• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO III – IMAGENS EM TRANSE: CONSTRUÇÕES VISUAIS DO

3.2 Oju odé: as fotografias como espaços de construção identitária do Ilê Fará

3.2.2 Vestindo-se de Sacralidade

Seguindo a ordem das categorias a serem analisadas neste item, segue o debate trabalhado na presente pesquisa com a categoria festividades. Para este tema, foram selecionadas três fotografias das 130 pertinentes a esse assunto. Estas imagens foram realizadas pela filha, de santo, de babá Marcos de Oxóssi, que se identifica como Io Hardy, durante uma festa em homenagem ao orixá Xangô.

As fotografias de forma geral, demostram como os adeptos do candomblé se vestem em dias de festa e, em alguns casos particulares, repetem-se em seu cotidiano dentro do terreiro. As vestimentas e indumentárias foram priorizadas nesta categoria, entendendo estes elementos como expressões simbólicas de construção de sua identidade mítica, pois estes componentes demonstram os lugares destes sujeitos dentro da hierarquia religiosa, assim como sua ligação com seus ancestrais por meio das cores e colares que usam.

Os registros expostos, neste subitem, aconteceram durante a Fogueira de Xangô131, uma das festas principais do Ilê Fará Imorá Odé. Nestas imagens é possível perceber como os integrantes da comunidade se vestem durante as festividades, como também nas atividades corriqueiras da roça132. Nesta primeira fotografia encontra-se uma mulher em posição de reverência e oração, levando em consideração a forma como

131 Fogueira de Xangô ou festa de Xangô é uma cerimonia dedicada ao orixá da justiça. Nesta festividade são realizadas cerimonias ao orixá Xangô, Airá, Oiá,e Obá.

132 O termo roça usado aqui, faz referencia ao terreiro de candomblé. Esta forma de denominar as comunidades de terreiro é de uso habitual dos integrantes das comunidades de matriz africana.

se agacha e a posição de sua cabeça inclinada para baixo, pode-se entender que se trata de uma pessoa que se denomina dentro dos terreiros de candomblé de abian133.

Figura 20 : Abian do Ilê fará Imorá Odé., Io Hardy,2016.

As pessoas não iniciadas, tal qual esta mulher da fotografia, por não ter passado pelos processos de feitura ou de iniciação do candomblé, levam em seu pescoço apenas

133 Abian: termo utilizado para a pessoa que é do candomblé, mas ainda não passou pelo processo de iniciação.

duas contas, uma de oxalá134 e outra que faz referência ao possível santo que rege sua cabeça. Em alguns casos específicos, é também possível terem outro fio de miçangas das cores do orixá de seu babalorixá, entretanto, é necessário que esta pessoa passe pelo processo de bori135 para que ganhe o direito deste fio de miçangas.

A forma como se veste também a posiciona dentro do quadro hierárquico do candomblé, uma vez que as roupas que está usando são mais simples, de cor branca e que leva rendas mais comuns. No caso da mulher presente na fotografia, como se trata de uma figura feminina, suas roupas de candomblé são: saia, pano da costa136 e camisu137. Em casos específicos, como este expresso na fotografia que possivelmente retrata um momento de reza, o ojá138 na cabeça é retirado.

Interessante perceber nesta primeira fotografia de Io Hardy, a presença da abiã em destaque, a escolha por registrar este momento pode ser interpretada como um processo de autoidentificação com a cena, no qual ao ver a mulher, a fotógrafa se identifica. Este processo de identificação de Io Hardy pode estar relacionado com sua posição dentro desta estrutura hierárquica do candomblé, em que a fotógrafa candomblecista encontra-se também na condição de abian. Ou seja, os marcadores identitários presentes na roupa da abian, conduz aquele que veste e aquele que olha a vestimenta a se encontrarem dentro deste sistema hierárquico da casa, passando assim, a serem expressões simbólicas de afirmação da identidade mítica, levando em consideração a escala religiosa presente no candomblé.

134 Oxalá é o orixá mais velho de todos, está ligado com o sopro da criação do mundo, seu símbolo principal é a casta de ibi, ou de caramujo, que está relacionado com o peso do mundo que leva em suas costas.

135 Bori: cerimonia de agrado e fortalecimento ao orixá Orí (cabeça).

136 O pano da costa trata-se de um corte de tecido enfeitados com rendas ou não, de uso exclusivo das mulheres. Esta peça de roupa vai em volta dos seios das mulheres, ou em caso de mulheres da alta escala hierárquica como egbomis e ekejis, podem também coloca-los em volta de as cintura.

