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Teorias absolutas ou retributivas

5.2 O fundamento da pena: justificação ou legitimação da punição

5.2.1 Teorias absolutas ou retributivas

As teorias absolutas atribuem à pena um caráter de retribuição, expiação, reparação ou compensação, ou seja, a sanção penal compensa o mal do crime e restaura a ordem atingida pelo ato do criminoso. Essa repristinação, pretendida pelos adeptos das teorias absolutas, ocorre com a imposição de um mal, isto é, uma restrição a um bem jurídico daquele que livremente violou a norma. Com efeito, as teorias absolutas

512 Nesse sentido, o art. 59 do Código Penal estabelece que a pena deve ser aplicada conforme seja necessário

e suficiente para reprovação e prevenção do crime. Além disso, o art. 1º da Lei nº 9.710/1984 (LEP) estabelece que a pena e a medida de segurança devem ser executadas com objetivo de proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.

513 MIR PUIG, Santiago. Direito Penal: fundamentos e teoria do delito. Op. cit., p. 57-58.

514 Em regra, o monitoramento eletrônico estabelecido como pena ou alternativa penal deve ser aplicado

exclusivamente pela autoridade judiciária (cf. BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Aspectos pragmáticos e dogmáticos do monitoramento eletrônico. In: CONSELHO NACIONAL DE POLÍTICA CRIMINAL E PENITENCIÁRIA (Ministério da Justiça). Monitoramento Eletrônico: uma alternativa à prisão? Experiências internacionais e perspectivas no Brasil. Op. cit., p. 170-171). Registre-se, porém, que o monitoramento eletrônico utilizado em diversos países como modalidade de execução da pena privativa de liberdade é aplicado pela própria administração penitenciária (ex. Espanha, Suécia e outros).

encontram na retribuição justa, não só a justificativa para a pena (legitimação da intervenção penal), mas também a garantia de sua existência e o esgotamento de seu conteúdo.515 Assim, todos os demais efeitos (intimidação, correção, supressão do meio social), embora possíveis de ocorrer, não guardariam qualquer relação com a natureza da pena. Pune-se em razão do ato praticado (passado), do “pecado” ou na expressão reproduzida por Sêneca, punitur, quia peccatum est.

Não obstante a ausência de fins sociais nas teorias retributivas, estas atribuem à pena a função de realizar justiça, função esta fundada em exigências incondicionadas (religiosas, morais ou jurídicas) que não podem depender de conveniências utilitárias relativas a cada momento, impondo-se com caráter absoluto.516

As teorias retributivas, portanto, encontram fundamentação religiosa, ética (moral) ou jurídica.517 Do ponto de vista religioso, a pena é justificada por comparação à justiça divina (retribuição religiosa).

A fundamentação ética foi idealizada pelo filósofo alemão Kant, que afirmava ser o Homem “um fim em si mesmo”, ou seja, o ser humano não pode ser instrumentalizado em benefício da sociedade. Assim, não seria possível punir alguém por razões de utilidade social, mas apenas como uma exigência incondicional de justiça (retribuição moral). A lei penal seria, portanto, um “imperativo categórico”.

Para ilustrar sua posição, Kant apresenta o famoso exemplo de uma ilha cuja população decidisse dissolver-se e dispersar-se pelo mundo, tendo que resolver o que fazer com seus delinquentes presos. O filósofo alemão responde a questão da seguinte forma: ainda que resultasse de todo inútil para tal sociedade – posto que a mesma deixaria de existir -, dever-se-ia executar até o último assassino que se encontrasse na prisão para que todos compreendessem o valor de seus atos518 e para que a culpabilidade não recaísse

515 WELZEL, Hans. Derecho Penal Aleman: Parte General. 11. ed. 4. ed. castellana. Tradução de Juan

Bustos Ramírez e Sergio Yáñez Pérez. Santiago de Chile: Editorial Juridica de Chile, 1997, p. 283.

516 MIR PUIG, Santiago. Direito Penal: fundamentos e teoria do delito. Op. cit., p. 60. Entretanto, Jorge de

Figueiredo Dias cita Claus Roxin para dizer que a questão de saber se a concretização da idéia de justiça também é um fim, ou se apenas finalidades empírico-sociais seriam consideradas revela mero jogo de palavras, pois “quando se pergunta pelo fim da pena se indaga de efeitos relevantes na e para a vida comunitária, não devendo a questão ser desvalorizada como questão meramente terminológica” (DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. Op. cit., p. 94).

