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III. DOS CRIMES DE CORRUPÇÃO, BEM JURÍDICO TUTELADO E DA CORRUPÇÃO

3.2. Da necessidade de tipificação do enriquecimento ilícito do agente público

Discute-se muito na atualidade, como uma medida relevante e imprescindível no

combate à corrupção, que se promova a tipificação do enriquecimento ilícito do agente público.

Referida propositura consta das célebres “10 Medidas contra a Corrupção” apresentadas

de afogadilho pelo Ministério Público Federal, exibindo justificativas para a alteração

legislativa com a inserção de proposituras materializadas em referidas medidas, sendo que, em

sua grande maioria, se apresentam desprovidas de adequada reflexão e juridicidade.

Dentre tais propostas existem algumas que incorrem em situações de flagrante

inconstitucionalidade, podendo-se citar, à guisa de exemplo, a proposta inicial de utilização de

provas ilícitas obtidas de “boa-fé”, como se fosse possível prova ilícita amealhada de “boa-fé”,

ou, ainda, o estabelecimento de um “teste de integridade” a ser submetido como requisito para

o ingresso em determinadas carreiras públicas ou a restrição de recursos processuais penais,

tais como o fim dos Embargos Infringentes e de Nulidade e a limitação ao habeas corpus,

estabelecendo-se a propositura original subscrita pelo Ministério Público Federal como

condição de procedibilidade de referida ação constitucional à existência de prisão strictu sensu

(demonstração da privação da liberdade como requisito para conhecimento da ação de habeas

corpus).

Registre-se que, embora referidas medidas tenham recebido aplausos do público e

conseguido amealhar assinaturas em profusão, fruto de uma campanha de mobilização

desenvolvida pelo Ministério Público Federal, possuem algumas delas necessidade de

aprovação pelo Congresso Nacional, considerando-se a existência de lacunas de punibilidade

ou obsolescência da legislação penal e processual vigente. Entrementes, merecem ser

acoimadas de açodadas e atécnicas, devendo passar por adequado escrutínio do Parlamento

(rejeição de algumas proposituras que colidem com a Constituição Federal, além da necessidade

de apresentação de emendas a várias outras proposituras) e do Poder Executivo (veto) antes de

se tornarem lei, notadamente após o recebimento das diversas críticas embasadas da

comunidade jurídica.

283

283

“A proposta do MPF de criminalizar o enriquecimento ilícito é infundada e apressada. Ela se baseia em

considerações policialescas de facilitação da prova, incompatíveis com a ideia de culpabilidade e a presunção de

inocência, e que, ainda por cima, parecem ser de duvidosa eficácia”. GRECO, Luís. Reflexões provisórias sobre o

Especificamente com relação ao enriquecimento ilícito do agente público, questão

relevante e que vem sendo objeto de discussão em várias partes do mundo, o Ministério Público

Federal, ao apresentar a propositura de tipificação da conduta, estampa como principal

justificativa para criminalizar o enriquecimento ilícito o fato de configurar essa postura uma

“prova indireta da corrupção”.

Eis equivocada explicação e justificativa para um projeto que, nesse aspecto, tem seus

méritos. Com efeito, não se pode objetivar a tipificação de uma conduta por ela representar a

prova da prática de outros crimes. Sobredita proposta, além de desprovida de técnica, implica

em agressão ao texto constitucional, ofendendo os princípios da legalidade,284 da culpabilidade

penal285 e da presunção constitucional de inocência (art. 5º, LVII, Constituição Federal).

Comentando essa propositura e as justificativas ofertadas pelo Ministério Público

Federal (proponente e mentor intelectual das “10 Medidas contra a Corrupção”), diz a doutrina:

A única virtude desse argumento é a sinceridade. De resto, se tudo o que se puder

dizer contra determinado comportamento é que ele seria prova indireta de outro,

ter-se-á uma chamada pena de suspeita, o que contraria o princípio da culpabilidade e

um de seus principais correlatos processuais, a presunção de inocência. O princípio

da culpabilidade contém, como núcleo, o direito de ser condenado e punido apenas

pelo que realmente se fez. A condenação e a punição pelo crime que se propõe

introduzir contêm, assim, uma mentira: não é por enriquecer, e sim por ter praticado

atos de corrupção ou de peculato, é que estaremos condenando. Ocorre que esses atos

não se conseguem comprovar, com o que fica manifesta a violação dos princípios

mencionados.

