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Eficácia de propaganda imagética, viagens de formas, intromissões

na arte portuguesa entre o maneIrIsmo

10. Eficácia de propaganda imagética, viagens de formas, intromissões

É necessário atestar a força dos princípios do Concílio de Trento nas novas condutas de representação da arte religiosa portuguesa sentindo o modo preciso como tais indicadores de fé incidiram, também, nas artes da imagem geradas em espaços do império, onde a produção seguiu as intenções pedagógicas aprovadas e rejeitou tudo o que, em termos doutrinários, pudesse levantar reparos contrá‑ rios ao exercício da piedade, tal como no Concílio se proclamara.

A eficácia dos visitadores episcopais e dos inquisidores foi também activa em contextos ultramarinos, onde o cristianismo se confrontava com a tradição das religiões vigentes e o exercício de “práticas gentílicas”, e onde, por isso, a força convincente das imagens de culto se reforçava em termos de importância estraté‑ gia. Esse foi precisamente o caso de Goa, no tempo em que ilustres prelados como o agostinho D. frei Aleixo de Meneses dirigiram o episcopado goês, impondo as orientações tridentinas nos usos, costumes e representações artísticas e tornando unívoca a orientação tutelada a partir de Lisboa, isto é, a partir de Roma.

No engrandecimento da Goa do tempo filipino contou não só a hábil política da monarquia dual, mas também a estratégia tridentina e a postura intelectual de D. frei Aleixo de Meneses, que governou entre 1595 e 1612, construindo igrejas, fortalezas e palácios, promovendo melhorias arquitectónicas e urbanísticas (com o seu mestre de obras Júlio Simão) e estendendo a sua autoridade à região de Cochim, e Kerala, onde se deslocou, em 1599, em visita pastoral, impondo com o Sínodo de Diampar a integração da comunidade dos cristãos de São Tomé no rito romano e a sujeição do arcebispado de Angamale ao de Goa. Nessa comitiva, fez ‑se acompanhar por artistas e artífices, o que explica o carácter goês, isto é, cristão ‑tridentino, de algumas cons‑ truções e decorações, como a igreja de Santa Maria de Angamale, renovada em 1601 (776 da era de Coulão), ou os frescos da igreja de Mar Shabot Mar Afrot, do início do século XVII, com influência de modelos maneiristas europeus. Goa ainda hoje conserva, apesar das perdas, um acervo artístico deste período de capital importân‑ cia para caracterizar a arte indo ‑portuguesa naquela que foi, precisamente, a fase de maior esplendor das artes em Goa, e para a qual o historiador de arte Rafael Moreira chegou a propor a designação “estilo D. Fr. Aleixo de Meneses”, estilo de qualidades miscigenadas, cenográfico, poderoso na sua força comunicacional.

Vendo ‑se um interessantíssimo painel que representa As exéquias de Nossa

Senhora e Sua Assunção junto a Jesus Cristo, produzida por uma oficina manei‑

rista goesa (acaso a do pintor Aleixo Godinho), cerca de 1620, existente no antigo Mosteiro de Santa Mónica de Goa, mostra ‑se o peso dessa estratégia conciliar junto a comunidades não ‑europeias53. A pintura, recentemente restaurada, revela

53 Miguel Mateus e Vítor Serrão – As exéquias da Virgem Maria pelos Apóstolos e Sua Assunção junto de

Jesus Cristo, pintura maneirista do antigo Mosteiro de Santa Mónica em Goa. Arte, conservação e restauro.

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uma linguagem artística miscigenada, própria de um bom mestre de oficina cana‑ rim que associa fontes de iconografia católica à sua própria formação em modelos indianos tradicionais em termos de técnica, de formas e de soluções perenizadas. A composição inspira ‑se em duas gravuras maneiristas nórdicas de Jerónimo Wierix que integram o famoso livro Evangelicae Historiae Imagines do Padre Jerónimo Nadal (Antuérpia, 1593), uma das obras que, pela abundante presença de estampas, mais impacto teve, à época, nas sociedades ibero ‑americanas e luso‑ ‑indianas e contribuiu para difundir os cânones imagéticos tridentinos nas prá‑ ticas artísticas54. Aliás, o próprio mosteiro de freiras agostinhas de Santa Mónica

da cidade de Goa, considerado o maior e mais importante cenóbio feminino em todo o império colonial português, abunda de decorações murais seiscentistas que atestam o modo como as gravuras do livro de Nadal foram uma sólida fonte de inspiração para encomendantes e artistas a fim de favorecer a propaganda da fé e evitar erros contrários ao pretendido testemunho55.

