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Fidelizações a modelos: novos discursos formais

na arte portuguesa entre o maneIrIsmo

2. Fidelizações a modelos: novos discursos formais

Foi com o sentido nessa estratégia que a catequese da Contra Reforma pensou o papel das obras de arte, mesmo que só em altos cumes os resultados atingissem esses objectivos, pois o que verdadeiramente se desenvolveu no terreno, face às circunstâncias e recursos, foi uma espécie de mecânica formal de convenções, des‑ virtuadora daquela força retórica e renovadora para que os ventos iniciais apon‑ tavam, que se manifestou através de uma espécie de arte senza tempo, fórmula convencionalizada de expressão tridentina, tal como a definiu Zeri12.

9 Federico Zeri – Pittura e Controrriforma: l’arte senza tempo de Scipione Pulzone da Gaeta. Turim: Einaudi,

1957.

10 Cf. Giordano Viroli – I luoghi della continuità e del mutamento dalla Controriforma al naturalismo del

Seicento. Intenzioni e inclinazioni nella pittura in Romagna. In Bíblia Pauperum. Dipinti dalle diocesi di

Romagna, 1570 ‑1670. Ferrara: Nuova Alfa Editrice, 1992, p. XXIX ‑LXIX.

11 Como diz José Tolentino de Mendonça: “a Igreja precisa dos artistas para que as representações de Deus

não fiquem sequestradas pela racionalidade, mas possam tocar aqueles reservatórios de mistério e de sen‑ sibilidade que é o coração do homem”, depoimento ao jornal Público de 24 ‑XII ‑2013.

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O que se passou com uma celebérrima obra de António Campelo, pintada para a escadaria do Mosteiro dos Jerónimos, no seu regresso de Roma, represen‑ tando Cristo com a cruz às costas – tradicionalmente chamada a Rua da Amargura – é exemplar de uma nova forma grandiloquente de acentuar a solenidade e o dramatismo de uma cena da Paixão de Cristo dentro da nova espiritualidade tri‑ dentina e dos cânones conciliares de apelo à emoção, e é esclarecedora, também, do modo como essas forças expressivas se banalizaram pela repetição13. Essa pin‑

tura de Campelo (Fig. 3), cuja fortuna crítica foi sempre de elogio rasgado, desde a referência de Félix da Costa Meesen no fim do século XVII aos comentários de Cyrillo, Taborda e Raczynski no século XIX, e às de frei Manuel Baptista de Castro e de outras crónicas ieronimitas14, constituiu ‑se quase como um modelo de vene‑

ração, o que explica os sucessivos repintes que sofreu no sentido de a actualizarem (mas que muito a danificaram, obrigando a um moroso processo de restauro que recuperou parte das virtualidades originais)15.

A Rua da Amargura era vista como peça de referência, não só pelas suas qualidades intrínsecas, mas pelo facto de constituir uma novidade no panorama pictural português, obra de um artista que convivera em Roma nos círculos miguelangescos da bella maniera e que neste painel sabia desenvolver tanto a

terribilità de pose como a prática do novo conceito de despejo cénico, aliados

a um óptimo sentido do disegno. António Campelo formara ‑se na Cidade dos Papas, para onde foi enviado à sombra do mecenato do cardeal Giovanni Ricci da Montepulciano, e foi ao retornar a Lisboa que pintou, cerca de 1560 ‑1570, esse grande painel destinado aos frades jerónimos de Santa Maria de Belém, hoje no Museu Nacional de Arte Antiga. Era uma obra de sucesso, dada a veemência com que expôs as novidades da bella maniera romana, tratadas segundo a influência e aos modos miguelangescos de artistas como Daniele da Volterra.

Não é pois singular que se multiplicassem na pintura portuguesa algumas versões a partir da Rua da Amargura. Estranha, sim, que a importância de tal fonte não haja sido observada: de facto, a peça funcionou, tal como se esperaria de uma imagem sacra de sucesso, como modelo para diversas “citações” pintadas no final do século XVI, ou mesmo já dentro do século XVII. Todas essas “citações” seguiam o essencial da composição de Campelo no registo teatralizado da cena, na pose dos

13 Vítor Serrão (comiss.) – A Pintura Maneirista em Portugal, arte no tempo de Camões. Lisboa: Comissão

Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1995, p. 232 ‑235.

14 Vítor Serrão – La peinture maniériste portugaise, entre la Flandre et Rome, 1550 ‑1620. In Atti del Con‑

vegno Internazionale Fiamminghi a Roma 1508 ‑1608. Artistes des Pays ‑Bas et de la Principauté de Liège à Rome à la Renaissance. Coord. de Nicole Dacos. [Bolletino d’Arte, Supplemento al n.º 100 (1997)]. Roma,

2000, p. 263 ‑276.

15 Joaquim Oliveira Caetano – Campelo nos Jerónimos: os fragmentos da fama. In Anísio Salazar Franco e

Sabina Hamm (coords.) – Jerónimos: quatro Séculos de Pintura: catálogo da exposição. Lisboa: Mosteiro dos Jerónimos, vol. II, 1992, p. 96‑111.

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alteados carrascos e soldados e na figura do Cristo caído sob o peso da cruz, mas numa espécie de retoma “mecânica” e simplista, sem o profundo sentido espiritual do quadro ‑modelo, nem a força de linhas serpentinadas e das deliberadas defor‑ mações de escala do painel dos Jerónimos. É o caso de uma modesta pintura exis‑ tente na igreja da Misericórdia de Idanha ‑a ‑Nova (Fig. 4), atribuída a Tomás Luís, um dos artistas da oficina de Diogo Teixeira, e de uma outra, anónima e também secundária, conservada no Museu de Évora. Uma outra versão, mais qualificada de desenho, foi pintada por Simão Rodrigues, cerca de 1607, para a sacristia da Sé Velha de Coimbra (hoje no Museu Nacional Machado de Castro), e anota ‑se ainda uma tábua, de autor desconhecido, existente na igreja matriz de Alhandra.

Poder ‑se ‑iam citar outros exemplos de retomas dos referenciais campelescos que foram encomendados por clientes religiosos, tanto em centros de relevância (Évora, Coimbra) como de periferia (Idanha, Alhandra), como versões reconhecí‑ veis da mesma composição. Esse fenómeno de epigonismo de um módulo atrac‑ tivo é algo que o espírito tridentino incentivou e, mesmo na modéstia artística de algumas dessas “citações” senza tempo, a força espiritual do quadro dos Jerónimos perenizou ‑se, reforçando o sentido profundo de uma verdadeira arte do conven‑ cimento como estratégia de catequização.