137 O camisu também é uma pesa exlusiva das mulheres, muito semelhante a uma bata feminina, sempre vestida antes do pano da costa.

138 O ojá também compõe a vestimenta feminina, apesar de por muitos anos serem também usados por homens, hoje faz-se exclusivos das mulheres. São uma espécie de torços que que também mudam em cores, e tecidos dependendo do lugar que a pessoa ocupa na hierarquia.

Figura 21 : Iaô de Airá., Io Hardy,2016.

A segunda fotografia, legendada como figura 21, demonstra um iaô de airá139 iniciado no Ilê Fará Imorá Odé. A sua posição no sistema hierárquico pode ser identificado pelas roupas que está vestindo. Geralmente os homens tanto abians, quanto iaôs140 vestem bata e calça branca. Os iniciados, em particular, ao ficarem mais velhos de santo141 vão mudando suas vestimentas ao poucos, agregando cores e rendas mais finas. Entretanto, o que realmente identifica esta pessoa da fotografia como um iaô, é o conjunto de colares que leva em seu pescoço. Estes colares possuem significado mítico, e representam o começo de uma jornada iniciática.

Em continuidade a análise a respeito dos colares, o primeiro deles, que se encontra em destaque e centralizado ao meio de outros dois colares grandes feitos de

139 Orixá masculino ligado ao fogo possui a mesma linhagem de Xangô.

140 Iaô: expressão utilizada dentro das comunidades de terreiro para as pessoas iniciadas no candomblé que possuem menos de sete anos de iniciados.

141 “velho de santo” termo comum entre os membros das comunidades de terreiro, geralmente utilizada para definir uma pessoa que já tem mais idade de iniciado, quanto mais tempo tem de iniciado, mas velho de santo o sujeito é.

miçangas, é o mokan. Este adereço feito de palha é usado apenas pelos novos iniciados. Por possuir em suas extremidades uma espécie de pequena vassourinha, feita também de palha, este colar representa a ligação do noviço com o orun142 e com o aiyê143, além desses significados, também representa a posição de aprendiz dos segredos da religião, enfatizando a humildade em sua trajetória religiosa, como também, sua posição de submissão aos mais velhos.

Em seguida, junto ao mokan do iaô presente na fotografia, há um colar de cores mais vivas, mas especificamente de coloração vermelha e branca, levam esta combinação de cores por representarem o orixá airá para qual foi iniciado. Este colar chama-se delegun ou delogun. Trata-se de um adereço feito de miçangas das cores do orixá para o qual a pessoa foi iniciada. Este adereço é feito em dezesseis voltas, esta numeração está ligada aos dezesseis odús144 que configuram o destino dos adeptos do candomblé.

O uso do delegun é exclusivo das pessoas que possui menor tempo de iniciadas. Também servem para identificar para qual orixá esta pessoa foi iniciada e sua posição hierárquica dentro da casa. Por último, o iaô carrega em seu pescoço um conjunto de dezesseis pequenos colares de miçangas. Este, por sua vez, representando os dezesseis orixás cultuados nas comunidades de nação ketu. Seu significado está ligado ao respeito deste por todas as divindades presentes no candomblé, como também expressa o direito deste em usar estes colares e suas cores, conforme for ganhando idade dentro do terreiro.

Através destas duas primeiras fotografias, é possível perceber as diferenciações dos sujeitos da comunidade de axé por meio das vestimentas, e a preocupação da fotógrafa em registrar esses marcadores presentes na estrutura cerimonial do candomblé, a fim de identificá-los dentro desta organização religiosa, como também, pode ser compreendida como um processo de reafirmação destas identidades a partir dos elementos presentes nas vestimentas dos sujeitos representados.

A postura dos sujeitos presentes nestas imagens, até agora trabalhadas, demonstram a importância do vestir-se como expressão de identificação e de posição

142 Orun: termo em yorubá para se referir a morada dos orixás, também pode ser interpretado como céu, ou mundo espiritual.

143 Aiyê: termo em yorubá para designar o mundo terreno, onde os seres humanos vivem.

144 Para melhores detalhes sobre o estudo dos odús, ver: BENISTE, José. Òrun – Àiyé: o encontro de dois mundos: o sistema de relacionamento nagô-yorubá entre o céu e a Terra. 11ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014.

destes integrantes dentro da comunidade de terreiro, como também no seu processo de rememoração ancestral. Por mais que estas vestimentas não sejam como aquelas usadas em terras africanas, elas buscam uma referência sejam nas cores fortes presentes nos colares de miçangas no pescoço do iaô na figura 21, como também no significado simbólico deste adereço que está relacionado com a divindade africana para qual o iaô foi iniciado.

