III. DOS CRIMES DE CORRUPÇÃO, BEM JURÍDICO TUTELADO E DA CORRUPÇÃO
3.1. Dos crimes de corrupção ativa (art. 333, Código Penal) e corrupção passiva (art. 317, Código
A corrupção nas relações com o Estado lamentavelmente se caracteriza por ser uma
prática arraigada nos costumes da sociedade. Conserva-se por largo interstício,274 resulta em
inúmeros prejuízos para a administração pública brasileira em todas as suas esferas de governo
e provoca sérios danos para a coletividade, restando desviados recursos do Estado que poderiam
ser destinados a contemplar prioridades constitucionais, tais como: atendimento à saúde, cujos
problemas assistenciais são os mais variados (falta de médicos, leitos, medicamentos, hospitais
273
“Crime de colarinho branco pode ser definido aproximadamente como um crime cometido por uma pessoa de
respeitabilidade e alto status social no curso de sua atividade. (...). Os criminosos do colarinho branco dos dias
atuais são mais suaves e menos diretos que os barões do roubo do último século, mas não são menos criminosos”.
SUTHERLAND, Edwin H. Crime de colarinho branco: versão sem cortes. Tradução: Clécio Lemos. Rio de
Janeiro: Revan, 2016, p. 34-35.
274
“A venalidade e o abuso (desvio) de poder, são um mal que circunda a Administração Pública desde a
Antiguidade, fruto da avidez, do apego ao poder, do protecionismo dos apaniguados, das sinecuras e do
afrouxamento dos deveres cívicos por parte daqueles que detêm parcela do poder estatal, estimulados pelos
corruptores que concebem o Estado como mero instrumento colocado a serviço dos seus interesses pessoais”.
PRADO, Luiz Regis. Tratado de direito penal brasileiro: parte especial. v. VII. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2014, p. 125-126.
equipados, etc.); segurança pública, estando algumas cidades do Brasil entre as mais violentas
do mundo; educação, merecendo destaque o baixo desempenho dos alunos da rede pública
quando submetidos a exames de proficiência; habitação, com um enorme déficit de residências
e moradias populares; investimento em infraestrutura (estradas, rodovias, portos, aeroportos,
etc.), dentre outros, passando referidos recursos desviados a enriquecer agentes políticos
inescrupulosos que criam enormes esquemas de perpetuação do poder e desvio de valores do
erário, subvertendo o patrimônio público (res publica), o qual é convertido em ganhos privados
(cosa nostra).
Esse assunto encontra-se na ordem do dia em razão dos inúmeros escândalos
vivenciados, sempre envolvendo servidores públicos desonestos, normalmente responsáveis
pelo exercício de atribuições com alguma esfera de poder discricionário (fiscais, policiais,
técnicos responsáveis por execução orçamentária, membros de comissão de licitação, etc.),
agentes políticos (desde o mais modesto vereador até Presidente e ex-Presidentes da República)
que traem os mandatos outorgados pelo povo e particulares (empresários, lobistas, doleiros,
agentes do mercado financeiro e todo tipo de intermediários) gananciosos e que objetivam
potencializar seus lucros em detrimento da coletividade.
Referidos servidores públicos (normalmente indicados politicamente para ocupar cargos
relevantes e com poder decisório) representam a significativa minoria dos ocupantes das
funções públicas, porém, com suas reprováveis condutas, provocam um enorme estrago e
elevado prejuízo ao erário. Contaminam a administração pública e irradiam essas nefandas
práticas – notadamente ao adotarem o recebimento de propina como modus vivendi –,
promovendo a mercancia de suas funções públicas e das decisões adotadas (objetivando
interesses pessoais e não o interesse público), além de se enriquecerem e potencializarem os
ganhos de capital de empresários e especuladores inescrupulosos, sempre à custa do patrimônio
público e do desenvolvimento social.
