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INADIMPLEMENTO E RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL

3. INADIMPLEMENTO NO DIREITO CIVIL

3.4. INADIMPLEMENTO E RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL

Ao lado desse dever de indenizar/reparar (dever de prestar) imposto ao obrigado em virtude do inadimplemento, visualiza-se272 fenômeno distinto, mas a ele conexo, denominado responsabilidade patrimonial, tendo ambos um ponto comum: o fato de ganharem relevo a partir do inadimplemento do devedor, como ensina Michele Giorgianni.273

Não se está a falar, que fique claro, que sempre que ocorrer o inadimplemento, estar-se-á a falar em responsabilidade patrimonial, porquanto, como já visto, é plenamente possível que se obtenha, inclusive por meio do emprego de técnicas executivas, a satisfação do direito exequendo, sem que se tenha que tocar no patrimônio do executado.

A responsabilidade patrimonial, nesse sentir, é uma garantia imposta pela lei ao credor no caso de não realização da prestação debitória, como destaca Michele Giorgianni,274 constituindo, mais especificamente, a garantia de que pelo

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É, portanto, a visão da relação jurídica em sua complexidade de direitos, deveres, faculdades, ônus, sujeições, direitos potestativo, que permite afirmar, sem margem para dúvida, que seja em decorrência de cometimento de ato ilícito, seja em decorrência de inadimplemento obrigacional, exsurge, na nova relação obrigacional, além do dever de reparar, a sujeição patrimonial em sua feição concreta, garantindo ao credor que, em caso de não adimplemento tardio, ou não ressarcimento de danos de forma espontânea, o patrimônio do devedor encontra-se sujeito à expropriação para satisfação do interesse de reparação pecuniária.

273“Il debitore soggiace perciò a due tipi di responsabilità: l‟uno costituito dall‟obbligo del risarcimento

del danno arrecato a causa dell‟inadempimento, l‟altro costituito dalla soggezione dei suoi beni presenti e futuri all‟azione dei creditore insoddisfatto. [...] i due fenomeni, se è vero che sono tra di loro completamente distinti, sono senza subbio intimamente connessi in quanto hanno come comune punto di riferimento l‟inadempimento del debitore” (GIORGIANNI, 1975, p. 9). É o mesmo que destaca Marcelo Abelha Rodrigues (Manual de Execução Civil, 2016, p. 74) ao afirmar que é o inadimplemento o momento de concretização da responsabilidade patrimonial, que, antes disso, isto é, ao tempo da assunção da obrigação assumia caráter de sujeitabilidade patrimonial, sob a feição de potência.

274 A responsabilidade patrimonial designa ―quello strumento esecutivo, predisposto dall‟ordinamento

per l‟ipotesi di inadempimento del debitore [...]” (GIORGIANNI, 1975, p. 12). Distancia-se, assim, a noção de responsabilidade patrimonial da tutela dos direitos reais, na medida em que esta é tendente ―a garantire al titolare il recupero (o la consegna) della cosa che ne costituisce oggetto, la essazione delle attività da altri esplicate indebitamente sulla cosa, e la eliminazione delle opere che impediscono o turbino l‟esercizio del diritto sulla cosa [...]‖. E acrescenta Giorgianni: ―così, le azioni di tutela della proprietà sono dirette a recuperare la cosa da chiunque la possiede o detirne illegittimamente (azione di rivendicazione: art. 948) ovvero a far dichiarare l‟inesistenza di diritto altrui sulla cosa e

inadimplemento responderá o patrimônio do devedor (conforme dispõe o art. 391, CCB/2002).

