• Nenhum resultado encontrado

3. INADIMPLEMENTO NO DIREITO CIVIL

3.1. CONCEITOS FUNDAMENTAIS DE DIREITO OBRIGACIONAL

3.1.2. Crédito, débito e prestação

Servindo-nos da semente histórica da distinção da doutrina alemã entre obrigação e dívida (Schuldverhältniss),138 válido destacar a opção pelo termo ―débito‖ para indicar o dever jurídico de realização da prestação debitória, correlato ao direito

136 ASSIS, 1993, p. 23. 137 CHIOVENDA, 2002, p. 35-36. 138

CROME, Carlo. Teorie Fondamentali delle Obbligazioni nel Diritto Francese. Milano: Società Editrice Libraria, 1908, p. 3-4.

subjetivo de crédito, isto é, o poder de exigir o cumprimento da prestação, os quais compõem o conteúdo da obrigação (da relação jurídica obrigacional).139

Como já explicitado, a obrigação é relação jurídica (relação jurídica obrigacional),140 e, assim sendo, constitui-se, como ensina Miguel Reale, a partir de quatro ―elementos essenciais‖: o sujeito ativo; o sujeito passivo; o vínculo de atributividade; e o objeto.141

Para além da abordagem dos sujeitos e do objeto, interessa-nos compreender que o vinculo de atributividade é quem vincula os sujeitos da relação jurídica, um face ao outro, concedendo a estes poderes de pretender e exigir algo determinado ou determinável, e deveres, de outro lado, correlativos aos poderes.142

Pontes de Miranda, nesse sentido, é muito claro ao esclarecer que incidindo a norma jurídica nos fatos, tornam-se os fatos e as relações em jurídicos, e ―o que, para alguém, determinantemente, dessa ocorrência emana, de vantajoso, é direito, já aqui subjetivo [...]‖, sendo, de outro lado, o dever jurídico ―o correlativo de todo direito‖143

.

139

Destaque-se que nossa exposição conceitual, assim, se ilumina pela teoria geral do direito, segundo a qual ―o direito subjetivo constitui-se na possibilidade jurídica de que é titular o sujeito ativo de exigir o cumprimento da prestação, ou seja, na prerrogativa de utilizar-se dos mecanismos que o direito dispõe para assegurar sua realização‖, enquanto que ―o dever jurídico constitui-se na obrigatoriedade de que é investido o sujeito passivo de adimplir a prestação, obrigatoriedade esta garantida pelo aparato coercitivo do sistema jurídico‖ (CARVALHO, Aurora Thomazini. Curso de Teoria Geral do Direito. São Paulo: Noeses, 2016, p. 583). Em visão aplicada ao direito civil, é precisa a lição de René Savatier, nessa mesma linha, ao afirmar que o crédito (créance) ―est un droit personnel [...]. est le droit d‟exiger d‟une perssone déterminée une prestation‖; enquanto que a dívida (dette) ―est le devoir de fournir à une personne determinne une prestation‖ (SAVATIER, 1949, p. 8).

140

Compreenda-se, na esteira de Miguel Reale, a relação jurídica como as relações sociais que recebem o título de jurídicas, porquanto inseridas na estrutura de norma jurídica. Assim, as relações somente possuem significado jurídico caso, além de uma relação concreta no âmbito social, haja também uma correspondência em norma jurídica, numa estrutura normativa. Daí, Miguel Reale afirmar a necessidade de que corresponda ―esse vínculo a uma hipótese normativa, de tal maneira que derivem consequências obrigatórias no plano da experiência‖, sendo possível, portanto, ―ocorrer um fato que envolve a relação de duas ou mais pessoas, sem que, todavia, chegue a se caracterizar como fato jurídico, por inexistir norma adequada explícita ou implícita‖ (REALE, Miguel. Lições preliminares do direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 215-216).

141

REALE, 2000, p. 218.