286

Mesmo com referidas críticas (todas legítimas, registre-se), entende-se que, após

apontado adequadamente o bem jurídico violado, é necessário tipificar o crime de

enriquecimento ilícito do servidor público que consegue acumular e amealhar patrimônio

crime de enriquecimento ilícito. In: LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano (Orgs.). Crime e política: corrupção,

financiamento irregular de partidos políticos, caixa dois eleitoral e enriquecimento ilícito.Rio de Janeiro: Editora

da FGV, 2017, p. 283.

284

“O limite que impõe este princípio formal condiciona a atuação do Estado durante todo o processo criminal;

isto é, influi na forma do estabelecimento da lei, dos delitos e de suas penas, de seus procedimentos e da forma de

cumprimento das penas. As exigências que derivam da lex previa, lex scripta, lex stricta e da lex certa constituem

todo um referente garantista que confronta a vocação arbitrária do Estado”. BUSATO, Paulo César. Fundamentos

para um direito penal democrático. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 146.

285

“El principio de culpabilidad impone que la pena sólo sea aplicada si, em primer lugar, el autor pudo conocer

la antijuridicidad de suh echo, si pudo comprender y si pudo comportarse de acuerdo com esa comprensión”.

BACIGALPO, Enrique. Principios constitucionales de derecho penal. Buenos Aires: Editorial Hammurabi,

1999, p. 158.

incompatível com os seus rendimentos oficiais, desde que instado a apresentar a prova da

aquisição regular e não o faça de maneira convincente.

Ademais, apresenta-se como relevante destacar que referida tipificação também deve

açambarcar as hipóteses de utilização de interposta pessoa (vulgos “laranjas” ou “testas de

ferro”) na aquisição patrimonial, facilitando com referida conduta a ocultação patrimonial do

agente público.

Acredita-se que a adequada tipificação do enriquecimento ilícito, indevido e

injustificado do agente público durante o exercício de suas funções públicas importa em

relevante desdobramento no combate à corrupção.

Deve-se consignar que existe uma tendência mundial de criminalização do

enriquecimento ilícito do servidor ou agente público que passe a revelar exteriores sinais de

riqueza absolutamente incompatível com os seus rendimentos declarados e oficiais.

Merece registro que sobredita conduta encontra-se tipificada em vários países da

América do Sul, os quais possuem problemas com a corrupção política, similares aos

enfrentados pelo Brasil, como Argentina,287 Peru, Paraguai e Bolívia, da América Central,

como Panamá e Costa Rica, e da Europa, como Portugal e Espanha.

Ao analisar o bem jurídico protegido por referida alteração penal, a doutrina argentina

afirma que: “Este tipo penal intenta proteger la imagen de probidad y transparencia de la

administración, evitando que los encargados de los negocios ‘públicos’ realicen conductas

indebida sen el afán de acrecentar su patrimônio”.288

Trata-se de tipificação polêmica e com grande possibilidade de resvalar em

inconstitucionalidade, notadamente em razão do propósito de se punir condutas antecedentes,

sem a devida prova, conspurcando-se o princípio da legalidade estrita em matéria penal, ou,

ainda, não se observando a garantia constitucional da presunção ou do estado de inocência.

287

De acordo com o previsto no art. 268º, nº.2, do Código Penal Argentino, com o nomen iuris de “Enriquecimiento

Ilícito de Funcionarios y Empleados”, pune-se o enriquecimento ilícito do funcionário ou empregado público que,

devidamente notificado, não justifique satisfatoriamente o aumento de seu patrimônio ou de interposta pessoa,

durante o exercício da suas funções públicas, ou até dois anos após o término.

288

DÍAZ, Carlos A. Chiara. Enriquecimiento Ilícito de Funcionarios y Empleados. Disponível em:

<http://www.pensamientopenal.com.ar/system/files/cpcomentado/cpc37774.pdf>. Acesso em: 03 nov. 2017.

Em Portugal, ao ser criminalizado o enriquecimento ilícito ou injustificado, com a

inserção de alteração legislativa,289 rapidamente se questionou a ofensa de referida tipificação

penal às garantias constitucionais, sendo que a Corte Constitucional Portuguesa declarou a

inconstitucionalidade desse tipo penal, reconhecendo que objetivava a novel redação do Código

Penal criminalizar o enriquecimento ilícito ou indevido por punir crime antecedente, ferindo o

princípio da legalidade, além de menosprezar a presunção de inocência.