Não obstante, o instituto atrela-se apenas e tão somente à tutela de obrigações pecuniárias, sejam elas, contudo, originárias ou derivadas, haja vista que, como destacado, a responsabilidade patrimonial assume também relevância diante do inadimplemento de obrigações específicas, quando, ao credor, não resta, em regra, outra saída senão a indenização pelo equivalente pecuniário se não for possível a obtenção de resultado próximo, semelhante, equivalente ao que se obteria com o adimplemento voluntário e espontâneo.275

Assim, seja a obrigação inadimplida originária e propriamente uma obrigação pecuniária, seja a obrigação inadimplida uma obrigação pecuniária exsurgida em virtude da impossibilidade de se obter a satisfação de obrigação específica, a responsabilidade só tem lugar para a tutela de obrigações pecuniárias.

Sem intenção de ingressar no longo e árduo debate histórico a respeito da natureza do instituto,276 interessa-nos que a responsabilidade patrimonial, tal como se

conseguentemente ottenere la cessazione di turbative o molestie del terzo [...], ovvero a ristabilire gli esatti confini tra due fondi [...]‖ (GIORGIANNI, 1975, p. 15)

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BIANCA, vol. V, 1994, p. 409.

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O debate a que se faz referência pode ser abordado, para fins de contextualização da posição assumida neste estudo, entre, basicamente, três teorias. Uma primeira teoria afirmava a responsabilidade patrimonial como instituto ínsito, interior ao próprio crédito, sendo dívida e responsabilidade dois aspectos do mesmo fenômeno. Assim, afirmava-se, como ensina Buzaid, que ―a dívida não é simplesmente o dever de prestar, mas o dever de prestar sob a coação da ordem jurídica e por isso conduz não só à prestação voluntária do obrigado, mas também, no caso de inadimplemento, a execução coativa da obrigação, e onde esta não é possível ou não basta ao ressarcimento [...]‖ (Voto de Alfredo Buzaid no julgamento do Recurso Extraordinário nº 99.041/GO). Outra doutrina pretendeu distinguir débito e responsabilidade (a chamada teoria do Schuld und Haftung), afirmando observar-se duas sub-relações dentro da relação jurídica obrigacional: ―Decompôs-se o conceito de obrigação em dois elementos, que geralmente encontram-se unidos, mas que podem estar separados, a saber: a) a dívida que consiste no dever de prestar por parte do devedor; b) e a responsabilidade, que exprime o estado de sujeição dos bens do obrigado à ação do credor‖. E acrescenta o autor: ―A dívida é assim um vínculo pessoal; a responsabilidade um vínculo do patrimônio. O devedor obriga-se; seu patrimônio responde‖. Tal teoria foi proposta, na Alemanha, por Alois Brinz e seria, depois, desenvolvida por diversos autores com destaque para von Gierke. E, ainda, uma terceira doutrina que, negando a natureza material, definiu a responsabilidade patrimonial como instituto de direito processual, enquanto estado de sujeição de caráter processual, que não se identifica e tampouco se inclui na obrigação previamente assumida. Tal teoria (denominada processualista) nasceu em estudo primoroso e revolucionário de Francesco Carnelutti, no ano de 1927, e encontraria em Enrico Tullio Liebman o seu principal difusor no Brasil. Liebman destaca que ―a responsabilidade ao invés de ser elemento da relação jurídica obrigacional [...] é vínculo de direito público processual, consistente na sujeição dos bem do devedor a serem destinados a satisfazer o credor, que não recebeu a prestação devida [...]‖. O raciocínio completo do autor pode ser bem

apresenta hodiernamente, após a superação da ideia de responsabilidade pessoal

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e após a doutrina alemã (com destaque para Alois Brinz e Von Gierke) ter identificado a diferenciação entre débito (Schuld) e responsabilidade (Haftung),278 assume a condição de garantia comum da execução da obrigação,279 em virtude de seu feitio de sujeição do patrimônio do responsável pelo inadimplemento da obrigação assumida.280

