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O projeto de pesquisa elaborado inicialmente apontou para a necessidade de apro- fundamento nas questões metodológicas que envolvem pesquisas aplicadas ao cam- po da cultura material e, mais especificamente, da memória gráfica.

Discutindo as origens do estudo da cultura material a partir do século XX e suas tangências com os campos da arqueologia, antropologia, história e dos fenôme- nos socioculturais, o historiador e arqueólogo francês Jean-Marie Pesez, juntamente com o autor Richard Bucaille (1989) trata a própria noção de cultura material como algo heterogêneo. Para o autor, a cultura material remete a um campo de estudo interdisciplinar e é objeto de diversas ciências, referindo-se a uma cultura do arte- fato, do objeto concreto, manufaturado, considerando suas características físicas, seu processo de produção envolvendo questões tecnológicas, sua inserção no con- texto social e econômico, o ambiente geográfico e a utilização pelo homem. Pesez e Bucaille afirmam ainda que a “cultura material corresponde a uma necessidade atual das ciências humanas” (1989, p. 39).

O professor emérito da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da USP, Ulpiano Bezerra de Meneses (2003), trata as questões envolvendo os estudos da vi- sualidade de maneira abrangente. O estudo das fontes visuais – seu conhecimento, identificação, análise, interpretação e compreensão – se faz necessário não como análise estanque de documentos físicos, mas para que seja possível relacioná-los com o contexto social e de sua transformação. Para isso, há necessidade de estabelecer recortes e enfoques na articulação dos contextos material e social que permeiam o ciclo completo das imagens, ou seja, sua produção, circulação e consumo, reconhe- cendo sua condição de objeto material em cada uma dessas fases.

Professor de história na USP, Marcelo Rede (1996) entende os estudos da cul- tura material como uma proposta interdisciplinar na compreensão dos fenômenos his- tóricos. Refletir sobre a cultura material a partir do universo social na qual está inse- rida, segundo o autor, permitiria ressaltar o contexto conceitual da mente criadora do objeto, manipuladora dos materiais, assim como dos meios de produção e distribuição, e ainda o contexto físico de relações do objeto no tempo e no espaço, envolvendo ou- tros objetos e a sociedade. Rede trata o objeto além da materialidade em si, conferindo importância às relações sociais. “O universo material não se situa fora do fenômeno social, emoldurando-o, sustentando-o. Ao contrário, faz parte dele, como uma de suas dimensões e compartilhando de sua natureza, tal como as ideias, as relações sociais, as instituições” diz Rede, defendendo ainda que “a cultura material é, por excelência, matriz e mediadora de relações” (1996, p. 274). Os objetos têm uma trajetória, que im- plica em modificações em sua forma física, função e significação, que os transformam em documentos dos contextos em que estão inseridos. A articulação da cultura mate- rial com o universo social estabelecida por Rede deve configurar análises sequenciais de acordo com o interesse da pesquisa, que pode seguir critérios de articulação como “cronologia, morfologia, fisiologia, matéria-prima” (1996, p. 280), entre outros, que permitem compreender as relações envolvendo uma série de trajetórias de um objeto ou as relações entre um grupo de objetos.

Victor Margolin (2009), professor emérito de arte e história do design na Universidade de Illinois, entende o design como um produto social, ligado intrinseca- mente ao seu contexto de trabalho, produção e imersão na sociedade. Pesquisador da área do design, Didier Dominique Cerqueira Dias de Moraes (2010, p. 29) coloca que:

A partir desta compreensão do design além da dimensão estética, ou melhor, de que a própria dimensão estética é resultado de condições de produção em sentido amplo, é que está sendo possível construir uma história do design como história da cultura material das sociedades industriais e abranger toda uma pro- dução anônima, tanto quanto a produção autoral, do desenho de objetos que povoam nossa vida cotidiana. E, como história da cultura material, essa história do design pode compor e integrar a história das próprias sociedades.

É nesse sentido que se pretende traçar uma história dos artefatos de memória gráfica da Pinacoteca, na intenção de mapear a construção de sua identidade visual institucional, incluindo os agentes que tangem a esse processo. Neste caso foram uti- lizados determinados artefatos materiais enquanto fonte primária de estudos para se traçar uma análise sobre a linguagem gráfica da Pinacoteca. Escolheu-se materiais preservados que se caracterizam por serem suportes gráficos, impressos, que têm potencial analítico, por apresentarem uma sequência cronológica e estarem conser- vados, para dar pistas reveladoras da trajetória da memória gráfica da Pinacoteca e suas relações com o campo gráfico que a circunda. A análise aqui empreendida aborda dados históricos e sociais próprios desse campo, as características físicas de composição e produção dos materiais gráficos, assim como as condições sob as quais essa composição e produção se deram. Na medida do possível, foram resgatadas memórias de fatos pontuais, como parte da história material, através de depoimentos dos personagens envolvidos com a memória gráfica da instituição.

