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CAPÍTULO III – IMAGENS EM TRANSE: CONSTRUÇÕES VISUAIS DO

3.2 Oju odé: as fotografias como espaços de construção identitária do Ilê Fará

3.2.3 Cozinhar para Incluir

As fotografias que serão analisadas neste subitem estão relacionadas à categoria denominada cotidiano. E para representar este grupo foram escolhidas as imagem de um dos exercícios de suma importância para as atividades míticas do candomblé, que é o ato de cozinhar. Diante do exposto, reforça-se que a cozinha também se apresenta como um dos lugares sagrados do candomblé, uma vez que é nela que são preparadas as comidas dos orixás e dos membros da comunidade de terreiro em estudo.

Para pensar o espaço da cozinha como ambiente de empoderamento, ressignificação e reafirmação das identidades dos membros do Fará Imorá Odé, será analisada mais uma sequência de imagens produzidas por Io Hardy e Kelvis Torres. As fotografias foram realizadas durante as atividades religiosas do Ilê Fará Imorá Odé, no momento em que o espaço da cozinha apresenta-se como lugar de grande relevância, pois nela são feitas todas as oferendas, comidas e materiais necessários para que as cerimônias sejam realizadas. É nela também, que o mágico começa ser moldado através dos processos de torrar, cozinhar e montar os elementos que por meio das cantigas irão ganhar significado e força energética.

A imagem de autoria de Io Hardy, (figura 23) expressa um dos principais momentos dentro do Ilê Fará Imorá Odé, mas que também está presente em outras comunidades de terreiro. Trata-se neste caso, do aprendizado e da elaboração das oferendas destinadas aos orixás. Enquanto preparam as comidas dos orixás, as filhas e filhos de santo, também constroem sua identidade mítica e rememoram sua ancestralidade através dos pratos e oferendas feitas dentro das cozinhas do Ilê axé. Porém é importante ressaltar que mesmo que estas comidas que são oferecidas dentro das casas de santo fazem referência à África e suas divindades, isso não quer dizer que seja um retorno ao continente, mas sim, que esta comida realiza uma menção simbólica à cultura africana. Sobre isso , Souza Júnior (1999), aponta:

Não se trata de voltar à África, mas fazer com que a comida se faça africana, ou seja, remonte a histórias e passagens, visões de mundo associadas aos ancestrais, princípios

universais ou antepassados, aos primórdios dos tempos quando estes fundaram a humanidade, constituíram as cidades e criaram os diferentes grupos. Visões de mundo juntadas a inúmeras outras experiências históricas constituídas no Novo Mundo é este fazer que faz com que tal comida seja comida de santo( SOUZA JÚNIOR,1999,p.340)

Figura 23 : Iaô preparando acarajés para Oiá, Io Hardy,2017.

É seguindo esta ideia de acesso e de rememoração ancestral através do comer e do fazer a comida dos orixás, que a cozinha de axé se apresenta como espaço de rememoração da ancestralidade e da construção da identidade mítica do terreiro, da mesma maneira que das pessoas que estão presentes nela. No momento em que a iaô iniciada para o orixá Oiá151, uma mulher e negra, prepara a comida preferida de seu santo, neste caso em especifico o acarajé152, esta entra em contato com sua ancestral principal, a dona de sua cabeça e de seus caminhos, ou seja, ela faz o alimento e logo se

151 Oiá trata-se de um orixá feminina relacionada aos raios e a guerra. Sua figura também está atribuída dentro dos terreiros de candomblé com as grandes tempestades e fortes ventanias.