517 Hans Welzel complementa a idéia: “Estas teorias afirmam que a necessidade ética da pena garante

também sua realidade, seja em virtude da identidade de razão e realidade (Hegel), ou de um imperativo categórico (Kant) ou em razão de uma necessidade religiosa (Stahl)” (WELZEL, Hans. Derecho Penal

Aleman: Parte General. Op. cit., p. 283, tradução nossa).

sobre o povo que não insistiu na sanção (podendo ser considerado partícipe na lesão pública da justiça).519

A fundamentação jurídica foi apresentada por Hegel em sua conhecida

concepção dialética, segundo a qual a pena é a negação da negação do direito, o que restabelece o direito lesado (retribuição jurídica). A pena é justificada pela necessidade de restabelecer a vigência da vontade geral, esta representada pela ordem jurídica e que é negada pela vontade especial do delinquente.

Santiago Mir Puig520 afirma que na teoria de Hegel a pena é concebida como reação, visando ao passado (delito), e não como instrumento de fins utilitários posteriores, e por isso é considerada como retributiva. Günther Jakobs, por sua vez, indica similaridades entre a teoria de Hegel e a prevenção geral positiva, afirmando que, “em

Hegel, a pena é, de fato, absoluta no que se refere ao conceito, mas, em sua configuração

concreta, é relativa ao respectivo estado da sociedade”.521 Ainda sobre Hegel, Luigi Ferrajoli sustenta que sua teoria é apenas aparentemente distinta de Kant, pois a “idéia de retribuição jurídica baseia-se, em última análise, a bem da verdade, no valor moral atrelado ao ordenamento jurídico lesado, para não dizer no imperativo penal individualmente considerado”.522

As formulações retributivas de Kant e Hegel originam-se de uma filosofia política liberal do século XIX, que encontra na proporcionalidade entre delito e pena uma garantia do cidadão contra a ação do Estado. Destarte, não se podia punir mais severamente o cidadão, ainda que por motivos preventivos, pois a dignidade humana não poderia ser usada como instrumento para fins sociais. Santiago Mir Puig523 afirma que parte da doutrina atual sustenta o retorno da teoria retributiva como única forma de evitar os excessos punitivos que, em nome da prevenção, foram praticados pelo regime nazista e também para impedir uma excessiva intervenção do direito penal. O autor, porém, critica as teorias absolutas sustentando que não é função do Estado moderno a realização da justiça absoluta, até porque o Direito deve manter-se afastado da religião e da moral.524

519 WELZEL, Hans. Derecho Penal Aleman: Parte General. Op. cit., p. 283.

520 MIR PUIG, Santiago. Direito Penal: fundamentos e teoria do delito. Op. cit., p. 60.

521 JAKOBS, Günther. Tratado de Direito Penal: Teoria do Injusto Penal e Culpabilidade. Tradução de

Gercélia Batista de Oliveira Mendes e Geraldo de Carvalho. Coordenação e revisão de Luiz Moreira. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 38-39.

522 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Op. cit., p. 205. 523 MIR PUIG, Santiago. Direito Penal: fundamentos e teoria do delito. Op. cit., p. 60-61. 524 Ibid, p. 62.

Claus Roxin,525 por sua vez, levanta três argumentos contrários às teorias retributivas. Primeiro, afirma que a teoria da retribuição já pressupõe a necessidade da pena que deveria fundamentar, ou seja, não resolve a questão essencial de saber sob que pressupostos a culpa humana autoriza o Estado a castigar e, assim, fracassa na tarefa de estabelecer um limite, quanto ao conteúdo, ao poder punitivo do Estado (seria um cheque em branco ao legislador). Segundo, afirma não ser satisfatória a justificação da pena com base na compensação da culpa, pois “a liberdade humana pressupõe a liberdade da vontade (o livre arbítrio), e a sua existência, como os próprios partidários da idéia da retribuição concordam, é indemonstrável”.526 Terceiro, afirma que a própria idéia de retribuição compensadora só pode ser plausível mediante um ato de fé, pois, em termos racionais, não se compreende como se pode pagar um mal cometido, acrescentando-lhe um segundo mal (a pena).