Figura 22 : Babá Marcos de Oxóssi e suas Ekejis no Ilê Fará Imorá Odé, Io Hardy,2016.

A última imagem desta categoria demonstra mudanças significativas na forma de se vestir dos candomblecistas. E o primeiro fator a ser considerado nesta fotografia de Io Hardy, é quem está inserido nesta imagem, que no caso trata-se do babalorixá

Marcos de Oxóssi, que se encontra centralizado entre suas duas ekejis145. O segundo fator que deve ser salientado, é o grau hierárquico a que pertencem. No caso de Marcos de Oxóssi, babalorixá e dirigente da comunidade de terreiro apontada, e as duas mulheres que possuem posto de Ekejis dentro do terreiro. E por último, como a posição dentro da configuração mítica do candomblé, interfere no modo como se vestem.

Estas pessoas por serem consideradas mais velhas (em relação ao tempo que outras foram iniciadas na religião) e possuírem postos mais elevados dentro do terreiro, possui formas muito particulares de se vestirem. O babalorixá Marcos de Oxóssi veste-se com uma bata de cores mais vivas e quentes, com um tecido florido, também carrega em sua cabeça uma rodilha146, estas peças são usualmente comuns entre os sacerdotes das comunidades de terreiro.

A respeito dos adereços utilizados pelo babalorixá, cabe explicar que em seu pescoço, o mokan, delogun e os dezesseis colares dos orixás não se fazem presentes, dando lugar a colares mais grossos, geralmente feitos de pedraria e com cores do seu orixá ou da divindade que deseja homenagear. Esta regalia somente é permitida aos babalorixás, cargos do terreiro, e os egbomis, que geralmente já cumpriram seu Odú Ijê147. As Ekejis presentes nas extremidades da fotografia acompanham o babalorixá em riqueza de detalhes nas vestimentas, com peças padrões como o Ojá148, camisu149, saias e pano da costa150 também de cores mais quentes e tecidos mais finos. Em seus pescoços levam colares que expressam sua posição hierárquica, estes são feitos também de pedras mais grossas e de cores mais intensas.

Compreendidos os detalhes presentes nas fotografias acerca do vestuário dos candomblecistas, pode-se perceber a importância do vestir-se no processo de construção e reafirmação das identidades míticas a partir dos elementos apontados anteriormente,

145 Ekeji: são figuras femininas que se encontram na alta hierarquia do candomblé. Sua função dentro dos terreiros, é a de zelar e cuidar dos orixás dos filhos da comunidade, como também do pai de santo. Esta função é exclusiva das mulheres, não podendo os homens assumir este cargo.

146 Rodilha: espécie de torço habitualmente usada entre os homens de santo masculinos como Oxóssi, Ogum, Ossain, e Xangô.

147 Odú Ijê: uma das obrigações ou cerimonias principais do candomblé. Nela é dado a maior idade ao iaô e permitido este usufruir de todos os direitos pertinentes a esta idade, como por exemplo: usar calçados, sentar em cadeiras no barracão, usar colares de pedraria mais grossos, vestir roupas mais enfeitadas e com rendas diversas, assim como, assumir seu sacerdócio se assim houver caminho para tal.

148 O ojá também compõe a vestimenta feminina, apesar de por muitos anos serem também usados por homens, hoje faz-se exclusivos das mulheres. São uma espécie de torços que que também mudam em cores, e tecidos dependendo do lugar que a pessoa ocupa na hierarquia.

149 O camisu também é uma pesa exlusiva das mulheres, muito semelhante a uma bata feminina, sempre vestida antes do pano da costa.

150 O pano da costa trata-se de um corte de tecido enfeitados com rendas ou não, de uso exclusivo das mulheres. Esta peça de roupa vai em volta dos seios das mulheres, ou em caso de mulheres da alta escala hierárquica como egbomis e ekejis, podem também coloca-los em volta de as cintura.

pois estes conjuntos simbólicos nos remetem a mitologia dos orixás, bem como a ancestralidade cultuada nas casas de culto aos orixás. Acerca desta temática, Denise Camargo em sua tese de doutorado intitulada: Imagética do Candomblé: uma criação do espaço mítico-ritual (2010) explica, mais detalhadamente, sobre a importância das vestimentas no processo de rememoração da identidade mítica presente nas comunidades de terreiro, a autora salienta:

