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renovação de conceito e contradições de percurso

na arte portuguesa entre o maneIrIsmo

3. renovação de conceito e contradições de percurso

E porque nem sempre foram as estampas a fonte principal de uma enco‑ menda, ao contrário do que muitas vezes se pensa, mas sim algumas obras de arte com grande peso simbólico em determinados círculos, pode passar ‑se a um outro exemplo plástico interessante, que conduzirá a Lamego, e a uma certa obra pictórica encomendada no dealbar da Contra Reforma.

Em 1565, a Misericórdia lamecense entregou a um jovem artista acabado de chegar de Roma, António Leitão, a responsabilidade da factura do retábulo‑ ‑mor da sua igreja 16. Tratava ‑se de artista de sangue nobre, natural de Castelo

Bom, mas educado em Lisboa na corte e na ambiência humanística da infanta D. Maria, por ela enviado a Roma a fim de aprender a arte da pintura, e que andou entretanto na Flandres e em França junto a seu tio, o embaixador Domin‑ gos Leitão. Morador alguns anos em Lamego com sua mulher flamenga, António Leitão seguiu depois a causa política de D. António, o prior do Crato, e era muito considerado como artista, sendo ainda chamado “mui insigne pintor” em 162217.

16 Vergílio Correia – Artistas de Lamego. Coimbra, 1922, p. 65 ‑66; e Vítor Serrão – Ecumenism in images

and trans ‑contextuality in Portuguese 16th century art: Asian representations in Pentecostes by the painter António Leitão in Freixo de Espada à Cinta. Bulletin of Portuguese ‑Japanese Studies. 20 (2010), p. 125 ‑165.

17 Cf. A. Machado de Faria – Dois pintores quinhentistas de escola estrangeira. Arqueologia e História. 10

(1961), p. 183 ‑199, e ANTT – Habilitações do Santo Ofício, António, m. 6, n.º 247; Gregório, m. 1, n.º 4; e Mateus, m. 1, n.º 6.

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A obra de óleo e fresco de Leitão encontra ‑se maioritariamente em igrejas da raia beirã e transmontana, onde as circunstâncias de vida e de alinhamento político o fixaram. Este perfil de artista estrangeirado deve ter pesado na indicação do nome aos mesários da Misericórdia de Lamego; aliás, a pintura por si executada é obra de bons recursos inventivos e de entendimento esclarecido das fontes italianas, apesar da polémica composicional que envolveu.

Apesar do curriculum acima sumariado, aconteceu que o grande painel da Visitação da Virgem a Santa Isabel composto para o centro do retábulo da Misericórdia não granjeou o agrado dos seus clientes, certamente pela ousadia italianizante da composição, ao arrepio de um mercado regional muito avesso à inovação, para quem o capricho de cânones, os inusitados alteamentos de figura, a confusa resolução de planos, não constituíam mais ‑valias artísticas. Por isso, a Santa Casa lamecense, indiferente às valências artísticas da peça, impôs ao pintor a adequação parcial do quadro a um outro modelo. Sabe ‑se que preferiu um quadro em fidelidade compositiva a partir da Visitação, da autoria do céle‑ bre Vasco Fernandes, o Grão Vasco, que o mestre viseense pintara em 1506 ‑1511 para o retábulo ‑mor da Sé de Lamego. Ou seja, mais de meio século volvido, a tábua manuelina continuava a impor ‑se pela clareza narrativa, pela serenidade de expressões e pela ordenação coerente do espaço, aspectos que o painel de António Leitão visivelmente contrariava, com a expressão deformativa dos seus figurinos e a fidelidade ao despejo, ao contrário do naturalismo de paisagem do painel do Grão Vasco. A verdade é que Leitão teve de adequar a cena tal como os mesários pretendiam, refazendo a figura da Virgem Maria numa pose normativa e apa‑ gando e substituindo outros detalhes do quadro, a fim de poder ser ressarcido dos custos e passar quitação do pagamento18. Se compararmos o caso de Campelo

nos Jerónimos com o de Leitão na Misericórdia de Lamego, a diferença abissal de impactos mostra que os gostos do mercado lamecense eram retardatários e aves‑ sos à inovação, ao contrário do que sucedeu em Lisboa, o que leva a perceber que a renovação lançada em Trento teve repercussões e impactos díspares no terreno, consoante as encomendas.

É muito útil, em termos de estudo micro ‑artístico e à luz da análise dos cri‑ térios estéticos prevalecentes, que se tenha em conta o posicionamento de muitos mercados religiosos periféricos, para quem as ousadias formais do Maneirismo italianizante recém ‑introduzido nos anos 60 do século XVI eram vistas com toda a desconfiança, já que não se enquadravam no sentido de clareza didascálica para que apontavam os ditames tridentinos. Casos como o de Lamego multiplicam‑ ‑se na arte portuguesa dos mesmos anos. Ao vermos como alguns pintores de

18 Sobre o exame laboratorial do painel, cf. Maria Beatriz Albuquerque – A «Visitação» da Capela de Santa

Ana de Cepões (Lamego) na pintura maneirista da Beira Alta. Dissertação de Mestrado em Arte, Património

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primeira plana se adequaram a desejos mais comedidos dos seus clientes (a oficina de Diogo Teixeira mostra ‑o bem, na heterogeneidade de resultados entre uma obra como o retábulo da Luz de Carnide e as mais modestas variações, como na Misericórdia de Alcochete), percebemos como as coisas se passavam, em termos de resultados plásticos, consoante o nível cultural e os recursos dos encomendantes.

O mesmo pintor ‑fidalgo António Leitão pintará, cerca de 1580, um painel do

Pentecostes, ou Descida da Cruz sobre a Virgem e os Apóstolos (Fig. 2), hoje numa

capela de Santo António, em Freixo de Espada à Cinta, depois de ter decorado um espaço hospitalar dessa vila transmontana. Esta peça, carecida de restauro, fornece uma excepcional representação de sinal ecuménico, em que as chamas do Espírito Santo nimbam as cabeças não só dos apóstolos mas também se multiplicam por outras figuras presentes na cena – japoneses, magrebinos, núbios, e outros povos de várias raças e credos, tocados pelo espírito da missionação cristã – aqui vista como porta maior da expansão portuguesa para Oriente. Trata ‑se de mais um sinal da militância da Contra ‑Reforma e dos princípios de Trento aplicados ao campo da imagética sacra, definindo uma hábil estratégia a que os olhares não poderiam ficar indiferentes face à mensagem renovada que oferecia.