É claro que tal procedimento corresponde ao arreigado impulso de vingança humana, do qual surgiu historicamente a pena; mas considerar que a assunção da retribuição pelo Estado seja algo qualitativamente distinto da vingança humana, e que a retribuição tome a seu cargo a “culpa de sangue do povo”, expie o delinquente, etc., tudo isto é concebível apenas por um ato de fé que, segundo a nossa Constituição, não pode ser imposto a ninguém, e não é válido para uma fundamentação, vinculante para todos, da pena estatal.527

Da mesma forma, Jorge de Figueiredo Dias rejeita a teoria retributiva em face de sua inadequação para legitimar e fundamentar a intervenção penal. Segundo o autor, a pena só pode ser justificada pela necessidade de “proporcionar as condições de existência comunitária, assegurando a cada pessoa o espaço indispensável de realização livre da sua personalidade”. E assim complementa o autor português:

Para o cumprimento de uma tal função a retribuição, a expiação ou a compensação do mal do crime constituem meios patentemente inidôneos e ilegítimos. O Estado democrático pluralista e laico dos nossos dias não se pode arvorar em entidade sancionadora do pecado e do vício, tal como uma qualquer instância os define, mas tem de se limitar a proteger bens

525 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. 3. ed. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís

Natscheradetz , Maria Fernanda Palma e Ana Isabel de Fugueiredo. Lisboa: Vega, 1998, p. 17.

526 Ibid, p. 18. Enrique Bacigalupo, porém, afirma que tampouco é possível demonstrar-se o contrário (que o

livre-arbítrio não existe). “De qualquer modo, não se pode negar que no caso concreto a culpabilidade só pode ser demonstrada mediante a comparação do autor com nossa experiência geral sobre a livre determinação” (BACIGALUPO, Enrique. Direito Penal: parte geral. Op. cit., p. 152).

jurídicos; e para tanto não se pode servir de uma pena conscientemente dissociada de fins, tal como é apresentada pela teoria absoluta.528

Acrescenta ainda o autor que a teoria absoluta se caracteriza como uma doutrina social-negativa em face da ausência de fins, tornando-a inimiga de qualquer tentativa de ressocialização do delinquente e de qualquer atuação preventiva para controle da criminalidade.529

Luigi Ferrajoli530 também se posiciona contra a retribuição, afirmando que os adeptos desta teoria confundiram conceitos diversos, ou seja, a resposta à questão “por que punir?” refere-se à legitimação externa da pena (razão legal), à sua finalidade justificadora, e não deve ser confundida com a questão de “como punir?” ou “quando punir?” que se refere à legitimação interna (razão judicial), ao motivo de sua aplicação (pune-se quando ocorre um delito). A pena retributiva também não responde, segundo o autor, à questão do “por que proibir?” que é pressuposto do “por que punir?”. Além disso, o autor italiano não vê sentido na retribuição, afirmando que o crime não pode ser reparado, ao contrário do que ocorre com o ilícito civil, e acrescenta que a teoria retributiva serve para justificar modelos não liberais de direito penal máximo,531 embora reconheça sua utilização por autores denominados garantistas.532

Todavia, importante contribuição foi deixada pela teoria retribucionista: somente dentro dos limites da justa retribuição é que se justifica a sanção penal. Com efeito, a principal virtude desta concepção retributiva é a idéia de medição da pena, o que podemos chamar de princípio da proporcionalidade,533 dado informativo de qualquer moderna legislação penal. Da mesma forma, Jorge de Figueiredo Dias534 ressalta o mérito da retribuição ao erigir a culpabilidade como princípio absoluto de toda a aplicação da pena e ao impedir de forma absoluta que a aplicação da pena criminal viole a dignidade humana.

Além disso, parece inegável o caráter essencialmente retributivo da sanção penal, ou seja, a pena pode ser definida como a reafirmação do poder estatal por meio de uma restrição imposta àquele que violou a paz social garantida pelo Estado. Com

528 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. Op. cit., p. 94. 529 Ibid, p. 95-96.

530 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Op. cit., p. 207. 531 Ibid, p. 208.

532 Ibid, p. 206-207. Entre diversos defensores da retribuição, o autor menciona uma recente orientação

anticorreicional nos Estados Unidos sob o título de Justice Model que agrega orientações liberais e outras moralistas como aquelas baseadas na “pena merecida”.

533 BUSTOS RAMÍREZ, Juan J. Bases críticas de un nuevo derecho penal. Bogotá: Temis, 1982, p. 156. 534 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. Op. cit., p. 93.

efeito, a retribuição faz parte do conceito ontológico da pena (plano do ser), o que não gera implicações necessárias em relação à função que a pena deve ou deveria cumprir enquanto programa normativo (plano do dever ser).535