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CONHECIMENTO NÍVEL QUANTIDADE

2.3 A INFÂNCIA NO CONTEXTO HISTÓRICO, CULTURAL E SOCIAL – QUAL O LUGAR DOS BEBÊS?

2.3.2 As crianças na sociedade contemporânea

Atualmente temos uma aparente maior visibilidade nos temas relativos à infância, sendo cada vez mais enfatizada nos processos de investigação, nas discussões das agendas políticas ou debates judiciais sobre crianças em situações de risco ou sobre a maioridade penal32 e, ainda, através da mídia, com cada vez mais programas destinados às crianças. Porém, essa indefinição em relação às concepções de infância e a forma como a sociedade vê as crianças, não foi ainda superada e as crianças continuam a se constituírem de forma diversa e contraditória.

Charlot (1986) exemplificou algumas dessas contradições ao observar que concebemos a criança como um ser ao mesmo tempo inocente e mau, perfeita e imperfeita, dependente e independente, herdeira e inovadora. Essas imagens contraditórias são, principalmente, consequência do que nelas é projetado pelo adulto e pela sociedade, assim como suas aspirações e repulsas. O autor também chama a atenção para uma característica que, socialmente, se torna uma das mais significativas na definição da infância: o fato dela, a criança, independentemente de seu contexto social, ser um ser dependente do adulto, sendo este ―[...] um fator social inelutável, qualquer que seja a organização social‖ (CHARLOT, 1986, p. 132). Assim, nessa perspectiva, por nascer e crescer em um mundo adulto é progressivamente que a criança vai adquirindo sua autonomia.

O sentimento moderno da infância, a representação do modelo ideal de infância sonhado pelos adultos, não é uma realidade que se expressa da mesma forma e nas mesmas condições objetivas para todas as crianças. Assim, a situação das crianças na sociedade atual é cercada de elementos contraditórios onde, por um lado, identificam-se situações que podem ser consideradas de melhoria da sua qualidade de vida, com junção de forças que visem cada vez mais à proteção das crianças e, por

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A PEC 171/1993 prevê a diminuição da maioridade penal de 18 para 16 anos. Dessa forma, adolescentes maiores de 16 anos seriam punidos pela Justiça como adultos. Apesar da pressão pela não aprovação da lei por instituições e grupos em defesa da criança e do adolescente, vários projetos buscavam sua aprovação no congresso até metade de 2005. ( http://ultimosegundo.ig.com.br).

outro lado, essas forças não dão conta de resolver os inúmeros problemas que cercam a infância.

A criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, aprovado em 1990, que ajudou a transformar as crianças em sujeitos de direitos, ao menos no campo legal, é um exemplo disso. Ao analisar ações como essas, pode-se considerar que a situação das crianças apresentou mudanças positivas e significativas no último século. Porém, essas mudanças não alcançaram, com a mesma proporção todas as crianças, ou todos os contextos sociais.

Assim, ao mesmo tempo em que se cria uma série de mecanismos de proteção à infância, as crianças ainda não encontram seu lugar na sociedade como cidadãs de direito, e os próprios adultos muitas vezes agem de forma diferente do que propõem seus discursos. Apesar da aprovação de leis e das conquistas relativas aos direitos das crianças, na prática ainda esses direitos não são respeitados de maneira integral. Soares e Tomás (2004) elucidam exemplos que reforçam o caráter contraditório da situação das crianças: falta de condições mínimas de saúde e educação, altas taxas de mortalidade infantil, inquietantes porcentagens de crianças que não frequentam a escola, alarmante aumento de infectados por doenças sérias, como o HIV, e situações de extrema exclusão e pobreza, ainda predominam em grande parte das populações infantis.

Mais recentemente (2013-2014), acompanhamos na mídia também a situação das crianças vítimas da guerra entre Palestina e Israel33. Tornou-se comum, nessa guerra, ataques às escolas e instituições de abrigo de adultos e crianças, instituições que, aparentemente, deveriam ser mantidas como neutras em conflitos armados, o que no nosso entender, visa a destruição em massa da população palestina por Israel, o que seria alcançado também com a aniquilação da população infantil. De uma forma ou de outra, as crianças são as que mais sofrem com esse tipo de conflito, como vítimas diretas dos ataques, ou também como combatentes.

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Segundo dados da UNICEF, cerca de 150 crianças foram mortas como resultado dos ataques e bombardeios aéreos e forças navais e terrestres, só no mês de julho/2014, na guerra entre Palestina e Israel. Nos meses subseqüentes, o saldo de mortes chegou a dez crianças por dia. Porém, diante da proporção que essa guerra tomou, questionamos inclusive os dados da UNICEF, considerando que talvez eles não dão conta do total de crianças atingidas, que poderia ser bem maior.

A infância em nossa sociedade contemporânea também pode ser considerada uma etapa em que os sujeitos crianças adquirem um status de dependência, e precisam de proteção e provisão dos adultos. Em que ainda não participam do processo de produção de bens e serviços, mas que cada vez mais vêm se tornando fatias do mercado capitalista e vistas como possíveis consumidoras de bens e serviços.

