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Todos abraçam o Caçador: diversidades e resistências identitárias no Ilê Fará

CAPÍTULO II – AGÔ: DEIXA O FARÁ IMORÁ FALAR

2.3 Todos abraçam o Caçador: diversidades e resistências identitárias no Ilê Fará

Durante o percurso do trabalho foi possível observar, através da formação do candomblé no Brasil, até seu processo de universalização a partir da década de sessenta, assim como os caminhos percorridos até sua chegada à cidade de Goiânia, elementos que definem e que expressam um movimento de resistência da identidade cultural religiosa afro-brasileira, mas também componentes que definem o candomblé como espaço de construção de outras identidades e de suas resistências.

Foi possível, também, averiguar na formação do Ilê Fará Imorá Odé, aspectos que exemplificam a luta das comunidades afro-brasileiras, mais especificamente os terreiros de candomblé, para que seja possível continuar existindo, e também se firmarem como espaços que agregam e constroem identidades e podem ser vistos como lugares de resistência e empoderamento.

Neste item pretende-se apresentar um levantamento do mosaico identitário do Ilê Fará Imorá Odé, assim como através das entrevistas concedidas pelo sacerdote da comunidade Marcos de Oxóssi, demonstrar como o candomblé pode ser visto como espaço de resistência e de empoderamento, levando em consideração a diversidade racial e de gênero presente no Ilê Fará Imorá Odé.

Durante a pesquisa foram elaboradas tabelas que demonstram essa diversidade identitária da comunidade de terreiro, levando em consideração seu gênero e sua raça. Os dados foram recolhidos através de questionário online, estes por sua vez foram enviados para o whatsapp dos integrantes da comunidade de terreiro no mês de julho de 2020. Os dados presentes nas tabelas levam em consideração o número atual de integrantes da comunidade de terreiro, após sua consolidação no ano de 2018.

Analisando o Fará Imorá Odé, panoramicamente, observa-se uma comunidade de terreiro que possui um quadro abrangente de pessoas com diferentes orientações sexuais, raça e gênero, demonstrando a diversidade presente na comunidade, a qual este autor faz parte e realiza a pesquisa.

Segue um quadro que demonstra como os membros se distribuem através de sua raça e gênero. Importante destacar que os dados ,retirados para a elaboração dos quadros a seguir, foram construídos durante o processo da pesquisa, baseado em questionários e acesso a lista de integrantes da comunidade de terreiro em estudo: Quadro 2 : Integrantes do Ilê Fará Imorá Odé segundo sua raça e gênero

Fonte: Elaborado pelo autor.

Pode-se verificar no quadro 2, acima que a quantidade de integrantes mulheres cis108 se sobressai à quantidade de integrantes homens cis, representando cinquenta por cento dos integrantes da comunidade. Além disso, a comunidade de terreiro possui como integrantes efetivos três membros não binários ou de gêneros líquidos, que se dizem não pertencentes às normativas deterministas de gênero masculino e nem feminino. Podemos observar mais detalhadamente a presença dos grupos LGBTQIA+ no quadro abaixo:

Quadro 3 : Quantidade de membros divididos por orientação sexual

Membros Heterossexuais Homossexuais Bissexuais Não respondido

Total

Mulheres cis 32 7 6 3 45

Homens cis 21 21 1 - 43

Fonte: elaborado pelo autor,2020.

108 Cis, refere-se a cisgênero termo relativo a ou que tem uma identidade de género idêntica àquela que foi atribuída à nascença, por oposição a transgénero.

Membros Branco Pardo Negro Indígena Não respondido Total Mulher cis 20 5 19 1 1 46 (50%) Não binários 1 - 1 - 1 3 (3,2%) Homens cis 18 5 19 - 1 43 (46,7%) Total 39 (42,4%) 10 (10,8%) 39 (42,4%) 1 (1,2%) 3 (3,2%) 92 (100%)