Com a Contra Reforma, a Igreja criou uma formidável campanha para con‑ trolar os excessos de representação nas imagens e regulamentar o seu uso em fidelidade aos cânones que em Trento haviam sido promulgados. Além do livro de Jerónimo Nadal, que como vimos seria dos mais populares para redefinir uma iconografia credível, deve citar ‑se a Orbita Probitatis e o Veridicus Christianus de Johannes David, conhecidos em Portugal, e que grangearam sucesso, influen‑ ciando clientes e artistas. Outras obras dadas à estampa, como o livro de Jacques Sucquet, propunham combater o “dogma errado”, a “formosura dissoluta” e a violência contra “imagens sagradas”, em nome do decorum e da “verdade cristã”56.

O impacto dos princípios conciliares de Trento na arte sacra portuguesa teve facetas sui generis, dadas as características do império, o que explica que as intro‑ missões e transmigrações de formas e modelos tridentinos possa exemplificar‑ ‑se melhor que em outras situações europeias. Assim, quando vemos, pouco depois da execução da pintura goesa, um artista chinês gravar em Nanjing, por incumbência do jesuíta Gaspar Ferreira, em 1624, uma outra versão inspirada nas gravuras de Nadal, neste caso para um Breviário de Cristianismo destinado a servir aos missionários jesuítas, atesta ‑se a rapidez e profundidade com que estas estratégias eram elaboradas. Numa fase de grande incremento à missionação que,

54 Cf. Hélder Carita – Arquitectura indo‑portuguesa na região de Cochim e Kerala. Lisboa: Fundação Oriente,

2008; Maria Adelina Amorim e Vitor Serrão; Arte e História do Mosteiro de Santa Mónica de Goa, à luz da “Apologia” de Fr. Diogo de Santa Ana (1633). In Problematizar a História: estudos em homenagem à

professora Maria do Rosá rio Themudo Barata. Lisboa: Centro de História e ed. Colibri, 2007, p. 677‑713; e

Paulo Varela Gomes – Ovídio Malabar. Manuel de Faria e Sousa, a Índia e a arquitectura portuguesa. In 14,5

Ensaios de História e Arquitectura. Coimbra: Almedina, 2007, p. 159 ‑186.

55 Vitor Serrão – Pintura e Devoção em Goa no Tempo dos Filipes: o Mosteiro de Santa Mónica no ‘Monte

Santo’ (c. 1606 ‑1639) e os seus artistas [Painting and worship in Goa during the period of iberian union: the Santa Mónica monastery at ‘Monte Santo’ (c. 1606 ‑1639) and its artists]. Oriente. 20 (2013), p. 11 ‑50.

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com o padre Giulio Aleni (1582 ‑1649) e, mais tarde, com o padre Adam Schall von Bell (1598 ‑1666), se desenvolvia no Oriente e no Extremo ‑Oriente, outras representações cristãs de tónus conciliar foram, entretanto, gravadas em terras da China e seguiam como referência o livro de Nadal57. Torna ‑se deveras singular

admirar ‑se este processo de adaptação dos modelos antuerpianos originais até ao momento em que se transformam em discursos de “conquista de almas”, seja em Goa ou na China, neste caso integrando (e reformulando) pormenores de mode‑ los tradicionais chineses, designadamente no uso das paisagens, para acentuar esse esforço no sentido do bom acolhimento58.