O termo “memória gráfica” vem sendo utilizado com mais frequência nos úl- timos dez anos e, em países de língua espanhola e na América Latina, está ligado a uma linha de estudos envolvendo artefatos visuais e impressos efêmeros, relacionados com uma identidade de design local, segundo a pesquisadora e docente Priscila Farias (2014). As pesquisas sobre “memória gráfica” constituem narrativas ligadas à história do campo gráfico, surgindo paralelamente a campos de estudos já estabelecidos, como a cultura visual, a cultura impressa e a cultura material. Segundo a autora, os estudos de memória gráfica partilham de elementos do campo da cultura visual, sobretudo acerca da coleta de dados visuais e organização dos mesmos em bancos de dados, além de compartilhar o “interesse em compreender o modo como a sociedade escolhe ou cria imagens e formas visuais, e, ao mesmo tempo, é em certo sentido refletida em tais imagens e formas” (FARIAS, 2014, p. 203). A cultura impressa tem sua existência atrelada a um substrato material, sendo de grande interesse para os pesquisadores em memória gráfica os aspectos técnicos de produção dos artefatos, relacionados aos mé- todos de impressão. A perspectiva da cultura material no âmbito dos estudos de me- mória gráfica abrange a história dos artefatos gráficos e a análise da linguagem gráfica, o que permite dizer “sobre repertórios, tendências, gostos e sua circulação” (FARIAS, 2014, p. 204). O estudo da memória gráfica explora ainda a dimensão da identida- de local, o que vem avançando na América Latina, segundo a autora, possibilitando explorar fatos históricos do design local, que fogem aos acontecimentos globais. Ao cruzar dados visuais, obtidos através do levantamento e análise de artefatos gráficos, com informações históricas e sociais a respeito de sua produção, uso, circulação e de pessoas relacionadas a eles de algum modo, possibilita compreender a expressão de uma identidade local a partir dos artefatos gráficos.

Nadia Leschko et al. (2014) consideram o campo de estudos de memória gráfica brasileiro ainda em construção e citam alguns grupos de pesquisas atuantes no país: em Recife, Pernambuco, há pesquisas envolvendo os rótulos de bebidas e os métodos de impressão (CAMPELLO; ARAGÃO, 2011); estudos relacionados à

tipografia fazem parte de pesquisas desenvolvidas nas capitais São Paulo (FARIAS; ARAGÃO; LIMA, 2012; ARAGÃO, 2010) e Rio de Janeiro (LIMA, 2009); em Vitória, Espírito Santo, há estudos a respeito da revista Vida Capichaba (TONINI et al., 2010); e em Pelotas, Rio Grande do Sul há estudos sobre o Almanach de Pelotas (SEHN et al., 2012).

O estudo da memória gráfica começa a ter importância recentemente em pesquisas brasileiras, quando se passa a observar o produto gráfico como um dado cultural, um tipo de artefato que preserva uma memória que vai além de suas carac- terísticas físicas e pode ser, ao mesmo tempo, revelada por elas. A intenção é que se possa chegar em dados históricos através da memória gráfica, a partir das qualidades visuais e materiais das fontes que não se limitam à bidimensionalidade mas trazem, por vezes, características materiais tridimensionais, e possibilitam análises da circu- lação e produção dos artefatos, de repertórios, dos gostos, e ainda dos sentidos que as pessoas atribuem a eles.

Entende-se que a memória gráfica de um equipamento cultural pode, a prin- cípio, ser preservada ao longo de suas publicações impressas. Em museus voltados às artes, como no caso da Pinacoteca, é comum que a memória gráfica seja formada por catálogos de obras do acervo, catálogo de exposições, e ainda por impressos como cartazes, convites e folhetos com a programação. Ao se referir às publica- ções de catálogos editados pela Pinacoteca, Isabel Maringelli e Gabriel Bevilacqua (2013) relatam no texto “O Museu como Editor” a importância deste tipo de peça para a memória da instituição.

Se os catálogos adquiriram, a partir do século XX, a função de registro de uma exposição ou de qualquer outro evento, tendo ao longo dos anos incor- porado a presença de textos críticos, bibliografias e cronologias, entre outros elementos extrínsecos ao evento em si, hoje eles adquiriram autonomia e se apresentam como objetos capaz de estabelecer uma relação do público com o museu e de divulgar não só a obra de arte, mas também seu contexto de produção, circulação e apreciação. Essas publicações buscam ainda construir narrativas que possam traçar uma memória por meio de uma representação da exposição ou do evento a ele relacionado.

Apesar da ampla e perceptível variação de quantidade, tiragem e formato das publicações produzidas pelo museu ao longo de sua trajetória, é notá- vel uma contínua evolução, marcada pela especialização e profissionalização dessa atividade na instituição. Exemplo disso pode ser constatado na atual configuração de um padrão estrutural para a edição de catálogos de expo- sição. A manutenção de um núcleo de pesquisadores e curadores que de- senvolvem um trabalho constante dentro do programa de pesquisa e crítica em história da arte, também torna possível a realização de catálogos cada vez mais completos e abrangentes, trazendo cronologias, biografias, biblio- grafias, depoimentos, registros fotográficos, relações de documentos e textos que contribuem para a fortuna crítica das artes visuais. (MARINGELLI; BEVILACQUA, 2013, p. 10-12)

Além de peças físicas originais preservadas, a memória gráfica pode ser ob- servada através de registros fotográficos do local, considerando-se a comunicação externa, fachada, a identificação dos funcionários e a sinalização interna. Entende- se ainda, enquanto fonte de memória gráfica, além dos suportes impressos bidimen- sionais e registros fotográficos, os materiais característicos do ponto de comerciali- zação do museu, compostos de produtos e objetos tridimensionais que carregam a assinatura gráfica da instituição, tais como os souvenirs.

2.2 A exposição do acervo gráfico da Pinacoteca