• Nenhum resultado encontrado

na arte portuguesa entre o maneIrIsmo

13 Nossa Senhora do Carmo

1. Trento e o Brasil na historiografia

No seu importante livro Trópico dos pecados, de 1989, Ronaldo Vainfas, seguindo e ampliando propostas de Michael Mullet, afirmou que a missão fora o principal meio pelo qual “o espírito da Contra ‑reforma” penetrou nas colónias ibéricas. As missões seriam “uma tática essencial da Contra ‑reforma como um todo”, posta em prática, sempre que possível, como meio de recuperar territórios ao protestantismo, seguindo um modelo utilizado na Polónia, Boémia, Suíça, Países Baixos, França, ou em qualquer outro lugar onde se tencionasse consolidar o catolicismo em áreas fiéis, compensando as deficiências do clero paroquial. A importância da missão para a propagação do catolicismo tridentino no Brasil deveu ‑se, ainda segundo Vainfas, ao fraco poder de controlo dos poucos prelados diocesanos. Ou seja, tratar ‑se ‑ia de uma consequência da lenta e tardia criação de bispados, das longas vacâncias, da pouca qualificação do clero local. Essa deficiência do clero diocesano, agente preferencial de implementação das normas tridentinas, teria assim sido atenuada pela acção missionária regular. Mais ainda, Vainfas apoia ‑se em Gilberto Freyre para afirmar que a organização eclesiástica no Brasil não se articulava à catedral e à paróquia, mas sim às capelas dos enge‑ nhos e à subserviência do clero local aos senhores de engenho. O catolicismo local seria assim (se não fosse a influência dos religiosos, sobretudo jesuítas), apenas uma “religião circunscrita à esfera das famílias poderosas”8. Finalmente, essa tri‑

dentinização (tanto na Europa quanto nas Américas) passaria essencialmente pela demonização da vida quotidiana das populações, demonização essa ligada direc‑ tamente a uma aculturação das populações locais por via da sua cristianização, mas também a uma missão salvacionista. Esses seriam os traços fundamentais da

8 Ronaldo Vainfas – Trópico dos pecados…, cit., p. 27 e Michael Mullet – A Contra ‑Reforma. Lisboa: Gra‑



Reforma Católica, presentes tanto na Europa quanto nos domínios ibéricos do ultramar9.

Já para Lana Lage, em tese de doutoramento sobre a perseguição aos padres solicitantes, a aplicação das normas tridentinas na América portuguesa foi um processo lento, e que passava, essencialmente, pela acção dos bispos10. Segundo

Lage, “a reforma tridentina só chegaria de forma sistemática no século XVIII, coincidindo com o longo reinado de D. João V (1706 ‑1750), apesar de os princí‑ pios que a orientaram estarem presentes desde o início da colonização, sobretudo por meio da ação dos jesuítas. Assim, “o episcopado brasileiro dos séculos XVI e XVII não teve condições de promover, de forma sistemática, as recomendações do concílio”, tendo em vista as longas vacâncias, a enormidade das dioceses, o envol‑ vimento com a administração secular e a preocupação em garantir os direitos do padroado. Os resultados disso seriam apenas “ações reformadoras pontuais” por parte dos prelados. A inexistência de constituições próprias seria uma outra marca dessa dificuldade de aplicação das normas tridentinas. A acção refor‑ madora por via do episcopado, com a multiplicação de curatos e de paróquias coladas, o reforço da hierarquia eclesiástica, a realização de visitas, a fundação de seminários, entre outras, só começaria a ter maior efectividade a partir do referencial que foi a promulgação das Constituições primeiras do arcebispado da Bahia em 170711.

Ou seja, nos trabalhos destes dois autores, que se debruçaram com algum vagar sobre a questão da influência tridentina no Brasil, as respostas quanto ao “quando” e o “como” são diametralmente opostas. Enquanto Vainfas aponta para uma influência tridentina mesmo antes do fim do concílio por meio dos mis‑ sionários jesuítas, Lage se baseia na ação institucional dos bispos, o que implica numa mais perfeita aplicação das normas de Trento apenas com a multiplicação dos bispados e, sobretudo, a promulgação das Constituições primeiras em 1707. Os dois pontos de vista podem, na verdade, ser cruzados, já que Trento teve realmente essas duas vertentes (a disciplinar, posta em evidência por Lage, e a doutrinal, salientada por Vainfas).

9 Ronaldo Vainfas – Trópico dos pecados…, cit., p. 28 sq.

10 Lana Lage – A Confissão pelo avesso: o crime de solicitação no Brasil colonial. Tese de doutoramento

apresentada à Universidade de São Paulo. [S.l.]: [s.n.], 1990. A questão da chegada de Trento no Brasil foi retomada em Lana Lage – As Constituições da Bahia e reforma tridentina do clero no Brasil. In A Igreja

no Brasil: normas e práticas durante a vigência das Constituições Primeiras do arcebispado da Bahia. Org.

de Bruno Feitler e Evergton Sales Souza. São Paulo: Editora Unifesp, 2011, p. 147 ‑177. A autora segue, de certa maneira, um veio lançado por Eduardo Hoornaert, et al. – História da Igreja no Brasil: ensaio de

interpretação a partir do povo. Petrópolis: Vozes, 1983, tomo II/1, p. 172 sq, onde destaca o papel dos bispos

na aplicação das normas conciliares.