Comentando a decisão da Corte Constitucional, afirma doutrinador lusitano:

Concordamos com o resultado da decisão – o juízo de inconstitucionalidade das

normas penais incriminadoras do enriquecimento ilícito – e reconhecemos a validade

material dos argumentos anteriormente indicados – violação dos princípios

constitucionais da necessidade da intervenção penal, da determinação da conduta

típica e da presunção de inocência.

290

Mesmo enfrentando sérias críticas oriundas da doutrina tanto nacional quanto

internacional, foi avante a iniciativa de tipificação do enriquecimento ilícito do servidor público

que ostente patrimônio absolutamente incompatível com o subsídio ou remuneração do cargo

ocupado, avançando o debate no Parlamento brasileiro, no bojo das “10 Medidas contra a

Corrupção”, discutindo-se o PL nº. 4.850/2016.

Registre-se que referido desenho de lei (PL nº. 4.850/2016) que insere o art. 312-A no

Código Penal291 já foi aprovado em dois turnos perante a Câmara dos Deputados (sofrendo

várias emendas – supressivas, aglutinativas e de alteração de redação); entrementes,

permaneceu intacta a redação originária que define o crime de enriquecimento ilícito do agente

289

O Código Penal Português foi alterado para a inclusão do art. 335º-A a fim de estabelecer como crime a seguinte

conduta: “Quem, por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver patrimônio, sem

origem lícita determinada, incompatível com os seus rendimentos e bens legítimos é punido com pena de prisão

até três anos”.

290

COSTA, João Francisco de Faria. Crítica à tipificação do crime de enriquecimento ilícito: plädoyer por um

direito penal não iliberal e ético-socialmente fundado. In: LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano (Orgs.). Crime e

política: corrupção, financiamento irregular de partidos políticos, caixa dois eleitoral e enriquecimento ilícito. Rio

de Janeiro: Editora da FGV, 2017, p. 322.

291

Art. 312-A. adquirir, vender, emprestar, alugar, receber, ceder, possuir, utilizar ou usufruir, de maneira não

eventual, bens, direitos ou valores cujo valor seja incompatível com os rendimentos auferidos pelo servidor

público, ou por pessoa a ele equiparada, em razão de seu cargo, emprego, função pública ou mandato eletivo, ou

auferidos por outro meio lícito.

Pena – prisão, de 3 (três) anos a 8 (oito) anos, e confisco dos bens, se o fato não constituir elemento de crime mais

grave.

§ 1º. Caracteriza-se o enriquecimento ilícito ainda que, observadas as condições do caput, houver amortização ou

extinção de dívidas do servidor público, ou de quem a ele equiparado, inclusive por terceira pessoa.

§ 2º As penas serão aumentadas de metade a dois terços se a propriedade ou a posse dos bens e valores for atribuída

fraudulentamente a terceiras pessoas.

público, sendo que, atualmente, o PL foi remetido ao Senado da República, onde se encontra

tramitando, tudo com estrita observância do devido processo legislativo.

Insiste-se que, não obstante as críticas doutrinárias existentes, é necessário tipificar o

crime autônomo de enriquecimento ilícito ou indevido do agente público, justificando-se

referida medida notadamente em razão de relevante bem jurídico a ser protegido (probidade da

administração pública e moralidade administrativa), concretizando-se princípios

constitucionais expressos,

292

além de existir um desvalor autônomo a ser reprovado na conduta

do funcionário público que enriquece indevidamente ou de forma inexplicável, ao amealhar

patrimônio absolutamente incompatível com os rendimentos de seu cargo público, notadamente

se comprovado, após a estrita observância do devido processo legal, que não possui referido

agente qualquer outra fonte de renda lícita.

Nesse sentido, afirma-se que “talvez seja possível justificar um tipo penal de

enriquecimento ilícito. O funcionalismo público existe para servir ao público, e não para

enriquecer os que supostamente servem. O bem coletivo que é a própria instituição do serviço

público parece ser posto em questão por funcionários que usufruem em vez de servir”.293

Consigne-se, todavia, ser absolutamente inadequada a redação do art. 312-A do Código

Penal, sendo enumerados 09 (nove) verbos no núcleo do tipo,294 afirmando ser uma conduta

comissiva, quando o ideal seria tipificar o enriquecimento ilícito ou indevido como conduta

omissiva, passando a existir o dever do agente público em prestar contas sobre a aquisição

regular de seu patrimônio, bem como da origem dos recursos desprendidos para a compra de

imóveis, veículos, artigos de luxo, depósitos, inclusive fora do país, revelação exterior de

riqueza incompatível com os subsídios do cargo público, etc., sempre que instado a fazê-lo.

