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A cura das almas: entre clero regular e clero secular

na arte portuguesa entre o maneIrIsmo

13 Nossa Senhora do Carmo

2. A cura das almas: entre clero regular e clero secular

Já na década de 1570, os jesuítas faziam missões itinerantes no recôncavo da Baía ou do Rio de Janeiro, visitando fazendas e engenhos. Essas missões tinham como principal objectivo catequizar e sacramentar negros e índios, mas também deviam ser de proveito para as almas dos portugueses. Em 1573, por exemplo, escrevia da Baía quirício Caxa: “Fizeram ‑se algumas saídas polas fazendas desta costa e sempre com notável fruto”17. Mesmo Gabriel Soares de Souza, acérrimo

inimigo dos jesuítas, dá conta da utilidade das missões para o pasto espiritual e o

Áustrias: a importância da questão indígena e do exemplo espanhol. In Portugal na Monarquia Hispânica:

dinâmicas de integração e conflito. Org. de Pedro Cardim, Leonor Freire Costa e Mafalda Soares da Cunha.

Lisboa: CHAM, 2013, p. 218.

16 Lei da Boa Razão de 18 de agosto de 1769. In Nuno J. Espinosa Gomes da Silva – História do Direito Por‑

tuguês. Fontes de Direito. 4ª ed., revista e actualizada. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006, p. 468.

17 BNP – fg 4532, fl. 39v; Fund. de la Baya, 36v (112), apud Serafim Leite – História da Companhia de Jesus

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controlo moral das populações, sobretudo escrava e aldeada, mas também para a conversão dos indígenas:

“Costumam os padres irem polas fazendas da Baía a confessar a gente que por ela esta espalhada nos engenhos e fazendas, onde são muito servidos e agasalhados. Os quais confessam os negros da Guiné e índios da terra, e casam os que estam em ruim estado, que podem ser casados, e fazem cristãos os que o não são, enfim trabalham polos pôr em bom estado”18.

Segundo Serafim Leite, as missões foram ainda impulsionadas em 1583, quando o visitador Gouveia emitiu um regimento para seu funcionamento. Esse regimento é interessante sob muitos pontos de vista. Aqui, cumpre destacar a referência, mesmo que indirecta, que é feita ao clero secular, mais especificamente os párocos das poucas paróquias da América portuguesa de então. Diz o regi‑ mento no seu item VI que os jesuítas

“não casem portugueses senão com especial licença dos seus curas e do Superior, nem negros, senão com grande exame se teem alguns impedimentos, e dando ‑lhe primeiro boa notícia do Sacramento. E não casarão índios das aldeias em casa de Portugueses, nem índios com outros de diversos senhores e raramente forros com escravos” 19.

Ou seja, as normas que regiam a acção dos jesuítas em relação às populações locais naquele que era seu principal ministério – a missionação e a administração dos sacramentos – reconhecia claramente o papel central dos curas, isto é, dos titulares das paróquias, no governo sacramental dos habitantes sob sua jurisdição, como preconizava o concílio. O regimento fazia assim uma clara divisão entre os lugares onde os jesuítas podiam exercer os privilégios a eles concedidos no tocante à administração espiritual dos índios aldeados, e os lugares onde essa administração competia ao clero secular. Mas esse regimento de 1583 parece ter apenas reafirmado algo que já era costumeiro na relação entre o clero secular e os jesuítas, até então única ordem regular instalada na América portuguesa20.

Charlotte de Castelnau l’Estoile, em obra ainda inédita, mostra que apesar do Brasil ser fundamentalmente uma terra de missão (e aqui entende ‑se a busca pela conversão do gentio), onde os jesuítas estavam em posição de concorrên‑

18 Apud Serafim Leite – História da Companhia de Jesus…, cit., tomo II, livro III, cap. II, 319.

19 Visita do padre Gouveia, 1586, Bras 2, 146v ‑147, apud Serafim Leite – História da Companhia de Jesus…,

cit., tomo II, livro III, cap. II, p. 319.

20 As primeiras casas franciscanas, beneditinas e carmelitas serão fundadas apenas no decorrer da década

de 1580. Ver Caio Boschi – As missões no Brasil. In História da expansão portuguesa. Dir. Francisco Bethen‑ court e Kirti Chaudhuri. Lisboa: Círculo de Leitores, 1998, vol. II, 396 ‑402.