A infância nas classes menos favorecidas carece de condições mínimas para viver uma infância digna. As crianças são privadas de seus direitos à alimentação, saúde, moradia, educação e, muitas vezes, de seu direito de brincar, tendo que assumir funções que caberiam aos adultos. Assim como, as crianças das classes mais favorecidas podem não sofrer com a falta de condições de saúde, educação, alimentação etc., mas muitas são vítimas de outro tipo de exploração, a exemplo da Indústria Cultural que lhes cria necessidades de consumo, e de uma agenda cheia de compromissos que visa garantir as condições e prepará- las, o mais cedo possível, para um futuro promissor, para a entrada no competitivo mercado de trabalho (VAROTTO; SILVA, 2004).

Postman (1999) denunciou o suposto desaparecimento da infância, pois as crianças, ao terem acesso cada vez mais ao mundo da informação adulta, através da mídia, da TV e da internet, estariam se afastando de um mundo próprio que poderia caracterizá-las. Baseada na ideia de que a miséria e a desigualdade sempre acompanharam a sociedade, Kramer (2003) questiona a ideia do desaparecimento da infância proposta por Postman (1999), e reforça que não é somente a infância que vem sofrendo, mas parece haver toda uma destruição da dimensão humana do próprio homem. Ou seja, há toda uma sociedade que parece estar em crise. Assim, o debate em torno do desaparecimento da infância não pode ofuscar a nossa consciência diante das situações de exclusão e pobreza de grande parte das populações infantis. Prout (2003/2004) considera que apesar das críticas a essa visão do desaparecimento da infância, Postman, e outros autores que a defendem, fizeram considerações importantes quando demonstraram as linhas cada vez mais tênues entre os limites da infância e dos adultos.

Soares e Tomás (2004) reforçam que, no caso das crianças, o que se percebe é uma dupla exclusão, pois por um lado a exclusão parece justificada pelos indicadores de pobreza que afetam as crianças e, por outro lado, as crianças são excluídas das tomadas de decisão. As autoras defendem para as crianças uma visibilidade que não sirva apenas para explicar fenômenos de interesse político e econômico, mas também trazer para a arena pública uma imagem de infância como um grupo

social com direitos, como o direito de ter voz e de poder também intervir nos processos que lhe dizem respeito.

A inclusão das crianças no seio das discussões globais, e a sua promoção como sujeitos de direitos, se contempla no que Soares e Tomás (2004), baseadas na concepção de Cosmopolitismo de Santos (2002)34, vão chamar de Cosmopolitismo Infantil, movimento transnacional de luta pelos direitos das crianças e que se apoia nas organizações que as defendem (UNICEF, Childwatch International Save the Children Alliance, UNESCO, entre outros), e na Sociologia da Infância, que tem cada vez mais se debruçado sobre as questões referentes às crianças. Entre os enfoques dados pela Sociologia da Infância, destaca-se a luta pelo Protagonismo Infantil, através de promoção de políticas sociais de participação infantil e a inclusão no debate da globalização das questões associadas à infância.

Questionamo-nos, porém, como garantir a participação efetiva das crianças na esfera pública, se ainda não se apresentam condições de participação no universo que está mais próximo a elas, como as instituições de educação onde se inserem? É inevitável nos remetermos a esses espaços onde, prioritariamente, se procura garantir o direito à proteção e provisão, como alimentação saudável, sono, segurança, espaço/tempo para brincadeiras, etc., mas tudo geralmente enraizado em uma rotina adultocêntrica, com pouco espaço para que as crianças se manifestem, façam escolhas, sejam ouvidas, tenham liberdade sobre seu corpo e seu movimento.

Nesse sentido, para que de fato a participação das crianças seja efetivada, é preciso mudar uma constituição histórica de poder e hierarquia adulta, bem como, uma melhor compreensão por parte da sociedade das capacidades das crianças e das culturas infantis, possibilitando, assim, uma mudança na postura que há anos vem considerando a criança como desprovida de maturidade para fazer escolhas e tomar decisões. Somente essa tomada de consciência das inúmeras possibilidades das crianças, é que possibilitará ao adulto criar

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Santos (2002) propõe uma Razão Cosmopolita que busca expandir o presente e contrair o futuro, buscando, dessa forma, evitar o desperdício da experiência e criar um espaço-tempo necessário para a valorização da experiência social. O esforço teórico do sociólogo é tentar propor, ou identificar, maneiras dos direitos humanos serem simultaneamente uma política cultural e global. Para isso, propõe não olhar a realidade somente da forma como ela se apresenta, mas estabelecendo uma crítica que procura achar, ampliar as fissuras que não estão dando conta de resolver as questões da sociedade atual.

condições para a participação delas. E é nesse sentido que os estudos e pesquisas que procuram trazer as crianças como protagonistas, procurando entender e compreender sua realidade a partir do que pensam, falam e a forma como agem, se tornam significativos na busca pela concretização dos seus direitos, bem como na ampliação da compreensão dos adultos em relação a elas.