De acordo com o quadro 3, acima, podemos observar que no Fará Imorá Odé há uma presença significativa dos grupos LGBTQIA+, pois dentre seus integrantes estão presentes oitenta e oito integrantes divididos entre mulheres e homens homossexuais e bissexuais e três integrantes que não responderam sua orientação sexual, pois se dizem não se enquadrarem nas normas de gênero e sexualidade, que são os membros não binários. A presença deste grupo sempre foi constante dentro das comunidades de terreiro, pelo caráter não excludente dos terreiros de candomblé. Em artigo intitulado A comunidade LGBT no desdobramento da Língua Iorubá, Luan Cruz e Raphael Tito abordam um pouco sobre a inserção da comunidade LGBTQIA+ nas comunidades tradicionais Africanas:

Por ser o candomblé um religião nascida de uma segregação sociorracial e associada, durante muito tempo, à feitiçaria e à magia negra , houve uma repulsa total a essa crença, e a religião, então, por se ver marginalizada, passou a não fazer as mesmas distinções e restrições que a sociedade lhe fazia. Nesse sentido, pode-se dizer que foi a “abertura de portas” para o ingresso dos homossexuais poderem dedicar-se a uma crença religiosa, sem que fossem discriminados ou tivessem de abdicar de sua orientação sexual em prol de um dogma religioso (CRUZ E TITO, 2016, p.16).

Pode ser averiguado que os autores trazem uma justificativa para a presença do público LGBTQIA+ nos terreiros de candomblé e em outras comunidades religiosas afro-brasileiras, aparentemente motivados pela abertura dessas às pessoas que passam por descriminação e intolerância, assim como passam, também, os terreiros. Apesar desta não ser a única justificativa, é preciso entender que as comunidades de terreiro não possuem um conceito de pecado, este por sua vez aplicado pelas religiões de cunho cristão. Entretanto, como esse debate foge ao escopo da pesquisa, não será aqui aprofundado.

Durante a entrevista realizada com Marcos de Oxóssi, questionado como que o candomblé lida com as questões de gênero e sexualidade, o sacerdote aponta que estas questões não se apresentam como um tabu nas comunidades de terreiro, confirmando dentro da sua experiência como candomblecista e sacerdote uma grande presença da comunidade LGBTQIA+ nos terreiros de candomblé.

Um dia estava participando de um debate com um padre, profundamente progressista inclusive e aí perguntaram como é que a igreja católica e o candomblé, a pessoa disse assim: “como é que vocês lidam com a sexualidade?” Nós não lidamos, isto não é uma

questão para o candomblé, não é uma questão teológica, não é uma questão das relações das casas, primeiro porque se eu pegar a minha experiência da minha casa de santo e das que eu conheço numericamente há uma população significativa de homossexuais que não dá para transformar isso em um debate real. Assim de que eu tenha que dar uma explicação, nós apenas fazemos parte e se eu pegar a experiência do Sul, pelo menos dos candomblés do Sul, onde eu mais conheço casas, eu diria assim no mínimo 80% das casas da década de noventa para cá que eu conheci, a hierarquia era composta por homossexuais, por membros da população LGBTQ+ , acho que essa é a sigla correta do momento. Então esta é uma população que tem no candomblé um espaço de construção de autoestima, então eu estou lá, eu sou de Iansã, eu tenho um poder que é meu, que é um poder do orixá, poder do sagrado em mim, então há um exercício de autoestima nesta construção identitária que é positiva, que é afirmativa, então assim sendo, enquanto ele permanecer assim ele será um espaço de resistência (MARCOS DE ODÉ, 2020).

Interessante notar , através do olhar de Marcos de Oxóssi, sobre as comunidades de terreiro possuírem um número significativo de lideranças e de pessoas praticantes do candomblé pertencentes à comunidade LGBTQIA+, também a importância do sagrado dos Orixás e o espaço do terreiro ser um lugar de construção e afirmação de suas identidades de gênero, possibilitando seus integrantes se reencontrarem com seu ‘eu’. Através do sagrado e da permanência dos orixás em seus corpos, de afirmarem sua existência , levando os terreiros de candomblé, de um modo geral, assim como o Ilê Fará Imorá Odé em especifico, não só como lugar de refúgio, mas também de construção e de empoderamento identitário.