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cia com o clero secular, desde muito cedo se destacou a preeminência destes na administração dos sacramentos a si normalmente reservados, ou seja, o baptismo, o matrimónio e a confissão na quaresma. Os jesuítas administravam espiritual‑ mente apenas os índios das aldeias. Nesse sentido, o impacto de Trento – mesmo na questão da administração dos sacramentos aos índios – parece ter sido bas‑ tante rápido. Numa carta de 1571, o padre António da Rocha explicava aos seus superiores na Europa que as regras tridentinas quanto aos sacramentos deixavam aos jesuítas apenas a parte mais árdua do trabalho missionário, ficando ao clero secular a parte do leão: administrar os sacramentos e receber os pés de altar:

“Segun tengo entendido, despues que vino el Pe Ignacio d’Azevedo [visitador em 1567 ‑1570], se mando que los esclavos se apparejassen en casa para los baptismos y casa‑ mientos; y, confessados, los embiassen al parrocho; y ansi no tiene él mas que dezir Ego te baptizo vel Conjugo in matrimonium, y llevar su pechança o offerta, quedan a los nuestros mucho dolor de cabeça, quemamiento de sangre y pechança para la vida eterna”21.

Havia Trento chegado ao Brasil? Sem dúvida, e bem rapidamente. No entanto, havia ainda muito a fazer para que a Igreja paroquial e a autoridade dos bis‑ pos se sobrepusessem à influência do clero regular, como aponta a existência generalizada de populações administradas espiritual e corporalmente pelo clero regular até à segunda metade do século XVIII, quando, durante todo esse período, o ideal tridentino era aquele descrito na carta do padre António da Rocha. Em 1611 uma lei régia tentou, num golpe de pluma, acelerar esse processo, “secula‑ rizando” o clero responsável pela administração dos aldeamentos. quando isso não fosse possível, os curas poderiam ser regulares, mas ficavam “subordinados ao Ordinário, no que toca o seu ofício de curas, conforme ao Sagrado Concílio Tridentino”22. Para não dizer que a lei ficou, neste quesito, letra morta, sabe ‑se

que o administrador eclesiástico de Pernambuco passou efectivamente a clérigos seculares, por volta de 1618, algumas aldeias previamente sob a administração de jesuítas e de franciscanos23.

Será somente sob o consulado pombalino, e não mais com o fito de uma adequação às normas tridentinas, mas sim aos ideais de civilidade do reformismo ilustrado, que os aldeamentos, transformados em vilas, passarão para a adminis‑ tração – que mais é, puramente espiritual – do clero secular e para o domínio

21 ARSI Bras 15, fl. 232v. Apud Charlotte de Castelnau l’Estoile – Les chaînes du mariage: catholicisme,

colonisation et esclavage au Brésil, XVI ‑XVIIIe siècles. Tese para a obtenção de uma “habilitation à diriger des

recherches”. Universidade de Paris ‑Sorbonne, Paris IV. Paris: [s.n.], 2013, p. 147.

22 Carta de lei de 10 de Setembro de 1611. In José Justino de Andrade e Silva – Collecção Chronológica da

Legislação Portuguesa. Lisboa: Imprensa de J.J.A. Silva, 1854, vol. I, p. 309 ‑310.

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dos bispos24. Chamam ‑se aqui a atenção para esta mudança de paradigma, pois é

importante mostrar – como se verá a partir de outros exemplos – que a alegação da legislação tridentina e dos seus ideais em pareceres ou queixas com pedidos de reformas do clero ou da população em geral vai perder força sob a vigência dos ideais ultramontanos e ilustrados da segunda metade do século XVIII.

Deixe ‑se de lado a questão da liderança e supervisão dos bispos sobre o clero regular e as missões, para passar a explorar a questão do número de almas por paróquia e o problema crónico da imensidão não só dos bispados, mas princi‑ palmente das próprias freguesias do Brasil. O que se tentará demonstrar aqui é que apesar do empenho de várias gerações de prelados, em certos aspectos os ideais tridentinos acabaram por não ultrapassar o estágio de projecto, e que os próprios parâmetros utilizados pelos prelados para dar conta das realidades dos seus bispados, variou no tempo.

