A Constituição Federal de 1988 ao estabelecer especial preocupação com determinados
bens jurídicos, além da necessária proteção à dignidade da pessoa humana, passou
expressamente a versar sobre os mandados constitucionais de criminalização.
Registre-se existir vedação expressa à obtenção de mandato eletivo mediante abuso do
poder econômico ou em razão da prática da corrupção, implicando na possibilidade de
ajuizamento de Ação de Impugnação de Mandato Eletivo – AIME, nos termos do art. 14, § 10,
da Constituição Federal, que afirma:
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto
direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
§ 10. O mandato eletivo poderá ser impugnado ante a Justiça Eleitoral no prazo
de quinze dias contados da diplomação, instruída a ação com provas de abuso
do poder econômico, corrupção ou fraude [grifo nosso].
Consigne-se que, embora o objeto da AIME seja a desconstituição do diploma expedido
pela Justiça Eleitoral e a consequente cassação do mandato eletivo, tem-se expressa
preocupação no combate à corrupção ao se estabelecer como uma das hipóteses ensejadoras da
procedência de referida demanda.
Embora não exista expressa previsão constitucional para a punição penal pela prática da
corrupção eleitoral, evidente a existência de um comando implícito exalando da Carta Magna,
posto que “a corrupção mencionada no art. 14, §§ 10 e 11, da Constituição não é coisa diversa
do que a ‘compra de votos’, ou captação ilícita de sufrágio”.381
Tem-se, portanto, uma determinação de aplicação de medidas cíveis eleitorais severas
na hipótese da prática de corrupção para obtenção de mandato eletivo.
Extrai-se de referido dispositivo um mandado de criminalização ou punibilidade
implícito.
Com efeito, além dos mandados de criminalização explícitos, analisados no tópico
anterior, existem os mandados de criminalização implícitos, ou seja, aqueles que decorrem
diretamente de uma leitura e interpretação sistemática do texto constitucional, mesmo não
existindo um dispositivo expresso e taxativo no corpo normativo da Constituição Federal,
determinando a aplicação e incidência do direito penal para regulamentar a matéria.
Também nos mandados implícitos de criminalização, tem-se uma limitação da liberdade
normativa do Parlamento, havendo uma determinação para que sejam supridas lacunas de
punibilidade, estando o Poder Legislativo obrigado a atender o querer da Lex Legum,
configurando referida omissão situação atentatória ao regular funcionamento dos Poderes da
República.
Enfrentando a questão do mandado de criminalização implícito, posiciona-se a doutrina:
Não há dúvida, que as baterias do Direito Penal do Estado Democrático de Direito
devem ser direcionadas preferencialmente para o combate dos crimes que impedem a
concretização dos direitos fundamentais sociais. Nesse ponto, aliás, entendo que é
neste espaço que reside até mesmo uma obrigação implícita de criminalização, ao lado
dos deveres explícitos de criminalizar constantes do texto constitucional.
382381
GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Direito eleitoral. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 223.
382
STRECK, Lênio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade: da proibição de excesso
(ümbermassverbot) à proibição de proteção deficiente (untermassverbot) ou de como não há blindagem contra
normas penais inconstitucionais. Revista da AJURIS, nº. 97. Porto Alegre: Associação dos Juízes do Rio Grande
do Sul, 2005, p. 177.
Ademais, tanto nos mandados explícitos como nos implícitos a penalização de condutas
que objetivam proteger determinados bens jurídicos deve ter como principal alvo a proteção de
direitos fundamentais.
Pode-se afirmar, após a exibição do conceito de mandado implícito de criminalização,
que a corrupção eleitoral encontra-se subestimada pelo legislador ordinário, não havendo
adequação entre o tipo penal etiquetado no art. 299 do Código Eleitoral, a pena fixada no
preceito secundário de referido dispositivo penal e a relevância do bem jurídico a ser protegido.
