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Curso da visibilidade: a invenção fotográfica

CAPÍTULO II : PREMISSAS DA VISIBILIDADE FOTOGRÁFICA

1. Curso da visibilidade: a invenção fotográfica

Não se deve considerar a invenção fotográfica como um corpo à parte, fora do alcance epistemológico das técnicas e dos outros saberes ou práticas artísticas que, de perto ou de longe, sobre ela se exerceram. A invenção fotográfica materializa, na configuração do "objeto técnico" ou da máquina, a convergência de vários saberes e expedientes, que constituem os ingredientes, ou a trama reconstituinte do invento e a sua singularidade de representação imagética; com definitivas repercursões alteradoras dos processos de percepção e produção de linguagens a partir de sua concretização.

Uns aceitam o papel relevante da física, outros atribuem sobredeterminantemente a invenção fotográfica à química, outros ainda a articulam regressivamente a um pensamento filosófico marcado pela fotologia,

fazendo daí depender a emergência de uma nova ordem da visão,

materializada na "câmera escura" e conseqüentemente nos avanços da ótica geométrica, intervindo na ideia de representação.

Um aspecto importante para a compreensão, já não tanto do lado técnico mas do estatuto artístico da fotografia, deriva em parte de a terem alojado, ou melhor, entelado entre a pintura e a arte cinematográfica e por esta razão a destituirem de toda a especificidade; para muitos ela continuou a ser durante muito tempo a técnica coadjuvante e cúmplice das outras artes. Estatuto que nunca deixou de estar presente no decorrer de sua história.

Ao ser utilizada como técnica predominante da representação do visível, a fotografia é colocada ao nível de um mero serviço público e só chega

a ser apreciada quando começa a comprovar que melhor que outra técnica poderá vir a restituir o passado em documento - ou ainda quando rivaliza com o retrato pictural e o excede em precisão e em fidelidade. Razão de sobra que a leva a aparecer na companhia e partilhando os mesmos espaços da classe dominante e a legitimar ideologicamente o social; as encomendas chovem por parte do Estado e o fotógrafo não tem mãos para os pedidos. Entre o retrato do monarca e o da família do príncipe, apetrecha para as gerações presentes e futuras o reino em efígies de papel - alia-se ao poder religioso, civil e vizualiza o ordenamento social do território, respeitando rigorosamente o ritual dos acontecimentos.

Neste seguimento, poder-se-ia perguntar que tipo de função é que a burguesia do século XIX prescreve aos seus pintores e escritores, senão a de que estes disponham do seu próprio poder, em ordem a ocultar a relatividade histórica e social. A fotografia não foge à fatalidade deste programa de imposição.

Desde logo é apropriada pela classe dirigente, neste contexto de justificação ideológica do social e contribui magistralmente, ao lado das academias, corroborando de objetividade e de realismo a estética ocidental, para uma teoria mimética da arte. Teoria que pretende legitimar as pretensões da pintura em representar o mundo tal qual é, como se fosse da imagem ótica que um objeto pudesse receber ontologicamente o seu estatuto de realidade – adquirindo um sentido de visibilidade.

A reviravolta que se dá é sintomática, tanto no plano das tecnologias políticas e das ciências do social (M. Foucault), como no plano de uma moderna teorização sobre a fotografia (R. Barthes). Quanto ao primeiro plano, se trata de nos darmos conta de que a própria visibilidade em si é um medium carceral, ou como diz M. Foucault "a visibilidade é (uma) armadilha" (FOUCAULT, M. 1975).

Quanto ao segundo plano, o Barthes, fenomenólogo da imagem fotográfica, eclipsa na “Câmera clara” o segredo ou a estrutura escondida da

“câmera escura” da fotografia, dizendo que o que interessa interrogar na fotografia é a “evidência” e não o segredo ou o enigma. Barthes prefere ligar a invenção fotográfica à descoberta da química do que à da câmera escura:

"...diz-se muitas vezes que foram os pintores que inventaram a Fotografia (transmitindo-lhe o enquadramento, a perspectiva albertiana e a óptica da câmera escura. E eu digo: não, foram os químicos. Porque o noema "Isto foi" só foi possível a partir do dia em que uma circunstância científica (a descoberta da sensibilidade à luz dos sais de prata) permitiu captar e imprimir diretamente os raios luminosos emitidos por um objeto diferentemente iluminado. A foto é literalmente uma emanação do referente" (BARTHES, R. 1981:14).

