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Cultos reactivados e santos velhos e novos

na arte portuguesa entre o maneIrIsmo

5. Cultos reactivados e santos velhos e novos

Conquanto geralmente esquecida no contexto da História da Arte, a impor‑ tância de Baronio foi imensa e as suas obras estavam presentes nas bibliotecas portuguesas do tempo, o que explica o carácter de certas campanhas artís‑ ticas jubilares. Foi o caso das obras que decorreram no arcebispado de Braga, ao tempo de D. frei Bartolomeu dos Mártires, que participara no Concílio de Trento, e das que se atestam no arquiepiscopado de Évora, quando governado por D. Teotónio de Bragança, prelado que patrocinou a dinamização de velhos tem‑ plos paleo ‑cristãos e de lugares tradicionais de culto de relíquias, abrindo a Igreja a novas iconografias de representação. O facto de, entre os seguidores portugueses de Baronio, se contarem estes arcebispos e, bem assim, o cardeal D. Henrique, abre uma pista importante para caracterizar o munus desses prelados no final do século XVI.

Os princípios baronianos aplicados à realidade portuguesa expressam ‑se bem num manuscrito anónimo intitulado De Antiga et Veneranda Species Aedi‑

ficatione Religiosa in Regni Portucalensis Pro Maxima Causa Christiana (Roma,

Biblioteca Vallicelliana), dado a conhecer por Gabriella Casella Teixeira, onde a identidade lusitana se reforça, à luz de uma espécie de carácter providencial, através da crónica do passado que integra milagres e novos santos locais – uma hagiologia autóctone que assenta numa encomenda heróica de tipo baroniano, com exemplo numa arquitectura que integra discursos documentais e memo‑ riais. Esse manuscrito, firmado com o monograma M. L. (iniciais do seu autor,

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ou copista), prova a força desse método baroniano ‑tridentino aplicado às várias regiões, onde a intenção apologética reforçava o peso da antiguidade cristã e a identidade de uma comitência nacional. Aí se refere, aliás, o papel histórico que teria sido assumido por Portugal dentro da intenção subliminar que Baronio lhe atribui: a importância do seu contributo para a Reconquista cristã da Península e para o povoamento e cristianização do território, traduzida na aedificatione

ecclesiae et fondatione monasterii per mano genus portucalensis 23. Aliás, o papa

Gregório XIII, que Baronio tanto elogiava pelas suas políticas de restauro, enviou, em 1572, o breve Cum sicut a D. frei Bartolomeu dos Mártires e aos vigários das igrejas de Braga e Lamego pelo qual ordenava que os eclesiásticos, nas visitações dos seus templos e nas normas sinodais estipuladas, custeassem a restauratio das antigas igrejas para maior proveito da auctoritas romana24.

Os princípios normativos da nova edificação para fins religiosos e do restauro de anciães locais de culto são estruturados, assim, segundo programas funcionais, com definição prévia do modus aedificandi, com base na instrumentalização dos modelos da antiga arquitectura paleocristã ou medieval, pelo equacionamento de parâmetros da memória histórica (caso da planta basilical, preferida sempre à centralizada) e pelo conhecimento histórico ‑arqueológico dos sítios. Portugal constitui um subcapítulo de relevância a escrever no contexto dessa história. Entre os novos temas e estratégias imagéticas da Contra Reforma portuguesa contam ‑se algumas obras de edificação dentro do espírito do restauro storico patrocinadas pelo cardeal D. Henrique e por D. Teotónio de Bragança em igrejas da arquidiocese eborense, como Santa Maria de Machede, São Manços, Nossa Senhora da Tourega, São Brissos, e em velhos santuários e lugares hierofânicos ligados aos cultos fundadores, durante os anos pré ‑jubilares de 1600, que recla‑ mam estudo de conjunto, pois atestam um interesse renovado pelo património arcano relacionado com as origens do cristianismo no território, e com soluções pensadas à luz da teoria e prática baronianas. Casos como o restauro da igreja de São Manços (1596), por exemplo, mostram o respeito pelas pré ‑existências e o papel arqueológico de verificação no terreno. Merecem destaque arquitectos ainda mal conhecidos, como Mateus Neto e Pêro Vaz Pereira, este último com formação romana e ao serviço de D. Teotónio25. Campanhas arqueológicas como

23 Ibidem, vol. I, p. 60 e segs. 24 Ibidem.

25 Pêro Vaz Pereira (c. 1570 ‑1643) formou ‑se em Roma, serviu D. Teotónio de Bragança desde 1594 e

entrou em 1604 ao serviço do irmão deste, o Duque de Bragança D. Teodósio II. Ultimou a obra da fachada do Paço Ducal de Vila Viçosa em fidelidade às traças de Nicolau de Frias. Era natural de Portalegre e fora enviado a Itália aprender arquitectura e escultura, trabalhando na órbita arquiepiscopal em obras como a Cartuxa de Évora, a igreja de Santa Maria de Machede, a igreja da Graça de Évora, a sacristia da Sé e o término do Aqueduto das Amoreiras em Elvas, a capela centralizada de São Bento no termo de Portel, o convento de São Paulo da Serra d’Ossa, etc. Escreveu e dedicou ao Duque seu protector um Tratado de

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as realizadas nos campos da Tourega, junto a Évora, para recuperar vestígios de velhos cultos paleocristãos ligados ao martírio dos Santos Jordão, Comba e Ino‑ nimata no tempo do pretor Daciano, integram ‑se nesse espírito e nessa prática renovadora 26. O mesmo ocorreu, em 1591, com a escavação do monumento

sepulcral de São Torpes (um cristão martirizado no tempo de Nero) entretanto redescoberto a sul de Sines, ordenado pelo mesmo D. Teotónio de Bragança, a fim de reactivar o seu culto27.