É nesse contexto, lamentavelmente atual e com revelações diárias de novos golpes,
esquemas e fraudes, normalmente investigadas nas já célebres “operações” encetadas pela
Polícia Federal ou “Força Tarefa” envolvendo vários órgãos públicos (Polícia Federal,
Ministério Público Federal, Receita Federal, etc.), que deve ser realizado o estudo dos crimes
de corrupção ativa e corrupção passiva, agasalhados no nosso ordenamento jurídico (arts. 333
e 317, Código Penal) como crimes autônomos.
O legislador brasileiro não optou pela bilateralidade no momento de tipificar o crime de
corrupção,275 promovendo a separação da corrupção ativa e da corrupção passiva, sendo
perfeitamente possível a punição do corruptor, independentemente da punição do corrompido
e vice-versa, além de se etiquetarem as condutas em tipos penais distintos e independentes, de
modo que a comprovação de um deles não pressupõe, necessariamente, a do outro.
Em outras palavras, pode haver a corrupção ativa na modalidade “oferecer”, por
exemplo, e não existir a corrupção passiva, diante da recusa do agente público honesto em obter
vantagem indevida; por outro lado, também se apresenta como possível existir a prática da
corrupção passiva, na modalidade “solicitar”, v.g., não havendo a anuência do particular.
Ademais, as penas abstratamente cominadas para a corrupção ativa e passiva são
rigorosamente iguais (reclusão de 02 a 12 anos), havendo exceção apenas com relação à
corrupção passiva privilegiada (art. 317, § 2º, Código Penal).
Pode-se definir a corrupção passiva como a aceitação, o recebimento ou a solicitação de
promessa de vantagem indevida por parte de funcionário público, feita diretamente ou por
interposta pessoa, em razão das atribuições de sua função. Consiste no recebimento, aceitação
ou pedido de vantagem indevida para fazer ou deixar de fazer algo inerente ao exercício de
cargo público. Cuida-se de mercantilizar os interesses públicos e o exercício de função pública
que deve ser desempenhada em prol da coletividade.
Acerca da vantagem indevida existe discussão doutrinária se necessariamente deve estar
ligada ao ganho patrimonial276 ou pode ser concretizada com um proveito desvinculado do
valor econômico.277
O autor desta tese posiciona-se pela adoção da forma mais ampla, entendendo como
perfeitamente possível configurar a existência de vantagem indevida (rectius ilícita)
independentemente de um êxito ou ganho diretamente econômico.
275
“A concepção bilateral da corrupção pressupõe que, em tal delito, o funcionário e o particular engendram a
prática de um ato a ser executado por aquele, em razão da as função pública, mediante a obtenção de vantagem ou
promessa de obtê-la, havendo, portanto, uma necessária convergência de vontades entre eles”. PRADO, Luiz
Regis. Ob. cit., p. 130.
276
“Há de representar um pretium no mercado ou compra e venda do ato funcional: dinheiro ou qualquer utilidade
material”. HUNGRIA, Nélson. Ob. cit., p. 370.
277
“Porém, há de se notar que os interesses, mesmos os materialistas na sociedade são extremamente volúveis,
nem sempre girando em torno de dinheiro”. NUCCI, Guilherme de Souza. Ob. cit., p. 18.
É preciso combater o conflito de interesses ao se criar uma cultura anticorrupção e
buscar coibir que funcionários públicos utilizem seus cargos em benefício privado, separando
os interesses econômicos das obrigações do agente público e proibindo o servidor de utilizar
informações privilegiadas e de aceitar presentes, dádivas, facilidades ou qualquer outro tipo de
vantagem externa.
A corrupção ativa, por seu turno, pode ser sintetizada como sendo a conduta de oferecer
ou prometer vantagem indevida a funcionário público para determiná-lo a praticar, omitir ou
retardar ato de ofício, tratando-se de “tipo autônomo/misto, alternativo/incongruente, comum e
de mera atividade”.278 É a conduta do particular que oferece vantagem indevida ou qualquer
tipo de pagamento para o servidor público com intuito de obter favores praticados pelo agente
público no exercício ou em razão do cargo, praticando ato de ofício;279 busca o particular a
compra de boas relações ou de decisões do agente público, ao pagar pelo que não se encontra à
venda.
