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CAPÍTULO III – IMAGENS EM TRANSE: CONSTRUÇÕES VISUAIS DO

3.2 Oju odé: as fotografias como espaços de construção identitária do Ilê Fará

3.2.1 Ressignificando o Lugar e o Ambiente

Neste subitem será abordado o processo de ressignificação da identidade social do espaço do terreiro por meio dos marcadores identitários presentes na estrutura mítica do candomblé. Para isso, foram escolhidas três fotografias de Kelvis Torres, membro e babá Egbé122 do Ilê Fará Imorá Odé, que mostram o “axé” 123 ,do terreiro estudado , com diferentes significados que reafirmam este espaço como lugar sacro e de ligação com o sagrado.

Para melhor compreensão, será feito primeiramente uma análise descritiva das fotografias, a fim de dar significado aos elementos expressados nas imagens. E mediante esta análise, será abordado sobre o assunto proposto nesta primeira parte. As imagens serão examinadas, em primeiro momento, individualmente, entretanto será construído um diálogo entre as imagens e seus significados.

A análise será iniciada com a figura 17 (logo abaixo). Nesta imagem encontra-se em destaque o centro do barracão do Ilê Fará Imorá Odé durante ajodun124 do Babalorixá Marcos de Oxóssi no ano de 2020. Neste espaço, localiza-se o ”axé” da comunidade, abaixo do piso da casa, sacralizando o espaço para o transe com os Orixás. Na imagem o espaço é realçado pelos pisos coloridos. Sobre o piso veem-se duas estátuas, com quase dois metros de altura, representando o Orixá patrono do Ilê (casa). Tal imagem refirma e anuncia a presença de Oxóssi aos visitantes e identifica o patrono da comunidade. Este espaço sagrado encontra-se centralizado dentro do barracão, lugar no qual são realizadas as festividades públicas da casa. Este lugar sagrado do terreiro

122 Termo utilizado para denominar um dos postos hierárquicos das comunidades terreiro. O Babá Egbé é o pai da comunidade, esta pessoa tem como ofício se ater aos trabalhos diplomáticos não somente dentro da comunidade que está inserido, mas também executar, e prezar pela boa relação de seu terreiro com outras comunidades de axé.

123 O termo “axé” utilizado aqui, refere-se ao pedaço de madeira que fica ao centro do barracão. Este lugar é sagrado para as casas de candomblé, porque refere-se a ligação entre o mundo dos orixás e o mundo terreiro.

124 É a celebração feita por aqueles que já passaram dos 7 anos de iniciação. O Ajodum, neste caso é comemorado no mês ou na data mais próxima possível do aniversário de iniciação do candomblecista. É como se fosse, em termos mais simplistas, uma satisfação que se dá ao seu orixá, anualmente, próxima da data de aniversário de feitura.

geralmente é marcado pela presença de um grande pedaço de madeira que liga o chão do barracão ao teto.

Figura 17 :Axé do Ilê fará Imora Odé como altar, Kelvis Torres,2020.

Esta ligação, realizada pelo “axé” das comunidades de terreiro, é uma forma representativa de associar este espaço como lugar de encontro do céu com a terra, ou mais especificamente a ligação entre o mundo terreno e o mundo dos orixás. No caso do Fará Imorá Odé, têm-se este lugar demarcado pela presença de duas estátuas em madeira, como ilustra a figura 17, na qual as divindades ali representadas carregam em suas mãos o ofá, objeto que caracteriza o orixá Oxóssi patrono do Ilê Fará Imorá Odé.

Abaixo, destas duas estátuas de madeira, fazem-se presentes em cima de uma esteira de palha trançada, quatro potes de barro que carregam no seu topo quatro cestos de palhas. Os três mais próximos à estrutura de madeira estão cheios de frutas diversas e espigas de milho verde. Esses elementos nos cestos estão diretamente ligados à figura do orixá Oxóssi e sua função enquanto senhor da fartura e da prosperidade. O quarto

pote, localizado ao centro dos três primeiros que carregam as frutas, está cheio de espigas de milho secas. É importante destacar a presença do milho nesta imagem, e sobretudo junto ao axé da comunidade, porque o milho é o principal elemento de Oxóssi, senhor do Ilê Fará Imorá Odé. Deste grão, cozinha-se o axôxo125·, prato preferido do orixá citado anteriormente, que está ao lado direito do pote de espigas secas, servido dentro de um alguidar126 de barro. Ao lado direito do mesmo pote de espigas secas, encontra-se mais um cesto de frutas, como já dito anteriormente um dos símbolos de prosperidade e fartura ligadas a Oxóssi.

