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Inadimplemento absoluto, relativo e adimplemento defeituoso

3. INADIMPLEMENTO NO DIREITO CIVIL

3.2. ADIMPLEMENTO E INADIMPLEMENTO

3.2.1. Inadimplemento absoluto, relativo e adimplemento defeituoso

É cediço que aquele que não cumpre precisa e exatamente a prestação a que estava obrigado faz surgir um cenário de inadimplemento, que implica frustração ao direito do credor.

Ocorre que tal frustração pode ou não implicar o desinteresse, desutilidade para o credor em que a prestação a que estava obrigado o devedor ainda seja realizada de forma serôdia. É com base nessa utilidade/desutilidade e nesse interesse/desinteresse que exsurge o critério diferenciador entre o inadimplemento absoluto e o relativo (que recebe o nome de mora).210

Apesar das dificuldades de se separar com clareza as espécies absoluta e relativa do inadimplemento de acordo com a hipótese que estiver em análise,211 pode-se dizer com segurança que, enquanto o inadimplemento absoluto é marcado pela inutilidade de cumprimento da obrigação e pela ausência de interesse do credor em que seja realizada a prestação anteriormente inobservada, a mora caracteriza-se pelo interesse do credor em que, ainda que de forma serôdia, seja cumprida a obrigação.

210

Não é demais alertar que não se deve confundir inadimplemento absoluto ou relativo com inadimplemento total ou parcial. Inadimplemento total ou parcial, que são espécies de inadimplemento absoluto, tocam na circunstância de a prestação não ter sido realizada em sua integralidade ou apenas em parte: ―O inadimplemento absoluto, dissemos, pode ser total ou parcial. Total quando a obrigação, em sua totalidade, deixou de ser cumprida, como no exemplo acima figurado, do perecimento de seu objeto. Dá-se o inadimplemento absoluto parcial, se, verbi gratia, a obrigação compreende vários objetos, sendo um ou mais entregues e perecendo os restantes por culpa‖ (ALVIM, 1949, p. 15).

211

Precisas as pontuações feitas por Agostinho Alvim (1949, p. 42), demonstrando a dificuldade de se enxergar diante de certas circunstâncias se se está perante a uma hipótese configuradora de mora ou de inadimplemento, confira-se: ―O devedor que, na obrigação de pagamento em dinheiro, deixa de solver o compromisso no dia marcado, está em mora, ou será êsse um caso de inadimplemento absoluto? Se êsse estado de coisas prolongar-se, essa longa dilação influirá na caracterização da infração cometida? Se o devedor manifestar a intenção de não solver o compromisso, ou por não querer ou por não se julgar obrigado, êste animo, assim conhecido da outra parte, alterará a classificação cometida?‖. Miguel Maria Serpa Lopes (1995, p. 352), por sua vez, reconhece que tal distinção é um ―problema eriçado de dificuldade [...] todos ressaltam-lhe o aspecto nebuloso, confuso e esotérico‖.

É importantíssimo notar que tal categorização se faz possível em momento posterior à situação objetiva caracterizadora do inadimplemento, bem como assume como referencial subjetivo o ponto de vista do credor, conforme destacou de forma perfeita Agostinho Alvim, há mais de 70 anos, em sua festejada obra ―Da inexecução das obrigações e suas consequências‖.212

Assim, o inadimplemento absoluto caracterizar-se-á quando a obrigação não foi cumprida, nem poderá sê-lo, porquanto ―irrecuperável‖, no preciso apontamento de Araken de Assis.213

No que tange à mora (inadimplemento relativo), por sua vez, é preciso notar que ―a ideia de retardamento encerra em si a de possibilidade de cumprimento ulterior, porque só se diz que alguém está em atraso de fazer, quando a possibilidade de fazer ainda existe‖, como destaca Agostinho Alvim embasado em farta doutrina italiana (Giorgio Giorgi, Francesco Ricci, Carmelo Scuto, Giampietro Chironi).214 Assim, a ―viabilidade do cumprimento constitui pressuposto da mora‖, conforme destaca Maria Helena Diniz.215 Em outras palavras, a mora se constitui por um ―retardamento transitório e superável‖,216 tendo como traço distintivo a ―utilidade do

cumprimento e permanência do interesse do credor‖.217

212

ALVIM, 1949, p. 45.