Retomando ‑se a questão a partir de uma bibliografia mais ampla, ver ‑se ‑á que os modos pelos quais as resoluções conciliares tiveram impacto na História do mundo católico também podem ser observados por outros ângulos.

João Francisco Marques, na introdução ao segundo volume da História Reli‑

giosa de Portugal lembra que nada ficou imune à preocupação com a ortodoxia,

a vigilância pastoral contínua, a obsessão na aplicação das decisões conciliares. O voluntarismo da Igreja tridentina teria tido, assim, implicações nos hábitos, nas práticas e nas obrigações quotidianas dos fiéis, influenciando rituais, imaginário, linguagem12. Ou seja, tratou ‑se de uma estratégia global de acção, no sentido de

abarcar todos os âmbitos da vida quotidiana da população do mundo católico. É um pouco este ponto de vista que segue Federico Palomo. Apesar de dar impor‑ tância aos meios institucionais e claramente coercitivos de vigilância da popu‑ lação, como as visitas pastorais e a acção do Santo Ofício, ele demonstra que o sucesso desses meios, dependia em muito de métodos mais pedagógicos e suaves, tudo isso contribuindo para a confessionalização e o disciplinamento social da população reinol, no que o autor retoma Reinhard e Schilling13. De uma outra

perspectiva, Paolo Prodi define o Paradigma tridentino de um ponto de vista ao mesmo tempo mais filosófico e mais institucional. Trento seria um esforço de adaptação da Igreja romana à “modernidade”, ou seja, sobretudo à emergência de Estados centralizados, mas também ao humanismo e à nova espiritualidade da devotio moderna. Para o historiador italiano, a missão principal da Reforma católica foi, para além da luta contra os abusos e a corrupção interna, o de garan‑ tir à Igreja uma nova autoridade universal não mais baseada numa concorrência com os Estados no plano político, mas apenas (se assim podemos dizer) no plano das consciências14. Essa aparente contradição das novas relações da Igreja com os

senhores territoriais, baseada em concordatas que ao mesmo tempo fortaleciam a intrusão dos príncipes no gerenciamento do clero em suas terras, e deixavam para o Roma a administração das consciências, só se reforça sob o domínio do padroado, como indirectamente indica o próprio Prodi, o que nos importa sobre‑ maneira, tendo em vista a situação específica dos territórios ultramarinos portu‑ gueses. O forte papel disciplinador do clero secular, sua estruturação capilar e sua imbricação no próprio sistema de governação da monarquia portuguesa, só podia sair ampliado com uma perfeita aplicação das normas tridentinas que faziam do bispo e do pároco os centros da vida católica15. queremos aqui chamar a atenção

12 João Francisco Marques – Introdução. In História Religiosa de Portugal. Dir. Carlos Moreira Azevedo.

Vol. 2. Lisboa: Círculo de Leitores, 2000, p. 10.

13 Federico Palomo – A Contra ‑Reforma em Portugal 1540 ‑1700. Lisboa: Livros Horizonte, 2006.

14 Paolo Prodi – Il paradigma tridentino: un’epoca della storia della Chiesa. Brescia: Morcelliana, 2010, 14 ‑15 e 25. 15 Para a imbricação entre o episcopado e a coroa, ver José Pedro Paiva – Os bispos de Portugal e do império.

1495 ‑1777. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006. Sobre as implicação disso no contexto



para a imbricação de interesses e de meios existentes entre a Igreja tridentina e a monarquia. Concretamente, um maior domínio dos bispos sobre o clero regular, ou o uso das visitas diocesanas, importavam tanto para a implementação das nor‑ mas romanas quanto para uma mais efectiva dominação das realidades locais por parte da Coroa. Apesar da manutenção dos mesmos objectivos de controlo e de normalização, essa imbricação fará com que pouco a pouco o “paradigma” (para utilizar a terminologia de Prodi) por trás do governo da Igreja luso ‑brasileira mude. Na segunda metade do século XVIII, não se tratará mais de justificar uma aplicação concreta das normas a partir de critérios tridentinos (apesar de o direito canónico não ter sido em si posto em causa no que toca “ao foro interior e à espiritualidade da Igreja”16), mas sim a partir de argumentos e lógicas de um

reformismo ilustrado fundamentalmente ultramontano.

Tentaremos mostrar, a partir de exemplos tanto da segunda metade do século XVI quanto mais tardios, que as reformas tridentinas, ou o espírito tridentino caso desejemos ser mais exactos, rapidamente vingou no Brasil. Mas também intentamos mostrar a partir desses e de outros exemplos que essa implementação não foi sempre perfeita (como de resto tampouco o foi em Portugal), e que ela dependeu não só da realidade colonial e missionária, mas também da vontade e do empenho (ou a falta destes) de prelados locais ou do rei. Ou seja, as reformas, a moralidade, a piedade tridentinas tiveram que ser não só aplicadas, mas sobre‑ tudo cultivadas e mantidas geração após geração. Sem pôr em causa uma visão de conjunto do que foi a implementação desse paradigma no Brasil, veremos aqui, sobretudo, como contextos e ânimos específicos fizeram com que as realidades locais apontassem para múltiplos matizes e acomodações.