É fundamental para a discussão do tipo penal corrupção ativa que se demonstre a
existência de uma vantagem indevida, lecionando a doutrina:
Por vantagem indevida tanto se pode entender a vantagem que não precisaria ser paga
como a vantagem que não poderia ser paga. O crime de corrupção obviamente se
refere às vantagens que não podem ser pagas – isto é, vantagens de pagamento,
solicitação, promessa etc. proibidos; no entanto, a menos que se defenda um absoluto
puritanismo asséptico dos funcionários públicos e uma completa proibição do
recebimento de vantagens em razão da função, que provavelmente não coincide com
os valores dominantes de nossa sociedade, nem toda vantagem que não precisa ser
paga necessariamente será uma vantagem que não pode ser paga.
280O mesmo autor apresenta uma hipótese atual e corriqueira, demonstrando situação
limítrofe, na qual mesmo havendo reprovação moral da coletividade na conduta descrita, resta
clara a obtenção de vantagem por parte do servidor público. Tal situação não configura os
crimes de corrupção (ao menos no sentido estrito de enquadramento dos tipos penais
etiquetados nos arts. 317 e 333 do Código Penal).
278
PRADO, Luiz Regis. Ob. cit., p. 258.
279
“O ato de ofício é exatamente a atribuição inerente à função pública, à esfera de realização do funcionário, algo
que somente ele pode empreender – e não pessoa fora dos quadros administrativos”. NUCCI, Guilherme de Souza.
Ob. cit., p. 19.
280
QUANDT, Gustavo de Oliveira. O crime de corrupção e a compra de boas relações. In: LEITE, Alaor;
TEIXEIRA, Adriano (Orgs.). Crime e Política: corrupção, financiamento irregular de partidos políticos, caixa
dois eleitoral e enriquecimento ilícito.Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017, p. 67.
Eis o caso que demonstra, com precisão cirúrgica, como funciona a compra de boas
relações (iniciativa do particular envolvendo o agente público), sem configurar, contudo, o
ilícito penal de corrupção:
Um exemplo de grande importância prática é a solicitação e fruição, por magistrados
e outros funcionários públicos de alto escalão, de patrocínios e auxílios de empresas
públicas e privadas para a promoção de eventos de classe: a insistência com que a
imprensa divulga a realização desses eventos reflete o fato de que, na visão de muitos,
a aceitação de tal tipo de vantagem põe em dúvida a imparcialidade dos juízes nos
julgamentos das causas que envolvam seus patrocinadores. No entanto, abstraído do
fato de que, por questões óbvias, a jurisprudência jamais enxergará nesses casos
algum crime de corrupção, o critério da venalidade encontra aí seu limite; vende a
toga o juiz que aceita patrocínio (ainda que parcial) para se hospedar em resort à
beira-mar para debater a economia brasileira?
281Tanto quanto sutil, tem-se como relevante a distinção, podendo-se afirmar que a
“aceitação de vantagens injustificadas oferecidas pelo particular interessado apenas em
aproximar-se do funcionário, sem vistas a uma contraprestação específica e imediata, não
constituiria corrupção passiva”.
282Em outras palavras, somente restará configurada a corrupção passiva e também a ativa
na hipótese em que ficar comprovado que o oferecimento de vantagem ao agente público está
vinculado à comercialização de um ato de ofício, não se amoldando ao ilícito penal a “compra
de boas relações” pelo particular.
Além dos tipos penais estampados no Código Penal nos arts. 317 e 333, existem outros
dispositivos na legislação extravagante que tutelam a moralidade no serviço público, a
probidade administrativa, a impessoalidade na prática dos atos administrativas e a
economicidade no gasto dos recursos da coletividade, estando diretamente vinculados às
condutas definidas latu sensu como corruptas, tendo como vítimas a administração pública, o
erário e toda a sociedade.
Entrementes, sobreditos dispositivos legais não serão objeto de análise no presente
estudo, servindo a conceituação da corrupção ativa e passiva para ser cotejada com a análise do
crime de corrupção eleitoral doravante esmiuçado.
281