O interesse revelado por esta inusual fortuna artística que foi a produção tridentina em Portugal alarga ‑se também à influência tida pelas novas tipologias de figuras, usos e costumes etnográficos de povos dos vários continentes toca‑ dos pelas Expansão. As obras de arte sacra dos altares reflectem não só as novas orientações estéticas e litúrgicas conciliares, mas um esforço testemunhal de uma realidade imperial, cheia de citações coloniais verosímeis, algo que a experiência

de visu na Lisboa cosmopolita do fim do século XVI e do século XVII alimen‑

tava, com a presença constante de todas as raças e credos59. Assim demonstram

as provas multiplicadas de exotismo na arte do tempo, reveladora de um singular apego à orientalização dos costumes representados, como se vê numa obra maior, o conjunto de telas dedicadas à vida e milagres de São Francisco Xavier, pintadas por André Reinoso e um colaborador, cerca de 1619, nos espaldares do arcoz da sacristia da igreja jesuítica de São Roque, em Lisboa.

O Concílio de Trento fortaleceu na arte portuguesa, também, a implementa‑ ção de um gosto português de escala mundializada, apto a adequar e dar esclareci‑ mento ao esforço de reformulação das imagens sacras com eficácia, catequização e propaganda. Assim, não deixou de reflectir e de desenvolver, dentro desse esforço, a imagem de uma realidade imperial distinta, com presença dos detalhismos exóticos, abertura a estranhas atmosferas asiáticas ou brasileiras, acolhimento de temas de retorno na fauna e na flora, nos usos e costumes, com ricas vedute ou efeitos cromáticos extra ‑europeus, tomando modelos de conhecimento sobre a vida no mundo da expansão e adequando ‑a aos cânones da doutrina tridentina.

57 Giulio Aleni, S.J. – Tianzhu Jiangsheng anxing jinglüe = Cenas da Vida de Jesus. Revista Portuguesa de

História do Livro. 26 (2010), p. 289 ‑364.

58 José Eugénio Borao Mateo – La versión china de la obra ilustrada de Jerónimo Nadal ‘Evangelicae His‑

toriae Imagines’. Goya. 330(2010), p. 16 ‑33.

59 Cf. os relatos de Lisboa por viajantes dos séculos XVI e XVII, destacando sempre, com maior ou menor

estranheza, a multiracialidade e cosmopolitismo dessa capital, considerada umbilicus mundi e «varanda do Atlântico», ver Irisalva Moita (coord.) – Lisboa Quinhentista. Lisboa: Câmara Municipal, 1980.

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1.

Pormenor de Cristo meditando sobre a Paixão, Luís de Morales, c. 1560 ‑65 (Minneapolis, Museum of Arts).

2.

Pormenor do Pentecostes ecumenista de António Leitão, c. 1580 (Freixo de Espada ‑à‑ ‑Cinta, Capela de Santo António).

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3. e 4.

Cristo com cruz às costas, António Campelo, c. 1570 (Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga), procedente dos Jerónimos, e réplica modesta, Tomás Luís, c. 1595 (Idanha ‑a ‑Nova, Misericórdia de Idanha ‑a ‑Nova).

5. e 6.

São Miguel Arcanjo combatendo o demónio, Garcia Fernandes, c. 1530, num altar da Igreja do Mosteiro de

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7.

Fresco ingénuo de 1598, de oficina maneirista eborense, com o baptismo, julgamento e martírio de S. Gens (igreja de S. Gens, arredores de Montemor ‑o ‑Novo), encomenda colectiva dos fregueses da aldeia,

em vésperas do Jubileu de 1600.

8.

Fernão Gomes, estudo para o destruído Triunfo da Obediência (ou Soror Maria da Visitação ostentando as falsas chagas), c. 1588. Lisboa, MNAA.

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10. Martírio de S. Brás, Mestre de S. Brás, c. de 1565 (Évora, Ermida de S. Brás). 9. Degolação de São Cucufate,

autor desconhecido, 1621 (Capela de São Brás, Vila de Frades, Vidigueira).



11.

Martírio de S. Brás, autor desconhecido,

fim do século XVI (Reguengos de Monsaraz, Igreja de Reguengos de Monsaraz).

12.

Pormenor de Martírio de S. Brás, Martim Valenciano (?), c. de 1640 (Igreja de S. Brás do Regedouro, termo de Évora).



13.