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Ver e crer: a busca de uma nova espiritualidade

na arte portuguesa entre o maneIrIsmo

1. Ver e crer: a busca de uma nova espiritualidade

O controlo da representação das “imagens sagradas” assumiu, com a XXXVª sessão do Concílio de Trento, um especial acento ideológico e programático que terá largos efeitos até ao século XVIII. “A Igreja apoderou ‑se nesse período do comando da arte religiosa, a fim de a expurgar das notas tidas por censuráveis e de promover uma iconografia de combate, de testemunho e de catequese”, como escreveu Flávio Gonçalves1, dando corpo, assim, à vasta reacção contra os

ataques da Reforma protestante e os seus efeitos. As directivas tridentinas nesta matéria tiveram imediato acolhimento no seio do mercado das artes, fossem os encomendantes ou os artistas envolvidos na produção destinada ao culto, uns e outros dependentes de uma vasta estrutura de vigilância a que as Constituições

Sinodais dos bispados deram corpo de lei e os visitadores episcopais prática de

* Agradecimentos a José Pedro Paiva (CEHR/CHSC), António Camões Gouveia (CHC), David Sampaio Barbosa (CEHR), e a Ângela Barreto Xavier, Cristina Costa Gomes, Fernando Grilo, Gabriella Casella Tei‑ xeira, Hugo Crespo, Isabel Drumond Braga, João Francisco Marques, Joaquim Inácio Caetano, José Artur Pestana, José Meco, Juan Gil, Luís Filipe Barreto, Luís Urbano Afonso, Maria Adelina Amorim, Maria José Craveiro, Maria José Redondo Cantera, Maria Leonor García da Cruz, Pedro Cardim, Rui Mendes e Sylvie Deswarte ‑Rosa. Este texto é dedicado à memória de Flávio Gonçalves, Túlio Espanca, Adriano de Gusmão e Dagoberto L. Markl, pioneiros nos estudos da arte tridentina em Portugal.

** Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

1 Flávio Gonçalves – Breve Ensaio sobre a Iconografia da Pintura Religiosa em Portugal. Belas artes. Revista

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censura, quando não repressiva2. Apesar de essa nova situação ser cerceadora das

liberdades criativas, é certo que também foi estimuladora de um novo espírito de solenidade e eficiência dos resultados artísticos, acentuando ‑se uma significativa melhoria nas condições estatutárias dos pintores e demais artistas que trabalha‑ ram para o mercado religioso3.

Tal como estabeleceu o Concílio de Trento na sua derradeira sessão, as imagens sacras servem para “anatemizar os principaes erros dos hereges do nosso tempo”, e por isso buscou adequar a sua representação a uma finalidade de combate con‑ tra a heresia iconoclasta do calvinismo e de reafirmação do sentido tradicional do culto em afirmação catequética. Retomando algumas directrizes do Concílio de Nicéia II, proibiu ‑se “que se exponha imagem alguma de falso dogma”. Defendeu‑ ‑se o papel das imagens sacras como intermediárias de fé e a multiplicação nos locais de culto de representações de Cristo, da Virgem e dos santos, numa acção clarificada face a qualquer espécie de idolatria, ou seja, não para se lhes prestar um culto só devido a Deus, mas reforçando o seu papel salvífico como interme‑ diárias de oração. Definiu, também, a necessária qualidade, imprescindível para a eficiência das reproduções artísticas dos mistérios da fé, tornando ‑as credíveis, no sentido de as adequar a objectivos pedagógicos junto das populações. Abriu ‑se, também, por isso, uma frente de combate contra as “imagens de falso dogma” e de “formosura dissoluta”, em muitos casos alvo de alterações impostas ou de destruição. Afirmou ‑se a intenção de ensinar que a divindade não é percebível pelos sentidos nem através de cores ou formas, mas que estas são demasiado importantes pois concorrem para abrir os olhos da alma4.

É por estes aspectos que as normas tridentinas no campo da arte sacra foram tão marcantes em Portugal (mesmo antes de as directrizes conciliares terem sido aceites como lei do reino, na regência do cardeal D. Henrique, por decreto de 12 de Setembro de 1564). De facto, tiveram ressonância em todo o mundo portu‑ guês, ainda que a penetração da doutrina protestante não fosse significativa. No caso português, foram alvo de vigilância maior os cristãos ‑novos, alegadamente envolvidos em actos de iconoclastia anti ‑católica, e determinados círculos de resistência do humanismo de inspiração erasmiana, mais atreitos a uma tradição de liberdade que os novos ventos inquisitoriais desaconselhavam.

Tomamos como ponto de partida para uma análise desta situação o modo como, com as normas do Concílio de Trento, se assumiu a busca de uma espiri‑ tualidade renovada na representação artística. Apesar de não ser devida a artista

2 Flávio Gonçalves – História da Arte: Iconografia e Crítica. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda,

1990, p. 111 ‑127 (colectânea póstuma de estudos deste especialista).

3 Vítor Serrão – O Maneirismo e o Estatuto Social dos Pintores Portugueses. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa

da Moeda, 1983.