213

ASSIS, 1999, p. 92. Válido destacar, no contexto de diferenciação entre inadimplemento absoluto e mora, que não nos parece ser possível falar em mora naquilo que toca à prestações de não fazer, porque, ainda que se possa em alguns casos reparar as consequências da prática a que deveria o devedor se abster, não é possível dizer que houve mero retardamento. Aliás, importa destacar que o Código Civil brasileiro de 2002 corrigiu, em seu art. 390, equívoco contido no Código Civil brasileiro de 1916, que em seu artigo 961 previa que: ―Nas obrigações negativas, o devedor fica constituído em mora, desde o dia em que executar o ato de que devia se abster‖. A correção está nítida no código civil vigente: ―Art. 390. Nas obrigações negativas o devedor é havido por inadimplente desde o dia em que executou o ato de que devia se abster‖.

214

ALVIM, 1949, p. 39.

215

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil. vol. 2. São Paulo: Saraiva, p. 308.

216

ASSIS, 1999, p. 93.

217

ASSIS, 1999, p. 110. É preciso salientar que caberá ao juiz examinar a efetiva existência da utilidade, segundo os costumes e as regras de experiência, a fim de verificar se é justificável ou injustificável recusa do credor à prestação extemporânea, se a ela forem acrescidos juros e perdas e danos (ASSIS, 1999, p. 94-95).

No mesmo sentido, as doutrinas de Chironi, Giorgianni e Bianca destacam a mora como um retardamento qualificado, isto é, uma inexatidão temporal provisória e imputável ao devedor.218

A despeito de parte da doutrina identificar a mora com o simples retardo, ou, ainda, com o retardo imputável,219 antes de mais nada, é preciso identificar que o retardamento é apenas uma das hipóteses de ocorrência de mora (a mais importante, certamente), haja vista que o CCB/2002 (art. 394), assim como também ocorria com o CCB/1916, considera em mora tanto o devedor que retarda o pagamento, como aquele que não cumpre no lugar, na forma e do modo pactuado, conforme lição de Silvio Rodrigues.220

Veja-se, aliás, que, inclusive, é plenamente possível que, uma vez verificado o inadimplemento, configure-se mora e somente posteriormente configure-se, de forma superveniente, o inadimplemento absoluto.

218 ―Il ritardo é in generale l‟inosservanza del termine dell‟adempimento. Il termine dell‟adempimento

indica il tempo in cui la prestazione dev‟essere eseguita, e il ritardo è quindi una fattispecie d‟inadempimento: esso è precisamente l‟inadempimento temporale dell‟oggligazione. La nozione di ritardo si specifica ulteriormente come provvisoria inesecuzione della prestazione e come inesatezza temporale della prestazione. Nel primo significato il ritardo designa la situazione di provvisoria inesecuzione della prestazione a seguito dell‟infruttuosa scadenza del termine: situazione alla quale può ancora fare seguito l‟adempimento. Nel secondo significato il ritardo indica l‟inesatezza della prestazione eseguita in violazione del termine. [...]. Come inesecuzione provvisoria della prestazione il ritardo si contraponde all‟inadempimento definitivo. L‟inadempimento definitivo è la irreversibile inesecuzione della prestazione, cioè l‟inadempimento al quale non può più fare seguito l‟esecuzione della prestazione. La mora è il ritardo imputabile ao debitore. La mora è dunque una nozione distinta rispetto a quella di ritardo, nel senso che il ritardo indica la fattispecie oggettiva dell‟inosservanza del termine mentre la mora indica il ritardo di cui il debitore è responsabile. [...]‖ (BIANCA, vol. V, p. 81- 85). Confira-se também: CHIRONI, vol. II, 1912, p. 80; GIORGIANNI, 1975, p. 88.

219

Massimo Bianca entende, nesse sentido, que ao lado do inadimplemento definitivo, há uma série de situações de inexatidão da prestação, dentre as quais aquela atinente ao retardamento chama-se mora. Dentre as inexatidões, elenca Bianca aquelas relativas a uma negligência do devedor, ao não atuar com a diligência que dele se esperava; aquelas relativas à prestação em local diverso do previsto; aquelas atinentes aos sujeitos que devem e a quem se devem a prestação; aquela relativa à parcialidade da prestação; aquela atinente ao comportamento devido pelo devedor (BIANCA, vol. V, 1994, p. 7-11).