Faça ‑se um salto até o fim do período pombalino. Em 12 de Maio de 1777, o Secretário de Estado, Martinho de Melo e Castro, escrevia aos antístites do Brasil, ordenando ‑lhes que remetessem à Secretaria de Estado e à Mesa da Consciência e Ordens, uma relação das igrejas de seus respectivos bispados com dados sobre as rendas dos párocos, seus “merecimentos”, o número de sacerdotes por paróquia, a eventual necessidade de novas ordenações e as qualidades dos candidatos ao sacramento da ordem. Vale lembrar que esse inquérito foi feito no contexto da prévia proibição, por mandado régio de 18 de Agosto de 1768, de novas orde‑ nações sem autorização da Coroa. Em carta de 1 de Outubro de 1777, o bispo de Pernambuco e fiel seguidor dos ideais reformistas pombalinos, D. Tomás da Encarnação da Costa e Lima (1774 ‑1784) respondia que as principais freguesias do bispado, ou seja, Olinda, Recife e Paraíba, “não experimentam necessidade de sacerdotes que possam servir nelas e nas suas capelas interiores e circunvizinhas”, apesar de reclamar da quantidade de comissários do Santo Ofício no Recife e das suas desculpas para não servirem o ordinário25.

Assim, os principais centros urbanos do bispado tinham clero considerado como suficiente para a administração dos sacramentos e a “observância dos pre‑ ceitos divinos e eclesiásticos nas grandes distâncias das suas freguesias”26. “Toda

necessidade de sacerdotes”, escrevera o prelado poucos meses antes,

24 Sobre os índios sob o consulado pombalino, ver Fabrício Lyrio Santos – Da Catequese à civilização: colo‑

nização e povos indígenas na Bahia na segunda metade do século XVIII. Tese de doutoramento em História

apresentada à Universidade Federal da Bahia. [S.l.]: [s.n.], 2012.

25 Sobre D. Tomás da Encarnação, ver Evergton Sales Souza – Igreja e Estado no período pombalino. Lusi‑

tania Sacra. 23 (2011) 207 ‑230.

26 AHU – Conselho Ultramarino, Brasil, Pernambuco, cx. 128, doc. 9691. Carta do bispo de Pernambuco

D. Tomás da Encarnação ao secretário de estado Martinho de Melo e Castro (Olinda, 15 de Dezembro de 1777).

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“é para esses dilatados sertões e para as suas freguesias tantas léguas distantes umas das outras, para as capelas fundadas nessas distâncias em utilidade dos povos vizinhos, que com tempo não podem recorrer às suas matrizes, para as capelas de tantos engenhos necessários a seus trabalhadores, que também não podem concorrer às suas matrizes distantes e sem prejuízo do trabalho das moendas nos domingos, e dias santos. E cada um dos engenhos é como uma povoação distante da sua matriz”27.

Note ‑se, para começar, a falta de referência ao Concílio, leitmotiv de muita da documentação anterior ao período pombalino pelo que toca à falta de clérigos e à imensidão das paróquias, como o apontam, por exemplo, os relatórios de visitas ad limina dos bispados do Brasil enviados a Roma28. Sublinhe ‑se, ainda, o

problema crónico da distância entre os engenhos e fazendas, ou seja, os diferentes aglomerados populacionais, e as sedes das paróquias. Tratava ‑se de um problema grave, que dava espaço, por exemplo, a que surgissem casos de bigamia em que os dois matrimónios haviam sido celebrados em povoações distintas de uma mesma paróquia ou em paróquias vizinhas, o que chegou a acontecer na transição do século XVII para o XVIII29.

Para limitar a escassez de sacerdotes provocada pela proibição de 1768, o bispo de Pernambuco D. Tomás da Encarnação pediu a autorização para orde‑ nar 280 novos sacerdotes, por se acharem então (em 1777) vagas 246 capelas, 18 freguesias de índios “e outras sem mais sacerdotes que o seu pároco”, que seriam aqueles “indispensavelmente necessários para a administração dos sacramentos nos vastos sertões desta diocese”30. Seguindo os cálculos do prelado, enquanto

nas principais paróquias urbanas o número de entre 49 e 75 fogos por sacerdote parecia suficiente, na zona rural bastaria uma média de 106,5 fogos por sacerdote, ou seja, pouco mais de 500 fiéis por sacerdote. É notável o fato de o prelado usar aqui como referência o número geral de sacerdotes seculares, e não o de párocos e coadjutores, como o fez o arcebispo da Baía D. Sebastião Monteiro da Vide, em 1703, quando efectuou uma primeira visita à sua diocese. O prelado baiano comparou a sua média de almas por paróquia (entre 2 e 3 mil, números seme‑

