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na arte portuguesa entre o maneIrIsmo

6. o doctus pictor christiano

Com o triunfo da Contra Reforma, o conceito de doctus pictor christiano e a afirmação do papel das artes como “remédio para os males do mundo” encontra‑ ram na literatura doutrinária da Igreja bases importantes de clarificação, que expli‑ cam a promoção social dos artistas, em nome do reconhecimento da sua liberalità. Portugal não escapou a essa onda de reivindicações estatutárias de pintores que, em 1577, libertaram Gaspar Vieira, Diogo Teixeira e Cristóvão Vaz dos obsoletos encargos mesterais, conquistas essas retomadas e obtidas nos anos seguintes por outros, como Simão Rodrigues, Domingos Vieira Serrão e André Reinoso.

A defesa de um estatuto nobilitante da actividade artística ao serviço da Igreja encontra nas Instructionum Fabricae (1572 ‑1577) e na generalidade de princípios baronianos importante expressão. Seguindo ‑se os ditames conciliares no campo das artes, e o modo como foram cumpridos, dá ‑se corpo ao conceito do doctus archi‑

tectus e de doctus pictor. As gravuras da obra Via Vitae Aeternae, de Jacques Sucquet

(Antuérpia, 1620), por exemplo, juntam a defesa deste doctus pictor à necessidade de eloquência nas pinturas, ou seja, um rigor máximo no seu sentido moral como seria justo esperar de obras de apoio à meditação: “meditar é considerar na mente,

30 As pinturas do retábulo de São Vicente datam de cerca de 1575 ‑1580 e devem ‑se a António de Oliveira e

a Júlio Dinis de Carvo, uma dupla de pintores maneiristas de Beja e, apesar de artisticamente secundárias, têm alto valor iconográfico.

31 Preparamos um ensaio sobre a Évora de cerca de 1600 em termos de arte, religião e poder, reveladora

dessa fase de incremento e inovação que corresponde ao múnus de D. Teotónio e ao poderio das casas de Bragança e de Castro, entre outros focos influentes de mecenatismo.

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e pintar com o coração, o mistério das doutrinas da Sagrada Religião, por meio da representação das circunstâncias reais: pessoas, acções, palavras, lugares e tempo”32.

Pelo poder das imagens, a mente ascende das «coisas terrenas» à esfera do divino. Por isso o livro de Suquet (e as gravuras que o ilustram) se desdobra num discurso de justificação do fio de conduta moral e do rigorismo no exercício de representar, visando o combate ao «falso dogma» e à «formosura dissoluta».

Segundo estes princípios, lidos e discutidos em Portugal, existe uma forte relação dialéctica que se fortalece entre encomendante e intenditore: a qualidade rima com clareza didascálica e é nesse sentido que o sucesso de pintores corte‑ sãos da estirpe de Fernão Gomes (1548 ‑1612) e de Diogo Teixeira (c. 1540 ‑1612) pode ser entendido no modo como foram aceites em todo o território português, produzindo uma actividade de fa presto com modelos repetidos e legiões de dis‑ cípulos e seguidores33. Esses artistas foram campeões, também, de movimentos

que defenderam, em veementes apelos ao poder instituído, a liberalidade da sua arte, geralmente reconhecida em virtude da sua capacidade de pintores ao serviço desta Igreja que se reformava em novas bases e em que a propaganda imagética assumia crescente importância. Importa lembrar o seu papel (Fernão Gomes e Simão Rodrigues sobretudo) na formação da Irmandade de São Lucas, nascida no mosteiro de domínicas da Anunciada, em Lisboa, com estatutos datados de 1608. Não se deve esquecer que mesmo as figuras gradas da arte e dos círculos do poder instituído, como os pintores régios Francisco Venegas e Fernão Gomes, ambos fidelíssimos crentes, chegaram a ser admoestados e a ver obras suas criticadas. De Gomes, por exemplo, o fresco de 1588, no capítulo do Mosteiro da Anunciada, que representava o Triunfo de Soror Maria da Visitação (Fig. 8), expondo as frau‑ dulentas chagas, foi mandado destruir pela Inquisição34.

É interessante, a este propósito, lembrar o quanto o humanista Benito Arias Montano (1527 ‑1598) contribuiu para sedimentar uma teoria das artes defendendo o rigor, a carga pedagógica e a força emotiva nas representações, em nome de uma concepção neoplatónica dotada de largo sentido espiritual e trans ‑contextual35. Esse intelectual da tolerância, poeta, bibliotecário, latinista,

orientalista, editor espanhol da Bíblia Poliglota, teólogo de extraordinárias capa‑

32 David Freedberg – The Power of Images. Chicago: University of Chicago Press, 1989, p. 473 (trad. espa‑

nhola: El Poder de las Imágenes: estudios sobre la historia y la teoría de la respuesta. Madrid: ed. Cátedra).