A construção do ambiente, ou cenário da imagem representado na fotografia, fala sobre a identidade do Ilê. Recoloca a mitologia do Orixá e de como a casa se reconhece pelos sentidos da caça, como exercício de produzir a sobrevivência, pela prosperidade e fartura, conceitos que são reafirmados na imagem, além de fazerem parte dos mitos que são rememorados na experiência religiosa cotidiana. Não se pode pensar este local, presente na fotografia, assim como as duas estátuas de madeira que localiza o ponto central de conexão da terra com o sagrado, como mera ornamentação ou lugar comum, pois a presença dos componentes mágicos como o milho, as frutas, que estão diretamente ligadas ao orixá Oxóssi, dão outro sentido a este espaço, tornando este lugar como lugar de altar e de oferta. Kelvis, ao fotografar detalhadamente cada elemento e dar destaque as estruturas de madeira presentes no barracão, entende o significado e a importância deste local para a comunidade, sobre tudo, em relação ao seu sentido de ponte de ligação entre o Aiyê127 e o Orun128.

Neste sentido, o espaço sagrado do terreiro de candomblé pela presença de inúmeros elementos que fortalecem sua identidade mítica, se mostra como lugar de conexão e de ligação com o sagrado dos orixás. Uma das formas de representação desta ligação é o “axé”, representado nas fotografias do babá Egbá Kelvis de Oxóssi.

Dando prosseguimento a análise das imagens, foi escolhida a segunda fotografia, também de autoria de Kelvis Torres, durante a inauguração do Ilê Fará Imorá Odé em Dezembro de 2018. Neste registro (aqui legendado como Figura 18) o “axé” do Fará

125 O axôxo é uma comida feita de milho seco cozido, regado com água e lascas de côco. Esta oferenda ou comida é muito apreciada por Oxóssi senhor da prosperidade e da fartura.

126 Alguidar é uma espécie de bacia ou prato de barro na qual são oferecidas as comidas de alguns orixás. Exemplo: Oxóssi, Ossain, Oxumarê, Omolú, Exú, Ogum.

127 Aiyê: termo em yorubá para designar o mundo terreno, onde os seres humanos vivem.

128 Orun: termo em yorubá para se referir a morada dos orixás, também pode ser interpretado como céu, ou mundo espiritual.

Imorá deixa de ser apenas altar e passa a ser local de movimentação de energia, reafirmando este lugar como espaço do sagrado e de conexão com os orixás.

Figura 18 : Axé do Ilê fará Imorá Odé, espaço de circulação energética, Kelvis Torres,2018.

Nesta imagem o fotógrafo preza por uma perspectiva ampla do barracão, na qual é possível supor que sua intencionalidade é registrar o centro do espaço do “axé” da comunidade, novamente representada pelas duas estátuas de madeira que simbolizam e que identificam esta casa enquanto um terreiro regido e comandado por Oxóssi. Como também, há uma tentativa de fotografar os membros da comunidade e adeptos do candomblé em uma das festividades da comunidade de terreiro, neste caso em específico, trata-se da reinauguração do Ilê Fará Imorá Odé em dezembro de 2018.

Há nesta fotografia uma ideia de movimento circular, que é habitual nas festividades dos terreiros de candomblé, sobretudo no momento do xirê129, geralmente realizado em sentido anti-horário, o que talvez possa identificar que o tempo dos orixás, não é o mesmo tempo dos seres humanos. Neste momento as pessoas cantam e dançam ao som dos atabaques130 e em meio a brados de saudações, gestos e danças, rememoram e exercitam sua ancestralidade.