27 AHU – Conselho Ultramarino, Brasil, Pernambuco, cx. 127, doc. 9677. Ofício do bispo de Pernambuco

D. Tomás da Encarnação ao secretário de estado Martinho de Melo e Castro (Olinda, 1de Outubro de 1777).

28 ASV – Sacra Congregazione Concilii, Relationes, 596 (Olinda), 712 (Salvador), 729 (Rio de Janeiro). 29 [D. Sebastião Monteiro da Vide] – Notícias ao arcebispado da Bahia…, cit., p. 334 ‑342. Bruno Feitler –

Poder episcopal e Inquisição no Brasil: o juízo eclesiástico da Bahia nos tempos de D. Sebastião Monteiro da Vide. In A Igreja no Brasil: normas e práticas durante a vigência das Constituições primeiras do arcebispado

da Bahia. Org. de Bruno Feitler e Evergton Sales Souza. São Paulo: Editora Unifesp, 2011, p. 98 ‑100.

30 AHU – Conselho Ultramarino, Brasil, Pernambuco, cx. 126, doc. 9545. Carta do bispo de Pernambuco

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lhantes ao do bispado de Pernambuco na mesma época31) àquelas, baixíssimas, do

bispado do Porto (513 por paróquia), mas também com aquela (de 400 almas) preconizada pelo III Concílio limense, com direito à completa citação do cânone peruano32. Monteiro da Vide pressionava o rei a criar mais paróquias coladas e

a permitir a nomeação de mais coadjutores por paróquias, “por ser assim con‑ forme ao sagrado Concílio Tridentino” e pelo soberano ter aceite “cobrar dízimos, obrigando ‑se a erigir igrejas com ministros necessários, assinando ‑lhes de sua real fazenda dote suficiente”. Lembre ‑se que uma provisão régia de 8 de Novembro de 1608 ordenava a nomeação de coadjutores para “todas as vigararias do Estado do Brasil, e nas aldeias que estiverem distantes umas das outras mais de duas léguas; consignando ‑se ‑lhes a côngrua de 25$rs, sendo o fim desta criação o terem os vigários com que se confessarem”33.

Entre 1710 e 1777 mudaram ‑se ligeiramente as justificações para o incre‑ mento do número de sacerdotes. Antes, a função do clero secular coadunava ‑se com as necessidades espirituais dos fiéis, a obrigação régia (tendo em vista os diferentes padroados em vigor), o respeito a Trento e, finalmente, o próprio sus‑ tento do império, já que “estabelecer, conservar e aumentar o culto do verdadeiro Deus e a fé e religião cristã [são] a maior segurança e certeza da duração e firmeza dos impérios e reinos”34. Já em 1777 acenava ‑se apenas para as necessidades da

população. Monteiro da Vide pressionava, seguindo Trento, que se criassem mais paróquias e que se aumentassem seus rendimentos. D. Tomás da Encarnação pedia apenas sacerdotes, apesar dos 712 fogos por paróquia estarem ainda bem longe daquilo que havia sido idealizado em Lima ou na Baía (ou seja, cerca de 100 fogos por pároco – e não por sacerdote). O que estes números mostram, assim como esta rápida comparação entre a situação da Baía sob o governo de um prelado modelar e de Pernambuco sob um governo claramente regalista, é que em tempos de influências ilustradas e galicanas, as normas e os parâmetros tridentinos haviam sido deixados de lado enquanto argumentos de peso, sem terem por isso sido contestados.

31 Havia em todo o bispado de Pernambuco 30 paróquias em 1693 e 36 em 1700, para uma população

total de 62.415 e 68.030 pessoas respectivamente (o número de “fogos” multiplicado por 5), o que resulta num número médio absurdamente alto de fregueses por pároco: 2080 e 1890, respectivamente. Ver Bruno Feitler – Nas malhas da consciência: Igreja e Inquisição no Brasil. Nordeste, 1640 ‑1750. São Paulo: Phobeus; Alameda, 2007, p. 47 ‑49.

32 Se Trento preconizava que cada paróquia tivesse um número “suficiente” de sacerdotes para a adminis‑

tração dos sacramentos, sem avançar valores exactos, o concílio de Lima III pedia que houvesse ao menos um pároco para cada 400 índios paroquianos, mas que se possível, esse número baixasse até 200. Rubén Vargas Ugarte – Concilios Limenses (1551 ‑1772). Lima: Tip. Peruana S. A., 1952, tomo II, p. 193.

33 AHU – Conselho Ultramarino, Cod., 1276, fl. não numerado [Index C das ordens]. 34 [D. Sebastião Monteiro da Vide] – Notícias ao arcebispado da Bahia…, cit., p. 327.

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