33 Ver Adriano de Gusmão – Diogo Teixeira e seus colaboradores. Lisboa: Realizações Artis, 1955; e Dago‑

berto L. Markl – Fernão Gomes, um pintor do tempo de Camões. Lisboa: Comissão Executiva do IV Cente‑ nário da Publicação de Os Lusíadas, 1972.

34 Dagoberto L. Markl – Fernão Gomes um pintor do tempo de Camões…, cit. O processo encontra ‑se em

ANTT – IL, procº 11.894.

35 Ver Juan Antonio Ramírez – Dios Arquitecto. Madrid: Ediciones Siruela, 1995; Sylvaine Hansel, et al. –

Benito Arias Montano, 1527 ‑1598: Humanismo y Arte en España. Huelva: Universidad de Huelva, 1999; Juan

Gil – Arias Montano En Su Entorno (Bienes Y Herederos). Sevilla: Editora Regional de Extremadura, 1998; e Aires Nascimento – Erudição e livros em Portugal ao tempo de Arias Montano: a biblioteca do Duque

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cidades, desenvolveu, enquanto produto típico da reforma tridentina, as relações meta ‑imagéticas através da emblemática e do sentido profundo da Ut pictura

poesis. Arias Montano acompanhou o bispo de Segóvia ao Concílio de Trento, em

1562, ganhando crescente prestígio, de seguida, como bibliotecário no Real Mos‑ teiro de San Lorenzo do Escorial. quando retornou de Itália, foi convocado por D. Filipe II, em 1568, para supervisionar a versão poliglota da Bíblia, contando com colaboração de intelectuais, pintores e gravadores de valia. A obra foi edi‑ tada por Cristophe Plantin (1572, 8 vols): Biblia sacra hebraice chaldaice, graece et

latine, Philippi II regis catholici pietate et studio ad sacrosanctae Ecclesiae usum 36.

A gravura Alegoria às Artes (ou A Verdadeira Inteligência inspira o Pintor), da autoria de Cornelis Cort, segundo desenho de Frederico Zuccaro, tem um longo poema latino de Arias em defesa do papel que cabia às artes como remédio para os males que afligiam a humanidade, e data de 1577 ‑1578, numa das estâncias romanas do humanista. quando se admira essa estampa (Staatlische Museum, Berlim), destaca ‑se o sábio poder retórico da alegorização clássica: Apolo como

Ideia das Artes admira a Fraga de Vulcano, com o Concílio dos Deuses, num

Olimpo onde a Caritas, Prudentia, Benignitas e Fortituto têm valência qualificante do sentido da criação. Outra obra de Arias (ed. Cristopher Plantin, Antuérpia, 1575), com gravuras e emblemas de Crispin van den Broeck gravados por Phi‑ lippe Galle, é o livro David. Virtutis Exercitatissimae Probatum Deo Spectaculum, onde ele explora o carácter polissémico atribuído a David, o rei ‑pastor vetero‑ ‑testamentário, comparando ‑o, em antítese, com a barbaridade das guerras fra‑ tricidas na Flandres, a que assistiu com repulsa. Destacou aí um ideal de príncipe

cristão benigno, ligado à história do rei ‑pastor cujas virtudes são Fides, Pietas, Prudentia, Temperantia e compara ‑se o seu heroísmo e justiça com o ambiente

cruel das guerras de religião da Flandres. A proposta de políticas indulgentes e a defesa dos derrotados (a exemplo da piedade que demonstrara a cidade bíblica de Abel ‑Bet ‑Maaká) mostravam evidente contraste face às matanças cometidas contra as populações protestantes de Malines e Haarlem.

As estampas de Galle, no referido livro de Arias Montano, servirão a D. Teo‑ dósio II, duque de Bragança, que possuía a obra na sua famosa livraria, para com‑ pôr, através do pintor maneirista Tomás Luís, as cenas do tecto da Sala de David e Golias, nas “casas novas” do Paço de Vila Viçosa, que são muito interessantes, na medida em que atestam uma mal pressentida ressonância do legado de Arias Montano na arte portuguesa37.

de Bragança. In Actas do Congresso Benito Arias Montano y los humanistas de su tiempo. Coord. José María Maestre Maestre, et al. Mérida: Editora Regional de Extremadura, vol. II, 2006, p. 723 ‑750.

36 Silvaine Handel – Benito Arias Montano…, cit..

37 Vítor Serrão – O Fresco Maneirista no Paço de Vila Viçosa, Parnaso dos Duques de Bragança (1540 ‑1640).

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