Com efeito, mesmo a corrupção eleitoral passando a ser alvo de preocupações da
doutrina e da jurisprudência recente, acredita-se que carecem referidas análises de uma visão
principiológica, promovendo um estudo calcado nos mandados de criminalização implícitos,
especialmente em razão da proteção insuficiente de relevante bem jurídico, notadamente porque
“o combate à corrupção eleitoral não se afigura como uma opção do legislador brasileiro, mas
como uma obrigação decorrente de mandado implícito de criminalização contido na própria
Constituição Federal”.383
Essa proteção jurídica deficiente fica evidenciada quando da análise da pena possível de
vir a ser aplicada para o crime de corrupção eleitoral (01 a 04 anos de reclusão), sendo permitida
a suspensão condicional do processo (considerando a pena mínima de 01 ano – art. 89, Lei nº.
9.099/95) ou a condenação em regime aberto com substituição de pena privativa de liberdade
por restritiva de direitos (art. 33, § 2º, “c” conjuminado com o art. 44, I, Código Penal), quando
referida conduta atenta contra o Estado Democrático de Direito, as eleições livres e o direito ao
voto.
Portanto, pode-se concluir que a forma como atualmente o direito penal responde às
práticas delitógenas tipificadas como compra de votos e demais abusos do poder econômico
que configuram a prática da corrupção eleitoral (art. 299, Código Eleitoral) implica em situação
de verdadeira proteção jurídica deficiente, havendo menoscabo a um mandado implícito de
punibilidade, notadamente diante de agressão ao querer da Constituição Federal.
Na lição de Antonio Carlos da Ponte:
Enquanto a corrupção eleitoral continuar sendo tratada como forma da criminalidade
ordinária, com os meios próprios de um Direito Penal tradicional, a própria existência
do Estado, aqui no Brasil arquitetado como Democrático de Direito, estará ameaçada,
senão condenada. Essa a chaga que o Direito Penal tem obrigação de combater, não
contemplar.
384Ademais, a ausência do combate efetivo à prática da corrupção eleitoral tem
impulsionado ou até estimulado que referida conduta se alastre por todo o país, havendo
variados exemplos de abuso do poder econômico e uso de recursos de caixa dois como sendo
decisivos no resultado final de pleitos eleitorais, desaguando em múltiplos casos de eleições
forjadas, sendo alijada a vontade do eleitor, transformando o momento do voto, sagrado para a
existência e fortalecimento da democracia, em um negócio, viabilizando eleições maculadas
pela eiva da compra de votos e burlando-se a regra democrática de investidura aos mandatos
eletivos.
Resulta evidente a proteção deficiente de relevante bem jurídico penalmente tutelado,
devendo-se ofertar sugestão de imediata alteração normativa a ser encetada pelo Congresso
Nacional.
Registre-se que, não obstante o PL nº. 4.850/2016 (“10 Medidas contra a Corrupção”),
já aprovado na Câmara dos Deputados e enviado ao Senado da República, tenha criminalizado
o caixa dois eleitoral, preenchendo relevante lacuna de punibilidade, nada, absolutamente nada,
aborda referido projeto acerca da viabilidade de aumento da pena para o crime do art. 299 do
Código Eleitoral, sendo desperdiçada relevante oportunidade de esforço concentrado do
parlamento brasileiro debruçado para debater o temário da corrupção.
Mesmo os diversos escândalos recentes de corrupção, sempre desaguando na ilegalidade
de contribuições empresariais para campanhas eleitorais, provocando abuso do poder
econômico nas campanhas eleitorais, prática de caixa dois eleitoral, lavagem de dinheiro,
enriquecimento indevido de agentes públicos e corrupção eleitoral, dentre outros ilícitos penais,
não foram fortes o suficiente para fazer o Parlamento brasileiro enxergar a necessidade de
urgente alteração legislativa, modificando-se o tipo penal estampado no art. 299 do Código
Eleitoral, dosando de maneira adequada a reprimenda para gravíssima conduta, atentatória ao
estado democrático de direito.
É preciso inserir esse debate no Congresso Nacional, devendo existir uma mudança de
paradigmas na interpretação de referida norma penal, envolvendo o Poder Legislativo e o Poder
Judiciário, promovendo-se a incidência dos princípios constitucionais do direito penal,
ensejando uma evolução interpretativa na punição do crime de corrupção eleitoral,
demonstrando a severidade de referida conduta e suas graves consequências, restando
impossível tratar o abuso do poder político e econômico, interferindo na vontade do cidadão e
na legitimidade democrática, com leniência e alargada benevolência, como ocorre na
atualidade.