142 É o que se colhe de Miguel Reale: ―Uma relação jurídica é sempre um vínculo entre duas ou mais

pessoas, e toda pessoa que se insere em uma relação jurídica tem sempre direito e deveres, e não apenas direitos, ou não apenas deveres‖ (REALE, 2000, p. 218).

143

Tais direitos e deveres, destaque-se, não se produzem apenas de credor para devedor, numa única mão, haja vista as relações jurídicas serem envoltórios, feixes de direitos e deveres diversos para cada qual dos sujeitos, como ensina Pontes de Miranda.144

Dito isso, empregar-se-á, aqui, direito subjetivo como uma ―posizione di vantaggio

tutelata dalla norma giuridica‖145, conforme ensina Massimo Bianca, sendo marcada pelo poder de se exigir de outrem (o titular do dever jurídico) a realização de determinado agir ou omitir-se, na esteira de Ludwig Ennecerus146.

Dever jurídico, por sua vez, ―consubstancia precisamente uma vinculação ou limitação imposta à vontade de quem por ele alcançado. Definido como tal pelo ordenamento jurídico, o dever há de ser compulsoriamente cumprido, sob pena de sanção jurídica — o seu não atendimento configura comportamento ilícito‖, conforme destaca Eros Roberto Grau.147

O dever pode se vislumbrar em relação a determinada pessoa ou a todas as pessoas, como ensina Pontes de Miranda,148 mas, no campo da relação obrigacional, o dever (débito) que incumbe ao devedor é o de realizar a prestação

144

MIRANDA, 1970, p. 29-31.

145

BIANCA, Massimo. Diritto Civile. 2. ed. Vol. I. Milano: Giuffrè, 2002, p. 4.

146

Esta é a marca que diferencia, para Enneccerus, os direitos subjetivos dos direitos potestativos. Confira-se, nas palavras do autor: ―No deben confundirse las pretensiones con los derechos potestativos o de modificación. Éstos se dirigen a una modificación del derecho introducida por el proprio titular (o producida por si misma) sin colaboración del otro, mientras que la pretensión se dirige aun hacer u omitir de otra persona‖ (ENNECERUS, 1981, p. 962).

147

GRAU, Eros Roberto. Nota sobre a distinção entre obrigação, dever e ônus. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/viewFile/66950/69560. Acesso em 8 de junho de 2017. Eduardo Talamini, ao diferenciar obrigação e dever, explica, no mesmo quadrante, que este é ―a imposição jurídica da observância de determinado comportamento ativo ou omissivo, passível de ser resguardada por sanção‖ (TALAMINI, Eduardo. Tutela relativa aos direitos de fazer e de não fazer. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 126). Em Manuel A. Domingues de Andrade colhe-se que ―o dever jurídico pode representar-se como uma ordem ou comando dirigido pela ordem jurídica ao indivíduo e que ele tem de observar, isto é, como um imperativo [...]. Simplificando, podemos asseverar que há um dever quando a ordem jurídica formula um comando para cuja inobservância estatui uma sanção [...]‖ (ANDRADE, 1966, p.1-2). Não é demais lembrar que não se deve confundir dever jurídico e sujeição. Ainda que as figuras se toquem, como ensina Eros Grau, em virtude de tanto um quanto o outro serem impostos em razão da tutela de interesses alheios aos dos sujeitos por eles alcançados, distanciam-se na medida em que o dever é um vínculo imposto à vontade, enquanto que a sujeição significa impossibilidade de querer com eficácia (GRAU, acesso em 8 de junho de 2017).

