida conduta pode ser materializada em diversos tipos penais, estando tutelada no
Código Penal no capítulo dos crimes contra a administração pública praticados por agentes
públicos e por particulares (corrupção passiva e corrupção ativa – arts. 317 e 333, Código Penal)
e nos crimes contra a administração pública estrangeira (arts. 337-B e 337-C, Código Penal),
além de diversos outros preceitos penais que estão diretamente ligados à prática de uma conduta
ímproba, desleal, amoral e antiética, a exemplo do peculato (art. 312, Código Penal), inserção
de dados falsos em sistema de informação (art. 313-A, Código Penal), concussão (art. 316,
Código Penal), excesso de exação (art. 316, § 1º, Código Penal), prevaricação (art. 319, Código
Penal), advocacia administrativa (art. 321, Código Penal), tráfico de influência (art. 332, Código
Penal) e corrupção ativa de testemunha, perito, tradutor ou intérprete (art. 343, Código Penal).
As hipóteses mais comuns de corrupção envolvendo o agente público (corrupção
passiva – art. 317, Código Penal) e o particular (corrupção ativa – art. 333, Código Penal) serão
esmiuçadas no próximo capítulo da presente tese.
Relevante registrar que, além da corrupção ativa praticada por um particular que
mantenha qualquer tipo de relacionamento com a administração pública (extraneus) e da
corrupção passiva encetada por um agente público que trai a lealdade e a boa-fé que deveriam
ser inerentes ao cargo público (intraneus), existem várias outras condutas passíveis de serem
definidas como corruptas, descritas em diversos tipos penais contidos na parte especial do
Código Penal, além de se encontrarem espraiados pela legislação penal extravagante. Pode-se
citar, dentre referidos ilícitos, os seguintes:
i. Os tipos penais elencados no Decreto-Lei nº 201/67, o qual estabelece condutas
definidas como crimes de responsabilidades de prefeitos e vereadores.
Merece registro o fato de que, embora esse Decreto-Lei trate de crime de
responsabilidade, em verdade está tipificando ilícitos que “se encontram na
espacialidade penal, sem qualquer interferência da Câmara de Vereadores”,78 sendo
que as condutas tipificadas no art. 1º, incisos I a XXII, estão umbilicalmente
vinculadas à probidade administrativa, situação diversa dos ilícitos
político-administrativos elencados na Lei nº 1.079/50, julgados pelo Parlamento;
ii. O crime de corrupção praticado por fiscal de tributos, tendo como vítima a
administração pública fazendária, voltada para a arrecadação tributária, etiquetado
no art. 3º, II, da Lei nº 8.137/90. Cuida-se de confronto aparente de normas (existente
entre o art. 3º, II, Lei nº 8.137/90 e o art. 317, Código Penal) a ser resolvido pela
incidência da regra que estabelece a aplicação de lei posterior específica em
detrimento de lei anterior genérica. Assim se posiciona a doutrina:
O fiscal de tributos que solicita vantagem indevida para deixar de cumprir sua
obrigação comete crime contra a ordem tributária, devendo ser incurso nas sanções
do art. 3º, II, da Lei nº. 8.137/90, e não nas do art. 317 do CP, uma vez que este
dispositivo prevê como agente servidor de qualquer natureza, enquanto a Lei nº.
8.137/90 destaca como sujeito ativo do delito apenas e tão-somente aquele funcionário
público responsável pelo lançamento ou cobrança de tributos, modificando para estes
a imposição de pena.
79Portanto, trata-se de corrupção específica, tendo o servidor público fazendário aceito,
solicitado ou recebido vantagem indevida para deixar de lançar ou cobrar tributo ou
contribuição social ou cobrá-los parcialmente. Registra-se que, embora
ontologicamente a conduta descrita no art. 3º, II, da Lei nº. 8.137/90 seja
absolutamente igual à contida no art. 317 do Código Penal, as penas são inferiores
(reclusão de 3 a 8 anos e multa), enquanto a mesma conduta descrita no Código Penal
possui uma pena de reclusão de 2 a 12 anos e multa;
iii. Crimes previstos na Lei de Licitações e Contratos – Lei nº. 8.666/93.
Referidos ilícitos penais diretamente ligados à probidade administrativa e à
economicidade implicam na tipificação de condutas que atentam contra o regular
78
CORRALO, Giovani da Silva. Responsabilidade de prefeitos e vereadores: comentários ao Decreto-lei
201/67.São Paulo: Atlas, 2015, p. 4.
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