Somente dessa forma ter-se-ia a tipificação de conduta sem resvalar em ofensa à

Constituição Federal, notadamente aos princípios constitucionais da legalidade e da

292

“Os bens do sistema social se transformam e se concretizam em bens jurídicos dignos de tutela penal (em bens

jurídico-penais) através da “ordenação axiológica jurídico-constitucional”. (...) É nesta acepção que os bens

jurídicos protegidos pelo direito penal devem considerar-se concretizações dos valores constitucionais expressa

ou implicitamente ligados aos direitos e deveres fundamentais e à ordenação social, política e econômica. É por

esta via – e só por ela, em definitivo – que os bens jurídicos se “transformam” em bens jurídicos dignos de tutela

penal ou com dignidade jurídico-penal, numa palavra, em bens jurídicos-penais”. DIAS, Jorge de Figueiredo.

Direito penal: parte geral. Tomo I – questões fundamentais: a doutrina geral do crime.2. ed. Coimbra: Coimbra

Editores, 2007, p. 119-120.

293

GRECO, Luís. Ob. cit., p. 281.

294

“A criminalização segue o modelo que alguns vêm chamando de ‘técnica espingarda de cano serrado’”.

GRECO, Luís. Ob. cit., idem, ibidem.

culpabilidade (art. 5º, XXXIX, Constituição Federal) ou da presunção de inocência (art. 5º,

LVII, da Lex Legum).

Registre-se que não se apresenta como constitucionalmente possível presumir a má-fé

ou a fraude, partindo-se de uma percepção preconcebida de que o servidor ou agente público

adquiriu ou amealhou seu patrimônio de forma indevida ou ilícita.295

Somente se afigura tecnicamente adequado imputar a conduta de enriquecimento ilícito

ao agente público após restar regularmente comprovado, em procedimento que deve, sob pena

de malferimento ao princípio constitucional da legalidade penal (art. 5º, XXXIX, da

Constituição Federal), respeitar o devido processo legal (due process of law, com os seus

consectários lógicos – contraditório e ampla defesa – art. 5º, LIV e LV, Constituição da

República), possibilitando ao agente público demonstrar como se deu a aquisição do patrimônio

que ostenta, fazendo-se um juízo de compatibilidade entre os rendimentos amealhados pelo

agente público e o patrimônio por ele adquirido e exibido.

Somente após ser facultada a possibilidade de demonstração de como se deu a aquisição

patrimonial suspeita por parte do servidor público, caso não venha a ser ofertada explicação

suficiente e razoável, é que será possível adotar providências no intuito de apurar o

enriquecimento ilícito, não se presumindo absolutamente nada, havendo a necessidade de o

órgão acusador se desincumbir do ônus da prova.

Portanto, entende-se como adequado e necessário, havendo lacuna de punibilidade, que

se promova a tipificação da conduta de enriquecimento ilícito ou indevido, punindo-se o agente

público que está ocupando relevantes funções públicas para servir-se do público e não para

servir o público, locupletando-se de recursos ou valores em razão do cargo, além de apresentar

patrimônio absolutamente incompatível com seus rendimentos, em situação de total e completa

inversão de valores, e representar agressão clara e direta aos postulados constitucionais da

295

“Atravessamos um momento confrangedor, em que as decisões dos órgãos de soberanía em matéria penal

invocam, como suma autoridade, os brocardos segregados pela sabedoria popular, num regresso atávico a formas

primitivas de legitimação (?) que fazem gala em desprezar a racionalidade jurídica. É tempo de despedir a política

criminal do rifão e as aberrações que produz. Quem cabritos vende e cabras não tem, normalmente é dono de um

talho. Ora essa”. CAEIRO, Pedro. “Quem cabritos vende e cabras não tem...” (sobre a criminalização do chamado

enriquecimento ilícito). In: LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano (Orgs.). Crime e política: corrupção,

financiamento irregular de partidos políticos, caixa dois eleitoral e enriquecimento ilícito.Rio de Janeiro: Editora

da FGV, 2017, p. 359.

moralidade administrativa na gestão da coisa pública e da probidade administrativa no exercício

de cargos ou funções públicas.

Deve-se afastar a tipificação nos moldes sugeridos no PL nº. 4.850/16, promovendo-se

um maior aprofundamento acerca da matéria e debatendo-se o bem jurídico tutelado e as formas

de tipificar referida conduta ilícita, sem valer-se de presunções de culpabilidade ou de

menosprezo às garantias constitucionais.

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