identificado nos excertos ora colacionados: ―o credor não tem o poder de invadir com seus próprios meios a esfera jurídica do devedor; ele tem apenas o direito de pedir que outrem (o órgão judiciário) o faça, direito que não é outra coisa que a ação [...]. Quem põe as mãos sobre os bens do devedor é o Estado, por intermédio de seu órgão competente: ele e só ele tem os poderes para tanto [...]. O erro das doutrinas privatísticas é de querer construir com materiais tirados exclusivamente do direito privado uma série de atividades e relações em que a autoridade soberana do poder público intervém necessariamente, em exercícios de poderes que lhe pertencem em caráter privativo para cumprir sua missão de guardião e defensor do direito. A sanção não é elemento da relação jurídica privada. Titular do poder sancionatório é o Estado, como elemento integrante de sua soberania‖. E acrescenta o autor ―deste modo, a relação de direito material, considerada isoladamente, não proporciona a seu titular nenhum meio para reagir contra a falta de adimplemento. Mas o erro está justamente em considera-la isolada e só [...]. Toda relação nasce e vive mergulhada na ordem jurídica, a qual dispõe dos aparelhos coativos necessários. Se a obrigação deixou de ser cumprida, o credor disporá de outro direito (a ação), cujo exercício provocará o emprego da coação por parte do órgão público competente. Reconhecer que o crédito e a ação são direitos distintos e que o poder de por as mãos sobre o patrimônio do devedor é de caráter público e pertence ao Estado significa simplesmente dar a cada um o que é seu [...]‖ (LIEBMAN, 1968, p. 31-32). Esta é a lição encontrada, no Brasil, em Cândido Rangel Dinamarco (2009, p. 354), Alfredo Buzaid (1952, p. 17), entre outros. Além destas, obviamente, outras se destacaram como a ideia proposta por Alfredo Rocco de que a responsabilidade patrimonial consistiria em um penhor especial e geral do patrimônio do devedor, como ensina (e critica) Liebman: ―Sustentou, assim, Alfredo Rocco que [...] ao lado da relação pessoal incoercível, outra relação conexa, de natureza real, permite ao credor conseguir a satisfação coativa de seu direito. Esta relação real seria propriamente um direito de penhor, imposto sobre todos os bens do devedor [...]. Tratar-se-ia de direito de penhora muito especial, porque, em vez de localizar-se sobre bens determinados, abrangeria todo o patrimônio do devedor [...]‖ (LIEBMAN, 1968, p. 30). A posição de Liebman, não é demais falar, encontrou várias críticas na doutrina. Araken de Assis foi um dos autores que apontou insuficiências da teoria processualista. A respeito confira-se: ASSIS, Araken de. Responsabilidade Patrimonial. In: LOPES, João Batista; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Execução Civil: aspectos polêmicos. São Paulo: Dialética, 2005, p. 14-17. A respeito das teorias da responsabilidade patrimonial, confira-se: SIQUEIRA, Thiago Ferreira. A responsabilidade patrimonial no novo sistema processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 83-123.

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A fase da responsabilidade pessoal era marcada pela repercussão do inadimplemento sobre o corpo do devedor. Ele deveria responder com seu próprio corpo e sua própria vida por suas dívidas inadimplidas. Hoje, felizmente tem-se por aceita apenas a sujeitabilidade do patrimônio do devedor pelas dívidas por ele assumidas, salvo exceções. A respeito, vale conferir a passagem da obra de Orosimbo Nonato (NONATO, Orosimbo. Curso de Obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 1959), às páginas 109 e 110, que cuida com clareza da superação da responsabilidade corporal, sob a perspectiva do direito obrigacional. Também vale conferir: LARENZ, 1958, p. 32-34.

278 Sobre o tema, Araken de Assis: ―na estrutura obrigacional há que se distinguir entre Schuld – o

débito, ou seja, o dever de prestar – e Haftung – a responsabilidade, quer dizer, a sujeição dos bens do obrigado à satisfação do débito‖ (ASSIS, 2005, p. 12).

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LOPES, 1995, p. 404-405.

