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Cultura do controle: a análise de David Garland

2.4 As raízes filosóficas e criminológicas da vigilância eletrônica

2.4.2 Cultura do controle: a análise de David Garland

Faustino Gudín Rodríguez-Magariños109 denomina as novas tecnologias de vigilância de “cárcere eletrônico”, tendo em vista que a supervisão e o controle impostos ao vigiado não são muito mais flexíveis que aqueles praticados em um estabelecimento penitenciário, apesar da ausência de muros e barreiras físicas. Trata-se, de acordo com o autor espanhol, de uma manifestação daquilo que David Garland conceitua como “cultura do controle”.

David Garland analisa a transformação ocorrida na área do controle social do delito durante as três últimas décadas do século XX nos Estados Unidos e no Reino Unido, afirmando que essa transformação não foi institucional, mas sim de funcionamento estratégico e importância social.110 De fato, a análise de Garland pode ajudar a entender o contexto social e cultural em que surgiu a vigilância eletrônica nos Estados Unidos e na Inglaterra, pois essa nova tecnologia despertou interesse e passou a ser aplicada nesses países durante a década de 1980, desenvolvendo-se muito na década seguinte (1990), na esteira das mudanças verificadas na área do controle do delito.

108 GUDÍN RODRÍGUEZ-MAGARIÑOS, Faustino. Cárcel Electrónica: Bases para la creación del sistema

penitenciario del siglo XXI. Op. cit., p. 101 (tradução nossa).

109 Ibid, p. 73.

110 GARLAND, David. La cultura del control: crimen y orden social en la sociedad contemporánea.

Tradução de Máximo Sozzo. Barcelona: Gedisa, 2005, p. 277. Segundo o autor, “a arquitetura institucional da modernidade penal permanece firmemente no lugar, como também o aparato estatal da justiça penal” (tradução nossa).

Segundo David Garland,111 o sistema de justiça penal dos dois países foi expandido de forma significativa no período referido, tanto em relação à quantidade de casos quanto aos empregos e gastos, inclusive construção de presídios. Além disso, as penas privativas de liberdade cresceram em duração e aumentaram as chances de retorno à prisão após a liberdade condicional, aumentando também o número de execuções de pena de morte nos Estados Unidos. Essa mudança na ênfase penal teve efeitos importantes, entre eles o autor destaca a importância política e cultural do castigo.

Entretanto, o que surpreende Garland é que o aparato institucional correcionalista, ligado ao welfarismo penal,112 não foi descartado e continua sendo utilizado cotidianamente. Assim, continuam sendo empregados especialistas sociais e psiquiatras para preparar informes de investigação social, realizar diagnósticos e ajudar a tratar e a controlar delinquentes. “De fato, na década de 1990 se deu um aumento bastante significativo no número de programas de tratamento dos delinquentes na comunidade e nas prisões”.113

Por outro lado, um terceiro setor de controle do delito se desenvolveu paralelamente às instituições de governo, ou seja, um setor constituído por organizações de prevenção do delito e segurança. Este setor de prevenção, constituído por redes e práticas de coordenação (reuniões de autoridades locais, grupos de trabalho, foros multiagenciais e comitês de ação), mais virtual que físico (sem empregados e edifícios), ocupa posição intermediária entre o Estado e a sociedade civil, conectando a justiça penal com atividades das comunidades e das corporações. O desenvolvimento deste terceiro setor amplia o campo do controle formal do delito e seu potencial de ação organizada. O objetivo do setor de prevenção não é perseguir, processar e castigar ou reformar indivíduos, mas sim “reduzir os eventos delitivos mediante a minimização das oportunidades delitivas, a

111 O setor policial também mudou sua ênfase, trocando estratégias reativas por experiências de polícia

comunitária e, mais recentemente, ações policiais mais intensas sobre a desordem e delitos menores. As práticas de trabalho e os orçamentos policiais, porém, indicam que o funcionamento cotidiano das forças policiais não teve alteração drástica. Além disso, a elevação da figura da vítima a um primeiro plano também acarretou alterações na justiça penal, porém, não produziu o desenvolvimento de novos aparatos ou novas sanções penais. Nesse sentido, novos esquemas de reparação e mediação desempenham um papel muito pequeno na justiça penal como um todo (GARLAND, David. La cultura del control: crimen y orden social en la sociedad contemporánea. Op. cit., p. 277-279).

112 O autor chama de welfarismo penal as estratégias e os dispositivos institucionais de controle do delito que

caracterizaram a área penal desde a década de 1890 até 1970 e que se desenvolveram no âmbito de ascensão do Estado de Bem-estar Social (Welfare State). Característica básica do welfarismo penal: as medidas penais, sempre que possível, devem ser intervenções destinadas à reabilitação e não castigos negativos e retributivos (GARLAND, David. La cultura del control: crimen y orden social en la sociedad contemporánea. Op. cit., p. 35).