152 O acarajé é uma comida geralmente oferecida ao orixá oiá. Trata-se de um bolinho feito com uma massa de feijão fradinho e frito em azeite de dendê. Este acarajé não vai recheio, como os vendidos pelas baianas em salvador, mas o princípio básico da receita do bolinho é o mesmo, já que muitas das baianas de acarajé de salvador são candomblecistas.

reconhece e se identifica com sua ancestralidade, isso apresenta um esforço em se lembrar de reconstruir sua memória acerca da sua ancestralidade que está presente nos elementos simbólicos de seu orixá de cabeça153. Sobre este esforço em se lembrar e construir uma memória, Ricoeur (2007) nos diz:

É de fato o esforço da recordação que oferece a melhor ocasião de fazer “memória do esquecimento”,... A busca da lembrança comprova uma das finalidades principais do ato de memória, a saber, lutar contra o esquecimento, arrancar alguns fragmentos de lembrança à “rapacidade” do tempo”..., ao “ sepultamento” no esquecimento( RICOEUR,2007,p.48)

Ora, o ato de cozinhar as comidas dos orixás e seguir as regras ritualísticas pertinentes a este momento, caracterizadas pelas rezas, cânticos e preceitos que devem ser seguidos ao se colocarem dentro da cozinha do terreiro, pode ser entendido como uma tentativa de driblar o esquecimento e construir a memória ancestral presente em cada indivíduo que se propõe a preparar as oferendas das divindades, além disso, a iniciativa de fazer, reafirma a identidade mítica desses sujeitos no momento em que se reconhecem através dos elementos presentes em determinada oferenda.

Ao mesmo tempo em que esta atividade do cozinhar pode ser compreendida como um espaço de rememoração, reafirmação da identidade da iaô de Oiá presente nesta fotografia, esta atividade também pode ser percebida como lugar de empoderamento, uma vez que dentro deste espaço, principalmente dentro das comunidades de terreiros mais tradicionais, o espaço da cozinha e de fazer os alimentos dos orixás, são destinadas apenas as mulheres do terreiro. Tanto que não só nas casas tradicionais, mas também em outras comunidades menos tradicionais é comum terem dentro da hierarquia do candomblé um posto, ocupado apenas por mulheres, este cargo é chamado de Yá gbàsé, que é o posto dentro da comunidade de terreiro, responsável pela cozinha de axé e pelo preparo das oferendas e comidas dos orixás.

A presença da mulher pode ser novamente evidenciada, nesta segunda fotografia, (figura 24) esta por sua vez produzida pelo babá Egbé Kelvis Torres. A mulher presente neste registro, diferente da mulher negra presente na primeira fotografia analisada, ocupa o cargo de Ekeji154 da comunidade do Fará Imorá Odé. Isso revela que

153 O termo “orixá de cabeça” é comumente utilizado entre os iniciados do candomblé, para fazer menção ao orixá no qual foram iniciados. Trata-se do orixá que está na zona superior do enredo do neófito.

154 Ekeji: são figuras femininas que se encontram na alta hierarquia do candomblé. Sua função dentro dos terreiros, é a de zelar e cuidar dos orixás dos filhos da comunidade, como também do pai de santo. Esta função é exclusiva das mulheres, não podendo os homens assumir este cargo.

o espaço da cozinha não é apenas um lugar dos integrantes que estão engatinhando na hierarquia da comunidade de terreiro. Este lugar é um espaço de mulheres, que independente de sua cor, idade e lugar que ocupa dentro desse sistema hierárquico da comunidade, podem realizar atividades pertinentes à produção das comidas do sagrado.

Figura 24 : Ekeji fazendo bolas de cará , Kelvis Torres, 2020.

A mulher nesta fotografia encontra-se com uma bacia esmaltada com cará amassado, possivelmente para fazer pequenas bolas que serão utilizadas em um

procedimento religioso, denominado de ebó155. Interessante perceber o olhar de Kelvis nesta fotografia, no qual busca passar para o observador a importância e o significado da presença feminina na cozinha, não como lugar de subordinação e de trabalho doméstico, pelo contrário, pode-se perceber a mulher, neste espaço, como presença que detêm o “axé” 156. É por meio de suas mãos que as divindades comem e que os corpos cansados, desencorajados, se regeneram por meio dos alimentos cozinhados e preparados por estas mulheres do candomblé.