220 ―[...] para o Código a mora é mais que o simples retardamento, pois o legislador acrescentou, ao

conceito tradicional, a ideia de cumprimento fora do lugar e de forma diferente da ajustada‖. A despeito disso, tal abertura se mostra de menor relevância prática, uma vez que, segundo o autor, ―em regra, a mora se revela pelo retardamento‖ (RODRIGUES, 2002, p. 244). Pontes de Miranda, nesse mesmo sentido: ―independentemente do tempo, pode haver mora (Verzug), se não é feito o pagamento em lugar convencionado e pela forma devida, ou somente se não for no lugar ou pela forma que se estabeleceu‖ (MIRANDA, 1928 p. 236). Araken de Assis, ao abordar que o adimplemento deva se dar de acordo com uma série de circunstâncias de tempo, lugar e forma, também destaca que o inadimplemento reponta como ―o descumprimento dessas circunstâncias, que valoram o comportamento do obrigado‖ (ASSIS, 1999, p. 90).

O que deve ficar claro a esta altura é que tanto o inadimplemento absoluto, como a mora (inadimplemento relativo), interessam-nos para fins de compreender como o inadimplemento repercute no sistema de tutela jurisdicional executiva.

A relevância de tal distinção está em que, via de regra, o inadimplemento absoluto, por significar a absoluta impraticabilidade de se obter aquilo que deveria ser prestado, implica ao credor ou a possibilidade de obter uma reparação por perdas e danos, requerendo, portanto, a condenação do devedor ao pagamento de determinada quantia (arts. 389, 391, 402, 403 e 927, do CC/2002); ou, no máximo, a obtenção de uma reparação específica, isto é, de um resultado prático equivalente, o qual é preferível à mera reparação pecuniária (genérica).

Consequência diferente teremos, contudo, no que diz respeito à mora, uma vez que, pelo fato de o retardamento ocorrido não representar impossibilidade de realização da prestação e tampouco a inutilidade ou desinteresse para o credor em tal, ao menos a priori, a pretensão executória preferencialmente deverá voltar-se à obtenção da realização da prestação originariamente descumprida, ainda que se reconheça com lastro em José Frederico Marques que, nestes casos, o processo executivo não estará a realizar a prestação devida em si, mas sim a atuar o preceito sancionador, obtendo-se no mundo dos fatos situação quase idêntica.

Com efeito, como expõe Mario Julio de Almeida Costa, ―a pura mora solvendi não extingue a obrigação, continuando o devedor adstrito a satisfazer a prestação respectiva‖. E acrescenta o autor: ―nem o credor pode resolver o contrato que esteja na base da obrigação, enquanto o atraso do devedor não se equipare a não cumprimento definitivo‖.221

Ao lado do inadimplemento absoluto e da mora, ainda há que se destacar o cumprimento defeituoso (ou imperfeito) que é aquele que, embora marcado pelo cumprimento da prestação debitória principal, apresenta divergência que não toca na identidade ou na quantidade da prestação, tampouco resulta do atraso do

221

COSTA, Mario Julio de Almeida. Direito das Obrigações. 4. ed. Coimbra: Coimbra, 1984, p. 740. Em sentido oposto, confira-se: MIRANDA, tomo XXIII, 2003, §2.809, p. 213-235.

cumprimento.222 Trata-se de vício no modo de realização da prestação: esta efetivamente se realiza, contudo, não exatamente como se impunha.223

Assim, para se falar em adimplemento defeituoso ou adimplemento ruim, como prefere Pontes de Miranda, é necessário haver adimplemento e defeito,224 como se observa em uma série de exemplos trazidos pela doutrina, verbi gratia, em Pontes de Miranda, em Araken de Assis, em Mario Julio de Almeida Costa. Com efeito, imagine-se um médico que faz o diagnóstico exato da doença que acomete o paciente, mas, dentre diversos tratamentos disponíveis e acessíveis, escolhe o mais penoso e demorado; imagine-se também uma empresa que é contratada para fazer um outdoor luminoso, o que precisamente faz, instalando-o, contudo, num local sem qualquer visibilidade, etc.225