Outro aspecto que deve ser observado no quadro é a quantidade de pessoas que se denominam negras, estas por sua vez somam trinta e nove pessoas que se identificam dessa maneira. Quantidades equiparadas à de brancos do terreiro. Além disso, percebe-se também a prepercebe-sença de uma integrante que percebe-se denomina indígena. Esta diversidade étnica-racial presente no Fará Imorá Odé deixa mais claro o conceito de universalização apontado por Prandi, em que o candomblé apresenta-se como uma religião de todos, independente da sua classe social, raça, gênero e sexualidade. Quanto a isso, Prandi aponta:

O candomblé encontrou condições sociais, econômicas e culturais muito favoráveis para o seu renascimento num novo território, em que a presença de instituições de origem negra até então pouco contavam. Nos novos terreiros de orixás que foram se criando então, entretanto, podiam ser encontrados pobres de todas as origens étnicas e raciais. Eles se interessam pelo candomblé e os terreiros cresceram às centenas. O candomblé, a partir do Sudeste, foi transformando-se

em religião universal, isto é, religião para todos (PRANDI, 1999, p.103)

É possível notar, através das palavras do autor, que o candomblé passa por um processo de abertura para a diversidade étnico-racial, algo que ficou mais evidente a partir da década de sessenta nos grandes centros como São Paulo e Rio de Janeiro, mas que na prática esta característica já estava se desenhando na Bahia, quando os terreiros tinham como integrantes e clientes, pessoas brancas e de influência social.

Pai Marcos de Oxóssi ao ser questionado sobre a presença de pessoas excluídas nos terreiros de candomblé e sua importância na construção da religião como lugar de resistência e afirmação identitária, direciona sua fala a um processo de universalização do candomblé e que garante a permanência e o acesso de pessoas marginalizadas e que se sentem acolhidas nestes espaços de fé, quanto a isso Marcos de Oxóssi apresenta:

(...) são vários nomes da intelectualidade que entram para o candomblé, ao longo de todo este período, agora em nenhum momento você reconhece mesmo com esta chegada da classe média branca, você deixa de ter de forma predominante nas casas populações excluídas, primeira coisa uma parcela significativa desta classe média branca são compostas culturalmente também por populações excluídas, estamos falando de toda a população LGBT que tem uma presença ampla no candomblé, mulheres, e há uma retomada pós década de 90 da presença de uma população negra que nunca foi hegemônico obvio, mas que tendia a diminuir dentro das casas por uma forte atração que disputa do neopentecostalismo, mas uma parte dessa população negra mais politizada que dialoga a partir de uma logica antirracista também vem para as casas de candomblé (MARCOS DE ODÉ, 2020).

Os dados, apresentados pelo babalorixá, reafirmam a importância da inserção de pessoas socialmente excluídas como um dos elementos importantes de afirmação do candomblé como espaço de resistência identitária. Neste caso, o processo de universalização e acesso da cultura afro-brasileira foi de grande importância para que isso fosse possível. Inclusive, esta parcela de brancos excluídos, assim como esta parte de negros intelectualizada, citada por Pai Marcos, faz-se presente no Fará Imorá Odé, podendo ser observada nos dados apresentados a partir das tabelas vistas anteriormente, através da presença da comunidade LGBTQIA+; de uma parcela significativa de negros no terreiro, que está equiparada em números a quantidade de brancos da casa de axé, expressando a diversidade de gênero, sexo e raça do grupo estudado.

Este levantamento possibilita afirmar que o Fará Imorá Odé, torna-se um lugar de resistências e de empoderamento, assim como inúmeras comunidades de terreiro,

também possuem esta característica inclusiva e, por isso, constituem um mosaico de integrantes que constroem e dá formato a estrutura identitária dos seus espaços de fé e que apresenta este lugar, como sendo de encontro de pertencimentos, reafirmação de seus ‘eus’ identitários, aceitação e de resistência cultural.

No próximo capítulo e último deste trabalho, será apresentado o documento iconográfico, do Ilê Fará Imorá Odé, no qual será analisado o processo de reafirmação e rememoração da identidade dos membros da comunidade. Procurou-se conhecer, a partir do documento fotográfico, a pluralidade identitária presente no terreiro, bem como os integrantes que estão presentes nestas imagens, em que há a descoberta de um novo ‘eu’, construindo uma nova identidade, mítica que transborda poder, e reafirma suas identidades ancestrais.

CAPÍTULO III – IMAGENS EM TRANSE: CONSTRUÇÕES VISUAIS DO ILÊ