Entretanto, por mais que este espaço seja normalmente ocupado por mulheres, no Ilê Fará Imorá e em outras comunidades de terreiro menos tradicionais, a presença masculina pode ser percebida também, pois como a cozinha é um lugar geralmente de inúmeras atividades e de grandes demandas, dentro da rotina de uma casa de santo, a presença dos homens é importante seja como auxilio nas atividades que serão realizadas, como também pode ser percebida como lugar de aprendizado, sobretudo pelos integrantes mais novos. É na cozinha que aqueles que querem adquirir conhecimento passam a aprender os preceitos, os comandos, as normas e as particularidades referentes tanto a demanda de atividades da comunidade de terreiro, como também na forma como são preparadas cada oferenda e comidas de axé.

A terceira e última fotografia desta série, (figura 25) também é de autoria de Kelvis e nela pode-se perceber este espaço inclusivo, no qual independe de gênero, raça, classe social, as pessoas possuem a possibilidade de aprender os segredos e preceitos da cozinha de axé. Assim, como também se pode entender, este lugar, como ambiente de expressão da pluralidade existente nas comunidades de terreiro, uma vez que homens cis, mulheres cis, homens e mulheres trans, ou homens e mulheres gays tem neste espaço um lugar de inclusão, diversificado e aberto para que possam aprender exercitar sua ancestralidade através dos alimentos, reafirmarem suas identidades míticas e sociais por meio das atividades que desempenham dentro do seu espaço de fé.

155 Ebó: cerimonia de limpeza, e descarrego enérgico. Geralmente nesta cerimonia, são passadas na pessoa que passa por esse procedimento uma série de elementos como grãos, frutas, legumes, verduras, ovos, farinhas, velas, para que possam retirar as energias que estejam bloqueando suas vidas.

156 A palavra “axé” empregada aqui, tem o sentido de energia vital, e positiva que conduz quem recebe a equilíbrio e maior força energética.

Figura 25: Iaôs fazendo acaçás , Kelvis Torres, 2020.

Na fotografia de Kelvis, (figura 25), pode-se perceber esta pluralidade, na qual os dois rapazes, presentes na imagem, fazem acaçá157, componente importante nas cerimônias do candomblé. Esta diversidade de gênero, possível dentro do espaço da cozinha de axé, possibilita a quebra de inúmeros tabus, sobretudo no que se refere a este lugar como espaço apenas de mulheres, e passa a se caracterizar como lugar de todos, sem levar em consideração seu gênero, raça e orientação sexual. O exercício de culto ao

157 Acaçá: elemento importante nas cerimonias do candomblé, principalmente em sacrifícios, e nas oferendas dos orixás. O acaçá é feito de farinha de canjica branca com água, que levada ao fogo, formasse uma espécie de mingau espesso que será colocado em folhas de bananeira.

sagrado dos orixás é entendido nas comunidades de terreiro como direito de todas, todos e todes158 que estão presente nela. Por isso que não somente na cozinha, mas todos os espaços dos terreiros de candomblé podem ser percebidos como lugares inclusivos.

Para finalizar esta dissertação, fez-se a escolha de trabalhar o transe como processo de rememoração, ressignificação, reafirmação e revelação das identidades dos membros do Ilê Fará Imorá Odé. Entendendo este momento como o mais importante dentro das comunidades de terreiro, pois é através da manifestação do sagrado que há uma negociação entre as identidades sociais e míticas dos adeptos do candomblé que possibilita uma transformação simultânea entre elas, que revela sua identidade ancestral por meio da presença dos orixás nos corpos de seus adeptos.

Entendido o transe como um dos elementos mais importantes do candomblé escolheu-se fazer uma abordagem mais detalhada sobre o assunto que será trabalhado no item 3.3 que foi intitulado de Visualidades em Transe: Identidades Reveladas, para abordar mais detalhadamente sobre os temas apontados anteriormente por meio das imagens dos iaôs em transe nos orixás. Seguindo a mesma lógica até aqui empregada, será feita a análise de três fotografias realizadas por Io Hardy durante festividades no Ilê Fará Imorá Odé.

As imagens expressam a presença das divindades africanas nos corpos de seus adeptos durante algumas cerimônias do terreiro, nas quais estes através das danças e dos elementos presentes em suas vestimentas, paramentas e elementos simbólicos, expressam e demonstram a presença do revelar da identidade mítica nos terreiros de candomblé.