113 GARLAND, David. La cultura del control: crimen y orden social en la sociedad contemporánea. Op. cit.,

intensificação dos controles situacionais e a retirada das pessoas das situações criminógenas”.114

David Garland115 sustenta que a influência desse terceiro setor é pequena, mas constante e, além disso, o sistema de justiça penal passou a ser mais vulnerável à opinião pública e ao discurso político relativo à segurança, reduzindo a participação dos especialistas na produção de novas leis ou na adoção de políticas públicas. Da mesma forma, os governos e as legislaturas passaram a aprovar leis mais severas com objetivos políticos, ou seja, para responder ao sentimento popular de que os delinquentes não são suficientemente castigados e de que os indivíduos perigosos não são adequadamente controlados.

Segundo o autor, porém, as mudanças descritas não acarretaram uma completa alteração da área do controle do delito ou uma reforma integral da justiça penal estatal.

O que aconteceu foi que as instituições da justiça penal alteraram seus pontos de vista e que a área de controle do delito foi expandida em novas direções na medida em que as agências estatais e a sociedade civil foram adaptadas ao crescimento do delito e à insegurança que acompanharam a transição para a modernidade tardia. O resultado foi que, se a justiça penal estatal é maior do que antes, esta ocupa agora um espaço relativamente pequeno na área em geral, sobretudo devido ao crescimento da segurança privada e das atividades organizadas das comunidades e empresas.116

A mudança mais significativa na área do controle do delito, portanto, foi produzida no plano da cultura que anima as estruturas e ordena seus usos e significados. De acordo com Garland,117 essa nova cultura do controle do delito se formou em torno de três elementos centrais: um welfarismo penal modificado, uma criminologia do controle e uma forma de raciocínio econômico.

Nesse sentido, o autor destaca que as agências de liberdade condicional passaram a priorizar a vigilância intensiva dos delinquentes liberados, deixando de enfatizar métodos que atendam às necessidades dos delinquentes e acentuando o controle efetivo destes para minimizar custos e maximizar a segurança. A reabilitação foi

114 GARLAND, David. La cultura del control: crimen y orden social en la sociedad contemporánea. Op. cit.,

p. 280-281 (tradução nossa). Segundo Garland, o setor preventivo sofre influência da criminologia ambiental, bem como das teorias das atividades rotineiras e da prevenção situacional do delito.

115 Ibid, p. 280 e 282.

116 Ibid, p. 284 (tradução nossa). 117 Ibid, p. 287.

redefinida, focalizando o delito e não mais o infrator; o objetivo imediato é a imposição de restrições para reduzir o delito e proteger as futuras vítimas, gerenciando o risco.

A probation se afastou de sua missão original, às vezes descrita como “assistir, aconselhar e amparar” aos delinquentes que merecem isso, e fixou prioridades que refletem o novo clima penológico: mudar a conduta dos delinquentes; reduzir o delito e conseguir que as comunidades sejam mais seguras; proteger o público e apoiar as vítimas. Os cursos de treinamento, os manuais de operações e os indicadores de desempenho de funções e objetivos modificados continuam avançando nesta direção, assim como as alterações legais que definiram a probation como um castigo obrigatório para os tribunais penais mais que como uma medida discricionária para substituir a condenação. A prática da probation inclui cada vez mais novas formas de controle intensivo, incluindo o uso de pulseiras e rastreamento eletrônicos, os toques de recolher e os testes sobre o consumo de drogas.118

De qualquer forma, certas modalidades de tratamento seguem funcionando dentro da prisão, louvando-se ainda o ideal reabilitador, mas a ênfase está na segurança. Assim, a segurança do perímetro foi fortalecida e a liberação antecipada passou a ser mais restritiva, ou seja, controlada mais estritamente e supervisionada mais intensamente, inclusive mediante métodos de localização à distância e vigilância eletrônica.