Feitas as distinções, resta-nos assentar que, uma vez descumprida a obrigação pelo devedor, ―o credor tem o direito de buscar os meios necessários à recomposição do prejuízo sofrido com a não execução ou procurar outros meios, quando possíveis, da própria realização in natura da prestação‖.226

Nesse contexto, fica claro que a distinção entre inadimplemento absoluto, mora e cumprimento defeituoso é importante para fins de se considerar a adequação da tutela executiva pretendida pelo credor, haja vista que, como ensina Cândido Rangel Dinamarco, ―o não adimplemento que melhor se ajusta aos conceitos e às técnicas executivas é aquele que se resolve em simples mora, não no inadimplemento‖.227

222 ASSIS, 1999, p. 113. 223 COSTA, 2014, p. 1058-1059. 224 MIRANDA, 1974, p. 191-192. 225

Exemplos colhidos de Araken de Assis (1999, p. 113). Também vale conferir os exemplos de Mario Julio de Almeida Costa (2014, p. 1060) e Pontes de Miranda (1974, p. 191-192).

226

LOPES, 1995, p. 332. Só se poderia, com efeito, interpretar literalmente o art. 389 do CPC/2015, vinculando-o à noção de reparação, se se entender, como propunha Miguel Maria Serpa Lopes, no ano de 1995 (visão mutatis mutandi aplicável ao contexto de hoje), que duas são as modalidades de reparação do dano: a reparação específica e a mediante a estipulação de perdas e danos (LOPES, 1995, p. 396). Acrescenta o autor nas três páginas seguintes (passim) da mesma obra que: ―a reparação do dano sob forma específica é a que se processa in specie, ad rem ipsam‖; e que ―a reparação do dano pelas perdas e danos, ao contrário, é a que se processa mediante a estimação do prejuízo decorrente do não cumprimento da prestação, fazendo-se a composição por meio de certa quantia em dinheiro correspondente ao prejuízo sofrido‖.

227

É esta mora que permite, via de regra, que a atividade jurisdicional executiva e que o instrumento processual executivo exerçam com maior plenitude e efetividade a função de realizar e satisfazer o direito exequendo, na medida em que ainda se faz possível lançar mão de técnicas adequadas para que se alcance a realização da prestação devida da forma mais semelhante possível ao que o credor obteria em caso de adimplemento voluntário e espontâneo.

Nesse mesmo sentido, Mario Julio de Almeida Costa destaca que ―não se verificando a satisfação voluntária da obrigação, cabe ao credor o direito de exigir através dos Tribunais o seu cumprimento e de executar o patrimônio do devedor [...], contudo, o cumprimento específico da obrigação, obtido por via executiva, só em casos particulares e quando haja simples mora será possível‖.228

Dito isso, há que se destacar que o inadimplemento tanto pode se referir à obrigação originária quanto a uma derivada, secundária,229 o que bem se verifica, por exemplo, no seio da distinção traçada entre mora e inadimplemento absoluto.

Veja-se, nesse sentido, que, em caso de mora, além da tutela pretendida para o cumprimento serôdio da prestação inadimplida, poderá haver a execução de prestação de ordem subsidiária, que se tornou exigível em virtude do inadimplemento, como, verbi gratia, o pagamento de encargos moratórios ou o pagamento de cláusula penal (arts. 408 e ss, CCB/2002), e até mesmo o pagamento de quantia que vise a indenizar danos outros ocasionados pelo retardo (arts. 402 e ss, CCB/2002), etc. O inadimplemento destes também, certamente, enseja a possibilidade de ingressar em juízo, independentemente de se a prestação já foi realizada tardiamente, em caso de mora.

Em caso de inadimplemento absoluto, a prestação em si não se mostra útil e do interesse do credor, de modo que novo vínculo direito-dever, de ordem subsidiária, consubstanciado na reparação dos danos, reponta tutelável, inclusive

228

COSTA, 2014, p. 1068.

229

executivamente (se preenchidos os requisitos), sendo esta a obrigação a ser atuada por meio de eventual processo executivo.230

O fato de se verificar, portanto, inadimplemento em sentido estrito (inadimplemento absoluto), mora ou cumprimento defeituoso implica consequências distintas ao modo como a pretensão condenatória ou executória será, a priori, formulada e como a atividade satisfativa (notadamente meios executivos) será, portanto, desenvolvida.