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RODRIGUES, Manual de Execução Civil, 2016, p. 71-72. Confira-se também a lição de Rodrigo Mazzei e Sarah Merçon-Vargas (MAZZEI, Rodrigo; MERÇON-VARGAS, Sarah. Da penhora, do

O relacionamento íntimo, que propomos, entre inadimplemento e responsabilidade patrimonial decorre do fato de que, como ensina Araken de Assis, adotada a teoria que for, a responsabilidade patrimonial apenas se concretiza mediante o inadimplemento.281

Com efeito, conferindo-se o devido equilíbrio, na estrutura da relação obrigacional, entre a prestação e a responsabilidade patrimonial,282 é de se destacar, na esteira de Marcelo Abelha Rodrigues, que, uma vez ocorrido o inadimplemento, ―o credor e o devedor assumem posições jurídicas ativas e passivas em relação à responsabilidade patrimonial‖, sendo a posição assumida pelo devedor a de submissão do seu patrimônio como garantia pelo inadimplemento, e a do credor de poder de ter a expropriação do tal patrimônio que responde pela dívida inadimplida.283

Sendo assim, não resta custoso perceber como a sujeitabilidade patrimonial atua como instituto de caráter instrumental, voltado a garantir que a atividade jurisdicional orientada à afetação e à expropriação de bens do patrimônio do devedor para indenização do credor seja possível, concretizando-se seu papel de norma secundária em caso de inadimplemento da obrigação (prestação da obrigação é a norma primária).284285

depósito e da avaliação (arts. 831-869). In: Antonio do Passo Cabral; Ronaldo Cramer. (Org.). Comentários ao novo Código de Processo Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 1188-1242).

281

ASSIS, 2005, p. 13.

282

Nos referimos a uma posição de equilíbrio, com o fito de salientar a intenção em não seguir o extremismo, tão criticado na doutrina, de considerar, a partir da doutrina de schuld und haftung, a supervalorização da responsabilidade patrimonial, a ponto de suprimir importância a figura central da relação obrigacional que é a prestação. Confira-se, a respeito: SIQUEIRA, 2016, p. 87-88.

283

RODRIGUES, Manual de Execução Civil, 2016, p. 77.

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Em outras palavras, enquanto a realização da prestação (adimplemento) se afigura como endonorma (norma primária), a responsabilidade patrimonial é perinorma (norma secundária) criada pelo legislador para salvaguardar o credor contra o inadimplemento, atuando, como dito, como uma sanção pelo inadimplemento da obrigação (RODRIGUES, 2015, p. 76). Válido também o escólio de Karl Larenz que, ao explanar a distinção entre débito e responsabilidade, afirma que esta acompanha como sombra aquela, a partir da ideia de que ―El que asume una obligación no se hace cargo sólo de um deber jurídico-moral [...], sino que corre el riesgo de perder su patrimônio (o una parte del mismo) por via ejecutiva [...]. De esta suerte la responsabilidad que acompanha la deuda transmite a esta una espécie de gravitación‖. (LARENZ, 1958, p. 34). Aproximando o conceito de responsabilidade patrimonial ao de sanção, Willis Santiago Guerrao Filho ensina que ―ao conceito de sanção está vinculado o de responsabilidade, com o seu caráter de sujeição. Enquanto o titular de um dever está obrigado a uma conduta conforme o direito, o titular da responsabilidade responde por uma conduta antijurídica, por um ilícito, assumindo a sanção que lhe é estabelecida na norma‖ (GUERRA FILHO,

Em suma, diante de tudo que foi dito, tem-se, portanto, que descumprida uma obrigação, e não sendo possível ou adequada materialmente a atuação com vistas à tutela de maior coincidência, restará o caminho das perdas e danos, com destaque para a responsabilidade patrimonial, sendo esta a leitura precisa que se deve fazer do disposto no art. 389, CCB/2002.