Neste momento de celebração e saudação de todos os orixás, por meio de suas cantigas e toques específicos, há um processo de movimentação enérgica. O espaço do “axé” da comunidade deixa de ser apenas templo e passa a ser local que molda energias e conecta os candomblecistas com os orixás. Este processo pode ser entendido como uma forma de movimento, que ressignifica a identidade social deste lugar, que deixa de ser apenas um espaço mobiliado e passa a se mostrar como lugar de conexão dos sujeitos envolvidos com seu sagrado. Compreendendo, deste modo, este espaço como ligação entre o mundo terreno e a morada do sagrado, no qual os candomblecistas passam a interagir com suas divindades por meio de oferendas, cantigas e danças.

Partimos para análise da terceira imagem, produzida no ano de 2020 durante a realização de uma cerimônia para orixá Oxum no ilê Fará Imorá Odé, em que o olhar de Kelvis passa a registrar o momento ápice desta conexão do sagrado, realizada no “axé” do Fará Imorá Odé. Se por um lado o espaço central do barracão pode ser percebido como altar e como lugar de conexão e movimentação de energias. Este também pode ser lugar de manifestação do sagrado. Na figura 19, os pedidos, preces, saudações, parecem ter sido atendidos. O sagrado se manifesta. A identidade mítica do Fará Imorá Odé expressa-se por meio da manifestação do orixá.

No referido registro, Oxum, orixá cultuado nas casas de ketu como a divindade ligada a fertilidade e maternidade, manifesta-se no corpo do rapaz negro, que deixa de ser apenas carne, e passa a ser templo do santo que rege sua cabeça. A máxima conexão e exercício da ancestralidade estão presentes neste momento em que o povo de axé entra em transe com suas divindades. Entretanto, este assunto do transe ficará para o final

129 O momento do “xirê” nas comunidades de terreiro é a abertura das festividades por meio de uma grande roda constituída pelos membros das casas de santo, na qual esses por meio dos toques e cantigas homenageiam e saudam todos os orixás por meio de suas respectivas cantigas, e toques. Neste momento toda a comunidade é convidada a participar e celebrar o momento de abertura que acontece antes que os orixás se façam presentes no salão.

130 os atabaque no candomblé, são três tambores chamados de rum, rumpi e le, estes instrumentos são tocados apenas homens que possuem o posto de Ogã das comunidades de terreiro. Estes elementos são considerados mágicos, pois é por meio destes que os orixás ouvem o chamado de seus filhos para celebrar junto a comunidade.

deste capítulo e segue a narrativa de compreender como a presença de oxum auxilia no processo de ressignificação do espaço do “axé”, assim como reafirma a identidade mítica do terreiro em questão.

Figura 19: Axé do Ilê Fará Imorá Odé, lugar de manifestação do sagrado II, Kelvis Torres,2020.

Se o centro do terreiro, denominado “axé”, pode ser entendido como templo e como conexão com o sagrado também pode ser percebido como lugar de manifestação do mesmo. Isso pode ser percebido pela presença da divindade, Oxum, no barracão dançando ao lado das estátuas de madeira do “axé” Fará Imorá. É interessante perceber o olhar do fotógrafo nestas três imagens, nas quais há uma tentativa em dialogar com o observador. Um esforço de transmitir o significado mítico que este espaço possui e sua ressignificação por meio dos marcadores identitários presentes na comunidade, exemplificados pelas oferendas, pelas estátuas de madeira no centro do barracão que simbolizam e identificam este lugar como território sagrado regido por uma

determinada divindade, neste caso em especifico Oxóssi e pela própria manifestação do sagrado cultuado por meio do transe.

Entendido os processos de ressignificação do espaço do terreiro por meio dos elementos míticos do candomblé, a partir das fotografias realizadas pelo fotógrafo Kelvis Torres, segue o conteúdo para o subitem 3.2.2 intitulado Vestindo-se de sacralidades. Nele serão analisadas três fotografias produzidas pela abian da casa que se identifica como Io Hard. Esta análise será realizada a fim de entender as contribuições do ato de vestir-se no processo de construção identitária mítica dos integrantes do Ilê Fará Imorá Odé, bem como na reafirmação e rememoração de sua ancestralidade.