148 ―O dever jurídico é o correlativo de todo direito. Se não é o caso de dever de determinada pessoa,

em relação a determinado credor,149 o qual possui um crédito, isto é, um direito subjetivo do credor de receber a prestação (mas não só).150

Direito à prestação (crédito) e dever, correlativo, de prestar (débito) são, neste modo, na lição de Antunes Varela ―o santo e a senha‖, ―o distintivo, a insígnia‖151

que se identificam a partir do vínculo estabelecido na relação obrigacional, o qual confere ao credor o direito de exigir a prestação e o correlativo dever imposto ao devedor de prestar.152

Débito e crédito são, nesse contexto, dois lados de uma mesma moeda,153 formando o conteúdo da relação jurídica obrigacional, como expõe Orlando Gomes, não se confundindo com o objeto da relação obrigacional, consubstanciado na prestação.154 É esta a lição de Carlo Crome que, incursando no estudo aprofundado do direito obrigacional francês, destaca que ―L‟oggetto delle obbligazioni deve tenersi distinto

dal loro contenuto‖; sendo ―oggetto dell‟obbligazione la prestazione, ad ottener la quale tende il diritto del creditore‖155. No direito italiano, de forma similar, colhe-se que ―L‟obbligazione há per oggetto una prestazione cui l‟obbligato deve adempiere‖;

149 ―L‟obbligazione ha il carattere di essere relativa, ossia di non avere efficacia che di fronte ad una

persona determinata; rispetto a tutte le altre persone si ha per inesistente‖ (PACIFICI-MAZZONI, vol. IV, 1927, p. 2). No mesmo sentido: LARENZ, 1958, p. 22-23; ANDRADE, 1966, p. 6.

150 Conquanto se possa, de fato, afirmar, na esteira de Karl Larenz, que ―lo primario y decisivo, lo que

da contenido y significación a la relación obligatoria y determina el carácter típico de la misma es la prestación […]‖ (1958, p. 20); não se pode deixar de considerar que a ela (à prestação) não se resume a relação obrigacional, que, como já destacado, é um processo, uma totalidade.

151

VARELA, vol. I, 1977, p. 15.

152 ―O elemento central da relação obrigacional é o vínculo. Através dele se estabelece a ligação entre

os sujeitos da obrigação e a prestação debitória, que constitui o seu objeto. O vínculo, formado pelo conteúdo da obrigação, abrange o poder conferido ao credor de exigir a prestação e o correlativo dever de prestar imposto ao devedor, estabelecendo o enlace entre um e outro‖ (VARELA, vol. I, 1977, p. 94).

153 Expõe Carlo Crome: ―Diritto di obbligazione e debito sono dunque i due lati de un medesimo

rapporto‖. Destaque-se o uso de Comte da expressão ―diritto di obbligazione‖ como ―diritto di ottenere la prestazione dell‟obbligato‖, ou seja, como direito de crédito (CROME, 1908, p. 1-2). Manual A. Domingues de Andrade, no mesmo sentido, assenta que ―na obrigação se podem discernir duas faces: o direito do credor e o dever jurídico imposto ao devedor. A primeira chama-se crédito e a segunda dívida ou débito. Do lado do credor a obrigação aparece como crédito e do lado do devedor como débito‖ (ANDRADE, 1966, p. 7).

154

GOMES, 1980, p. 165.

155

e que ―L‟oggetto di ogni obbligazione è una prestazione, la quale consiste o nella

trasmissione di una cosa o in un fatto positivo o negativo del debitore‖.156

Resta, assim, a noção de ―prestação‖ como objeto da relação obrigacional157

, consubstanciando-se na ―ação ou omissão a que o devedor fica adstrito e que o credor tem o direito de exigir‖,158 que de forma alguma se confunde com a coisa material em si considerada, sobre a qual o ato de prestar incide.159 Na lição de Manuel A. Domingues de Andrade, é a ―actividade positiva ou negativa a

desenvolver o devedor no interesse do credor‖.160

Dito isso, importa-nos compreender, antes de mais nada, que, numa relação jurídica obrigacional, devedor e credor estão obrigados, respectivamente, a efetuarem as prestações devidas que lhe disserem respeito. É nesse contexto que o estudo (de direito material, em primeiro lugar) do adimplemento e do inadimplemento insere-se, conforme se passa a desenvolver.