Entende-se que referida alteração normativa deve, no mínimo, equiparar o crime de
corrupção eleitoral (art. 299, Código Eleitoral) aos tipos penais de corrupção ativa e passiva já
delineados nos arts. 317 e 333 do Código Penal brasileiro, fixando-se a mesma reprimenda,
abolindo-se a possibilidade de incidência da suspensão condicional do processo (art. 89, lei nº.
9.099/95), passando a existir uma concreta e efetiva possibilidade de aplicação de reprimenda
suficiente e proporcional para combater conduta que atenta contra a cidadania e a democracia.
Essa é uma das principais conclusões deste trabalho, afirmando-se de maneira
categórica que existe uma omissão do Poder Legislativo em adequadamente tipificar referida
conduta (corrupção eleitoral), combatendo a compra de votos e a existência de eleições
viciadas, logrando a vontade do eleitor, deixando-se de proteger um mandado implícito de
criminalidade contido na Constituição Federal de 1988, havendo nessa omissão grave violação
de direito humano fundamental ao combate à corrupção, impedindo que a cidadania viceje e
que existam eleições livres, fruto de uma democracia plena.
Urge que seja arrostada e enfrentada referida omissão, devendo ser apresentado Projeto
de Lei ao Parlamento brasileiro nesse sentido e, nos casos concretos, quando do julgamento de
feitos criminais que apuram a corrupção eleitoral, deve-se afastar a incidência das regras
despenalizadoras (art. 89, Lei nº. 9.099/95), posto que absolutamente incompatíveis com um
mandado implícito de criminalização e com a relevância do bem jurídico tutelado.
4.3.1. Os mandados internacionais implícitos de criminalização
Além dos mandados internacionais expressos de punibilidade ou de criminalidade,
existem os mandados implícitos, consistindo em obrigação dos Estados em criminalizarem as
graves condutas que implicam em violação de direitos humanos reprimidos e criminalizados
pela comunidade internacional.
O Estado que venha a integrar a comunidade internacional passa a assumir
compromissos e obrigações de tutela e proteção dos direitos humanos fundamentais, sendo que
os mandados implícitos de criminalização exigem adequada intepretação oriunda do poder
judiciário, notadamente quando da interpretação de textos normativos, principalmente no
escopo de punir criminalmente grave violação dos direitos humanos, evitando-se a impunidade.
Nesse sentido:
O direito internacional dos Direitos Humanos estipulou verdadeiros mandados
implícitos de criminalização por meio do reconhecimento do dever de investigar e
punir criminalmente os autores de violação de direitos humanos. De fato, para que se
puna criminalmente é necessário que o Estado tenha antes tipificado a conduta em
tela.
385Por fim, no intuito de adequadamente apresentar uma proteção jurídica suficiente,
proporcional e apta a enfrentar violações aos direitos humanos, deve-se colocar a vítima de
referidas agressões em seu epicentro.386
Essa mudança de interpretação e paradigmas implica na necessária conclusão de que a
punição leniente da corrupção eleitoral no Brasil, deixando desprotegidas todas as vítimas de
grave violação de direito humanos fundamental (cidadania e igualdade do voto), implica em
descumprimento de mandado implícito de criminalidade internacional, podendo autorizar,
inclusive, a provocação por parte de qualquer das vítimas aos Tribunais Internacionais de
proteção aos direitos humanos, como, por exemplo, a Corte Interamericana de Direitos
Humanos.
Ademais, não se pode olvidar que a Convenção Americana de Direitos Humanos
estabelece como sendo direito das vítimas de violações aos direitos humanos o acesso à justiça,
uma adequada proteção judicial e a punição dos autores das agressões aos direitos fundamentais
(arts. 1.1, 8.1 e 25 do Pacto de São José da Costa Rica).
385
RAMOS, André de Carvalho. Ob. cit., p. 280.
386