Esse vestir codificado é uma linguagem simbólica, uma estratégia para a compreensão de um contexto cultural mais amplo, um corpo de adereços de trabalhosa execução artesanal que empenha sua materialidade para que o mito seja constantemente revivido e celebrado. Ao mesmo tempo: ou se revela por inteiro àqueles que recebem as inscrições mítico-rituais no próprio corpo – trata-se de uma experiência vivida e, como tal, não há o que a apague, ou, ainda que, desconhecida daqueles que não a vivenciam, se deixe compreender em sua totalidade (CAMARGO, 2010, p.44)

Através das questões apontadas pela autora, percebe-se a importância das vestimentas e adereços na formação e reafirmação da identidade religiosa dos integrantes do candomblé, a partir de um processo de rememoração constante por meio destes elementos, entendido que a construção destas identidades pode ser de forma simbólica. No entanto, estas formações simbólicas da identidade somente são possíveis, se for levado em consideração os mecanismos de representação, pois estes legitimam e dão significado ao que somos. Woodward (2011) afirma à importância dos sistemas de representação nos caminhos de construção das identidades; a autora diz:

A representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-os como sujeitos. É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos (WOODWARD,2011,p.17-18)

A autora entende , por meio da representação dos símbolos , que as identidades criam sentido e significado. Neste caso, ao conectar esta ideia com o papel das vestimentas e adereços usados pelos candomblecistas, pode-se identificar uma busca constante em se reafirmarem enquanto pertencentes ao candomblé e praticantes do culto à ancestralidade africana. Importante destacar, que essa representação simbólica por meio das vestimentas não pode ser apenas entendida como estratégias de reafirmação na sociedade, mas também como caminho de encontro com seu próprio eu. Sobre isso, cita-se novamente Woodward (2011), em que a autora destaca a importância das representações simbólicas como encontro de si mesmo:

Existe, assim, um continuo processo de identificação, no qual buscamos criar alguma compressão sobre nós próprios por meio de sistemas simbólicos e nos identificar com as formas pelas quais somos vistos por outros. Tendo inicialmente, adotado uma identidade a partir do exterior do eu, continuamos a nos identificar com aquilo que queremos ser, mas aquilo que queremos ser está separada do eu, de forma que o eu está permanentemente dividido no seu próprio interior (WOODWARD, 2011, p.65)

Esta busca pela identificação do que somos por meio dos sistemas simbólicos apontados pela autora, pode ser percebido dentro das comunidades de terreiro, quando seus membros buscam entender o que são, dentro desta estrutura hierárquica, e passam a se comportar, vestir-se e seguir as normas e preceitos segundo a sua idade de iniciados. O documento fotográfico, de autoria de Io Hardy, neste sentido, também pode auxiliar os adeptos do Fará Imorá Odé neste processo de rememoração, reconhecimento e reafirmação de suas identidades míticas, uma vez que ao olhar as fotografias há um processo de autoconhecimento. Este caminho de autoconhecimento identitário pode ser percebido como algo quase narcísico de contemplação de seu eu e de sua história, questão importante trabalhada por Philippe Dubois (2012) quando discute sobre as consequências do olhar do espectador para a sua imagem, assim diz o autor:

Se a imagem observada na fonte por Narciso, é seu próprio reflexo “pintado” e se o quadro como a fonte, é também uma pintura “reflexo”, então o que reflete será sempre a imagem do espectador que a observa, que nela se observa. Sou, portanto, sempre eu que me vejo no quadro que olho. Sou (como) Narciso: acredito ver um outro, mas é sempre uma imagem de mim mesmo (DUBOIS,2012, p.143) Apesar das considerações, apontadas pelo autor, estarem relacionadas com a pintura, o documento fotográfico, mesmo que possuindo elementos técnicos diferentes da pintura, pode ser um caminho de rememoração e de reafirmação de identidades. Ou seja, os membros das comunidades de terreiro ao olharem suas fotografias vestidos e enfeitados com os adereços simbólicos referentes à sua crença, rememoram sua ancestralidade e reafirmam sua identidade mítica por meio do documento fotográfico.

Sabido sobre as contribuições do ato de se vestir na formação identitária dos membros do Fará Imorá Odé, esta pesquisa segue para o último subitem desta segunda parte do capitulo, no qual faremos a análise das imagens referentes ao cotidiano da comunidade pesquisada. Para representar esta categoria, selecionamos três fotografias da rotina da cozinha do Fará Imorá Odé. Duas destas fotografias foram feitas por Kelvis Torres e outra tirada por Io Hardy. A intenção é pensar o espaço da cozinha como lugar

de inclusão, de exercício da ancestralidade e de rememoração da mesma. Partindo do pressuposto que a cozinha dos terreiros de candomblé é um dos principais espaços sagrados, pois são nelas que são feitas as comida das divindades, como também da comunidade.