Contudo Barthes não foge às armadilhas que a visibilidade de certas fotografias lhe tece. Não é efetivamente possível falar de uma fotografia, sem de certo modo, reconhecer "que se está dentro dela” - como não é possível abordar a fotografia sem a associarmos inevitavelmente a uma procura lúdica de significação e de surpresas e sem nos colocarmos no terreno da caça.

Mesmo que o nosso itinerário de procura surja marcado possivelmente pelo inconsciente tecnológico da fotografia e pelo horizonte histórico que o século XIX nos deixou nada nos impede constatar que algo bem preso ao corpo exige a uma explicação última: talvez que a impressão química da imagem na foto nos garanta que o registrado só se torna visível para nós quando o corpo, na imagem, encontrar a sua própria reminiscência.

1.1- A captura da imagem

A atividade fotográfica quase sempre pode ser comparada com a do caçador cujo resultado é captura da imagem/presa, até sob o ponto de vista da mobilidade e da rapidez animal no espaço, levando em consideração a importância que o tempo adquire, como mecanismo inerente ao funcionamento

fotográfico. A figura do caçador evoca a do fotógrafo que ao capturar o fortuito e o que lhe passa ao revés, surpreende o real e o resguarda, delimitanto-o numa forma-cerco (a moldura). A visibilidade se estabelece no enquadre.

O que ele (ato fotográfico) pretende é furtar o real à contingência e mediante um gesto fatal torná-lo visível, numa espécie de imobilidade, posta à mercê e à disposição de um olhar que sabe ler. Fixar o efêmero consiste em operar uma passagem ou transmutação mediante a qual se torna desvendável a olho nu, a vontade fatal que habita o fotógrafo em ter que dominar a essência mortal do corpo pela "techné".

Ao capturar a surpresa, o fotógrafo não pode deixar de insistir no caráter evanescente e fugidio do instante e na opacidade mortífera do real. O instante uma vez fixado e revelado porá visivelmente em destaque o caráter mortífero da “tomada de vista”. As fotos do fotógrafo nada mais são do que fragmentos ou reflexos mortais de uma dada ocorrência aparecida/desaparecida no real. Contudo não cultivemos ilusões. Nem todos os fotógrafos são este "fotógrafo- caçador" que parte cedo à procura da presa e que espreita ansiosamente o justo momento do "flagrante delito". Prática adotada, no princípio do fotojornalismo.

Alfred Stieglitz (*) conta com orgulho que no dia 22 de fevereiro de 1893 esteve três horas debaixo de uma tempestade de neve à espera do “momento propício” para tirar o seu célebre ‘cliché’ – “Fifth Avenue: Winter”- [Figura 1].

(*) Alfred STIEGLITZ – 1864-1946 – New Jersey.Renomado fotógrafo norte-americano. Criou e

dirigiu Revistas e clube de divulgação da arte fotográfica nos E.U.A. Pioneiro ao associar

Figura 1- Fifth Avenue: Winter – 1893 –A.Stiegltz

Longe estamos de vir a alinhar todos os fotógrafos, sob esta conduta de caça. O que podemos afirmar, é que toda a mecânica do "ato fotográfico", torna sensível uma estratégia visual de captura e que, a partir das suas posturas e atos, o fotógrafo imaginariamente nos surge, quer ele queira quer não, associado ao caçador no disparo instataneizado no retrato, na foto.

Num abrir e fechar de olhos estamos no passado e o "já está", ou “o

pronto” do fotógrafoarranca-nos ao torpor da pose. O instante roubado uma

vez revelado quase sempre nos interpela pelo lado nostálgico do "já ter sido". Nem tudo parece ser possível registar mas as coisas impressas ao

serem ampliadas revelam-se outras. É neste trabalho, um banho de

metamorfoses e das sucessivas revelações, que o fotógrafo curiosamente fixa, em postura, o mutável e o efêmero e que a fotografia condensa "punctualmente" instante - instante que o intérprete historializa e que por vezes a legenda desdobra em forma narrativa.

O Fotógrafo pode tornar-se caçador no justo momento em que revela e

amplia o “achado” e não necessariamente no momento anterior, em que

aponta com a máquina. A magia do trabalho fotográfico está na (sur)presa desvelada, a imagem capturada, instituindo o campo de visibilidade especular.