Além disso, novas correntes de pensamento criminológico surgiram em contraste com a antiga criminologia welfarista que pretendia fortalecer a ordem social através da integração social. Assim, a ordem social era um problema de consenso de valores e, portanto, tinha por objetivo reintroduzir os desviados na ordem social por meio da educação moral e de práticas reformadoras de suas crenças e comportamentos.119

As novas criminologias da vida cotidiana podem ser citadas como reação ao pensamento welfarista da modernidade penal e são caracterizadas por Garland como tardomodernas em seu caráter e orientação. Essa corrente criminológica continua com alguns temas do pensamento correcionalista, mas acentua a modificação de situações e estruturas de oportunidades mais que a reforma dos indivíduos desviados, prescrevendo uma engenharia situacional no lugar de uma engenharia social. Assim, a questão é saber como as diferentes situações ou sistemas de interação (transporte, escola, comércio, residências, etc) podem ser redesenhados ou reestruturados para reduzir as oportunidades

118 GARLAND, David. La cultura del control: crimen y orden social en la sociedad contemporánea. Op. cit.,

p. 290 (tradução nossa).

delitivas. “Não se trata de construir o consenso normativo; agora o problema é obter a coordenação: que as engrenagens funcionem de modo excelente”.120 Da mesma forma, a

criminologia do outro pode ser mencionada como reação ao pensamento welfarista e é

caracterizada por Garland como antimoderna. Trata-se de uma criminologia do outro perigoso, ou seja, que considera alguns delinquentes como “simplesmente malvados” e, por isso, diferentes dos demais cidadãos, representando o crime em termos dramáticos, com uma linguagem de guerra e defesa social.121

Não obstante as visíveis diferenças entre elas, as duas novas correntes criminológicas compartilham de uma característica comum, ou seja, ambas priorizam o controle e a proteção do público, respondendo e reforçando a cultura do controle que se apoderou do discurso público sobre a questão penal.

Por fim, uma forma de raciocínio econômico também contribuiu para a formação dessa nova cultura do controle do delito. Segundo Garland,122 os hábitos de pensamento e modos de raciocínio cotidiano que guiam as decisões tomadas no âmbito das instituições de controle do delito mudaram nos últimos trinta anos do século XX. Com efeito, as decisões de política criminal e da justiça penal baseavam-se em um estilo social de raciocínio, já que o delito tinha uma causa social e, portanto, uma solução social. Nos últimos anos, porém, essa forma de raciocínio foi substituída por um estilo mais econômico, que prioriza e atribui maior relevância às questões de custo e eficácia.

A virtude principal das novas políticas públicas como a privatização das prisões e o “castigo na comunidade” é que se proclamam como alternativas economicamente racionais aos esquemas preexistentes. E nas agências da justiça penal a determinação das prioridades é cada vez mais uma questão de “foco”, “controle do acesso” ou “condenar inteligentemente”, de forma tal que se faça uso da menor quantidade de recursos e, ao mesmo tempo, obter a máxima efetividade.123

120 GARLAND, David. La cultura del control: crimen y orden social en la sociedad contemporánea. Op. cit.,

p. 298-299 (tradução nossa).

121 Ibid, p. 300. 122 Ibid, p. 306-307.

123 Ibid, p. 307 (tradução nossa). Garland sustenta que a forma econômica de pensar as questões penais

surgiu, provavelmente, no setor privado. Segundo o autor, as empresas passaram a comparar o custo do delito com o custo de sua prevenção. Além disso, a linguagem social (welfarista) parecia não funcionar e estava desacreditada em termos práticos e políticos, enquanto as formas econômicas de raciocínio estavam disponíveis, eram transferíveis e pareciam funcionar e satisfazer as autoridades fornecedoras de recursos (Ibid, p. 308-309).

A institucionalização desse raciocínio econômico aumenta a ressonância e o atrativo das novas concepções criminológicas que, para Garland parecem, à primeira vista, um retorno à criminologia de Jeremy Bentham e seu pensamento utilitarista.124

Essa denominada cultura do controle descrita por David Garland certamente teve influência no surgimento e no desenvolvimento da vigilância eletrônica nos Estados Unidos e no Reino Unido. Nesse sentido, Escobar Marulanda125 afirma que a vigilância eletrônica surgiu e se desenvolveu nos Estados Unidos, Reino Unido e Canadá dentro de um contexto de transformação do sistema penal, com o surgimento de uma nova penologia que justifica a pena fundamentalmente por uma relação entre as variáveis de risco e controle. Assim, o sistema penal busca identificar grupos de pessoas definidos como de alto risco para submetê-lo a um intenso e prolongado controle, enquanto os grupos de baixo risco devem ser submetidos a um controle de curto período.

Por outro lado, algumas das características apontadas podem ser constatadas também nos demais países que adotaram ou pretendem adotar a vigilância eletrônica na área do controle do delito. O que chama atenção no caso brasileiro é a ausência ou precariedade absoluta do aparato institucional welfarista (correcionalista) verificado nos países analisados. O “novo clima penológico” identificado por Garland, porém, parece estar presente entre nós, influenciando positiva e negativamente as decisões políticas na área penal e penitenciária.