4 Ottavia Nicoli – Vedere com gli occhi del cuore: alle origine del potere delle immagini. Roma; Bari: Laterza,

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português, mas de um grande pintor de Badajoz, o facto de ele ter trabalhado amiúde para o mercado nacional, e de ter aqui assumido grande e duradoira influência artística (o “gosto moralesco”), justifica que se recorra a uma obra exemplar, o painel Cristo meditando sobre a Paixão (Fig. 1), para perceber melhor esta nova expressão da arte tridentina. Trata ‑se de um Cristo coroado de espi‑ nhos, em meditação sobre o destino sacrificial, despojado da túnica e rodeado de símbolos da Paixão. Pintado por Luis de Morales, el Divino (c. 1515 ‑c.1591), por volta de 1560, assume‑se de uma peça de excelência absoluta, de pequeno formato (66x44 cm) e destinada a oratório de culto doméstico, que se conserva no Institute of Arts de Minneapolis (EUA)5. O artista, um dos nomes maiores

do Maneirismo peninsular, inspirou ‑se na Melancolia de Albrecht Dürer para compor este singular Jesus Cristo melancólico, que testemunha na sua pose entre o solene recolhimento e a meditação interior um novo tipo de imagem alegórica da Paixão, tão ligada às teses do dominicano frei Luis de Granada sobre as pos‑

trimerías, à margem do itinerário narrativo do Novo Testamento. O que se pre‑

tendeu nesta encomenda foi promover a oração individual em torno do tema da redenção pelo sacrifício, seguindo conceitos e estratégias discutidos em Trento6.

O princípio da previsão do juízo e o elogio da meditação devocional defendidos nos textos de Granada encontraram nas obras de Luis de Morales um fidelíssimo intérprete. O pintor, homem de vasta cultura, e vinculado pelo círculo de protec‑ tores e encomendantes a um complexo mundo espiritual ligado ao pensamento cristão renovador, conhecia o Libro de la oración y de la consideración (1554) e o

Guia de pecadores (1556) de Luis de Granada, obras onde se defendia o juízo par‑

ticular como a forma de redenção que, com a morte, se transforma na primeira

postrimería, exortando por isso à virtude e ao enriquecimento da vida interior, os

valores essenciais que esta pintura assume no seu discurso plástico. Ela esclarece bem sobre o sentido de uma pintura para ser vista com os “olhos da alma”, tal como promulgavam os princípios de Trento7.

É preciso, já o dizia Giulio Carlo Argan8, saber olhar e saber ver, e nessa

dimensão valorativa do papel das obras de arte sob signo da fé decorreu a sessão de Trento que versou esta matéria. Na verdade, sentia ‑o Argan, História e crítica da arte são faces da mesma moeda, discorrem sobre obras que devem ser con‑ sideradas sempre contemporâneas, aptas para a fruição integral do e no nosso

5 Carmelo Sóliz Rodríguez – Luis de Morales. Badajoz: Fundación Caja de Badajoz, 1999, p. 266 ‑267. 6 Alfonso Rodríguez de Ceballos – El mundo espiritual del pintor Luís de Morales. Goya. Revista de arte.

196 (1987), p. 194 ‑203; e Fernando Marías – El Largo Siglo XVI: conceptos fundamentales para la historia del

arte español. Madrid: Taurus, 1988, p. 341‑349.

7 Vítor Serrão – Ver e Crer. Os Cinco Sentidos da Arte da Pintura. Invenire. Revista dos Bens Culturais da

Igreja. 2 (Janeiro ‑Junho 2011), p. 10 ‑12.

8 Giulio Carlo Argan – A tarefa da crítica. In Arte e crítica da Arte. Ed. Portuguesa. Lisboa: Editorial

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tempo – sem se perder de vista o contexto mental preciso em que foram geradas. Todos somos fruidores comprometidos: dedicamos às obras de arte um olhar que anseia por integralidade, tal como o fez Zeri a respeito de Scipione Pulzone e de Giuseppe Valeriano, típicos produtores tridentinos da arte senza tempo9, variação

amadurecida da arcana Bíblia Pauperum da Idade Média10. A arte tem capacidade

de assumir essa sempre renovada dimensão trans ‑contemporânea, de surpreender pelas infinitas possibilidades de suscitar olhares críticos, mesmo que a cadência de gostos, valências, critérios de aferição, imponha bitolas valorativas distintas, que os valores de cada época alteram ou promovem e, nesse sentido também, as propostas de Trento acentuaram as dimensões catequética, emotiva e espiritual das obras enquanto intermediação11.

Vem isto a propósito do notabilíssimo quadro de Luís de Morales, onde a ideia profunda, o ritmo dos planos articulados, a sobriedade da cor, a sedução do estilo, o carisma da expressão mística, as perspectivas cruzadas, o discurso em busca de coerências ideológicas, formam textos com todo o sentido. Assim, à luz dos princípios tridentinos, tudo adquire sentido, é plausível perceber e, no campo da fé, é possível crer – e nessa dimensão agiram os teólogos conciliares quando pensaram na renovação da arte sacra. Abriram ‑se, ao mesmo tempo, saberes his‑ tóricos, estéticos, iconográficos e ideológicos no discurso das imagens artísticas. A específica ordem do tempo, da razão, gosto e encomenda, veio conferir sentidos iconológicos, simbólicos, espirituais, parcelas de identidade que formam nexos, cadeias de referência, laços de memória, afectos que perduram e se renovam.