Na linha dos escritos do humanista André de Resende28, e seguindo as direc‑

trizes do arcebispo, a arte sacra eborense tomou os santos paleocristãos locais como novos heróis e tópicos de veneração (São Manços, São Gens, os santos már‑ tires de Évora Vicente, Sabina e Cristeta, São Romão, São Cucufate, São Jordão, Santa Comba, Santa Inonimata, São Brissos, São Torpes, etc.) (Fig. 7). Não é caso único no reino, pois outros se atestam e multiplicam, tanto em Braga, com D. frei Bartolomeu dos Mártires, como na região de Torres Novas, onde o enterramento dos chamados mártires da Concórdia no lugar de Bezelga foi alvo de campanha arqueológica e de renovação cultual, ainda que, neste caso, já depois de 164029.

Incluem ‑se todos os referidos santos entre os novos temas tridentinos que recla‑ mam novas iconografias, dando ‑se como bom exemplo as tábuas do retábulo da igreja de São Vicente (o mártir de Évora, aí acompanhado por suas irmãs Sabina e Cristeta), uma igreja fundada pelo cardeal D. Henrique com sua austera planta

ab quadratum, em que os painéis pintados desenvolvem a narração iconográfica

26 Túlio Espanca – Inventário Artístico de Portugal: concelho de Évora. Lisboa: Academia Nacional de Belas‑

‑Artes, 1966, vol. I, p. 185 ‑187.

27 Nicolau Agostinho – Relaçam Summaria da Vida do illustrissimo, et Reverendissimo Senhor Dom Theoto‑

nio de Bragãça, Quatro Arcebispoo de Évora. Évora, 1614. Sobre o túmulo de São Torpes em Sines, prepara

um estudo Ricardo Estevam Pereira, doutorando da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

28 Cf. Hugo Crespo – André de Resende na Inquisição de Évora e a apologética anti ‑judaica: ciência teo‑

lógica, doutrina e castigo (1541). Um autógrafo inédito. Novos documentos para as biografias de André de Resende e Jorge Coelho. In António Andrade, et al., (coord.) – Humanismo, Diáspora e Ciência (séculos

XVI e XVII): estudos, catálogo, exposição. Porto: Biblioteca Pública e Municipal do Porto, 2013, p. 151 ‑212.

Mostra ‑se como o famoso escritor e humanista só epidermicamente manteve fidelidade aos princípios erasmianos da tolerância, assumindo ‑se antes como um ortodoxo militante na sua luta contra as heresias. O mercador Pêro Álvares, cristão ‑novo reprimido pelo Santo Ofício, é exemplar para esta nova visão pro‑ salitista de Resende e esclarece melhor a sua obra ulterior de ressaibos tridentinos.

29 Os mártires da Concórdia, São Secundino e São Rómulo, companheiros de São Donato, pereceram,

segundo a tradição, nas repressões do tempo de Galiano, em 264 d.C., e as suas relíquias apareceram no lugar de Beselga, Torres Novas: cf. Padre Jorge Cardoso – Agiologio Luzitano dos sanctos, e varoens ilustres

em virtude do reino de Portugal, e suas conquistas…, Lisboa, vol. II, 1652, p. 453, e vol. III, p. 263. Algumas

pedras insculpidas procedentes da alegada sepultura encontram ‑se na igreja do Salvador, Vitor Serrão – As

Igrejas do Salvador, São Tiago e São Pedro de Torres Novas: arquitetura e equipamentos artísticos. Lisboa:

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dos santos mártires de Évora através de uma iconografia repensada para histórias até então nunca representadas30.

Os exemplos de novas representações picturais ou de escultura com estes e outros novos ‑velhos santos multiplicaram ‑se nas igrejas. Também uma pintura a fresco com o passo da Degolação de São Cucufate (1621) na capela de São Brás, em Vila de Frades (Vidigueira), onde se mostra o martírio do santo (Fig. 9), oferece exemplo de uma iconografia nova: o tema identifica ‑se localmente como sendo o martírio de São Cucufate, cujas relíquias se ligam ao santuário instalado na villa romana, mas houve também aí necessidade de se recriar uma iconografia credível, o que levou os encomendantes a retomar um protótipo de martírio ‑degolação já antes ensaiado na iconografia de outros santos, como São Brás (tábuas na ermida de São Brás de Évora (Fig. 10) e na igreja do Reguengo, Reguengos de Monsaraz (Fig. 11) e tela na de São Brás do Regedouro, Évora (Fig. 12), como São Bartolomeu (fresco na igreja desse santo em Borba) e até como Santa Catarina (tábua na sacristia da Sé de Goa). Tais fenómenos de colagem identitária de santos velhos e novos ocorreu durante os anos fervorosos de renovação tridentina e merecem estudo específico31.