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CAPÍTULO I: PERCURSO ICONOLÓGICO

ENQUADRAMENTO A: ICONOLOGIAS

4. Imanência do real

Haveríamos que voltar às raízes antropológicas do impulso humano

por fixar uma imagem do vivido (vivência). O homem de Neandertal

[600.000 anos atrás] rascunhava, desde então, signos e símbolos. No “magdalenense” (17.000 a.C. [Lascaux e Altamira]), a pintura rupestre era uma arte muito desenvolvida, e os símbolos, signos e grafitos eram

correntemente utilizados. O nascimento do sapiens coincide com a

cristalização da imagem, que é como um nexo mágico que o vincula por uma parte à realidade e por outra ao imaginário.

No instinto humano de oposição à morte, isto é, de agarrar-se ao material cotidiano e ao empírico, a imagem passa a ser de um elemento mágico e ritual a um objeto – não menos mágico e ritual no fundo – de fixação de lembrança, de substituição do vivido, de aprisionamento do tempo (uma certa imortalidade).

É por este instinto ancestral que a imagem se tornará realista, objetiva, exata na medida do experimentado e do vivenciado, retido – idealmente – para sempre. Quer reter-se a existência em momentos, em imagens, e deseja-se que estas imagens sejam tão reais como a realidade mesma vivida. Compreende-se, portanto, que a fotografia incidisse neste desejo de apropriação do real fixado em imagens (e que estas fossem o máximo idênticas ao real).

Esta coincidência mítica, cristalizada na fotografia, parecia ter sua culminação na garantia de ‘objetividade ’ por meio da objetiva da câmera. A sempre ilusória ideia de objetividade e de realismo se polariza, então, na fotografia. A imagem fotográfica é a mediadora que garante uma

objetividade tão fiel, que a representação exata do mundo seria impossível sem ela. Daqui deriva um certo modo de ver o mundo que não é senão uma

visão fotográfica e que assimilamos à visão objetiva. Mas a visão objetiva

é a forma como vê os objetos a objetiva da câmera, a qual é radicalmente diferente de como vê o olho humano.

Daí o mito da objetividade fotográfica. Convém observar que o registro fotográfico, a objetiva não é tão neutral e inocente como se deseja. Por ela a visão natural do mundo já está determinada por uma visão artificial, esta proveniente do meio fotográfico.

Há também um certo modo fotográfico de ver o mundo que é

anterior ao advento da fotografia. De fato, este modo fotográfico de ver a realidade, que se descobriu com a fotografia e que se confunde ilusoriamente com a visão retiniana, precede em muito a experiência fotográfica. (MICCINI, E. 1984:97).

Temos indícios claves, muito anteriores no tempo: a câmera escura

(séc.XI); a visão renascentista da perspectiva (séc. XV); os pintores da

luz - Caravaggio, Rembrant, Latour e Vermeer - (a partir do séc. XV até os

impressionistas).

Do ponto de vista técnico do ‘olho da câmera’, o primeiro indício se localiza no século XI, quando os astrônomos árabes utilizavam a câmera escura para observar os eclipses solares. Por causa desta familiaridade com a imagem assim obtida, a fotografia parece uma coisa natural nascida de um descobrimento técnico. De fato, tal como assinala Eugenio Miccini [Op.cit.], a propósito das observações de Hubert Damish (*), as imagens produzidas pelos primeiros fotógrafos não têm nada de naturais, essencialmente porque o princípio que precede a construção de um aparato fotográfico, como o da câmera escura, está ligado a uma noção

convencional de espaço e da realidade que foram elaborados muito antes da fotografia. A imagem fotográfica não deriva, então, do mundo natural,

porquanto “sendo um produto do trabalho humano, é sempre um objeto

cultural, e sua essência não pode vir dissociada de seu significado histórico”. Um segundo indício sobre o que seria mais tarde nossa ‘visão fotográfica’ situa-se no séc. XV, quando a pintura mostrou pela primeira vez o mundo em perspectiva, isto é, observado de um ponto único no espaço que é o ponto de vista do pintor, substituindo ao do espectador. A noção de naturalismo perspectivista do mundo está vinculado historicamente ao

Renascimento, com a formulação das leis da perspectiva geométrica,

introduzida por Brunelleschi (**), depois de refletir sobre a métrica romana e gótica, teorizada segundo a rígida concepção matemática do signo pitagórico. A formulação da perspectiva redundou na teoria das proporções ou relação da parte com o todo. Ao situar o homem no centro da existência e no centro geométrico do campo visual que, no quadro, era determinado pelo artista, a perspectiva renascentista opera um determinismo da imagem que antes não possuía.

A noção de campo visual, inexistente na arte antes do Renascimento, foi trasladada à pintura e corresponde ao que, depois de Niepce, será conceituado como ‘visão fotográfica’, que é basicamente o ponto de eleição do fotógrafo e o efeito de ‘profundidade espacial’, devido à perspectiva geométrica – confundidos, desde então, com objetividade e

realismo. A partir daí, a cena se converte em um objeto, enquanto que em

toda arte precedente, a cena era um espaço puro, com dimensões transparentes e simultaneidade de composição.

(*) Humbert DAMISH – [1928-Paris] – Professor de Estética na E.H.E.S.S. de Paris. Tem obras significativas: Breacks/Cultures, 1976; A arte é necessária, 1993.

(**) Filippo BRUNELLESCHI [1377–1446/Florença]. Arquiteto, Escultor renascentista. Modelou a Perspectiva enquanto linguagem: o conceito de Ponto de Fuga para a representação das imagens.

O mito da objetividade está pois na imanência da imagem fotográfica (confundindo-a com a visão naturalista), mas não propriamente como uma variável da ficção, e sim como ficção substancial da fotografia. Há também uma mentalidade reprodutiva, mimética, que chega a ser uma ideologia da arte clássica, privilegiando a exatidão e meticulosidade da imitação do real em detrimento de outros valores estéticos, expressivos e até da criação artística mesma.

Um terceiro indício daquilo que no século XVIII se configurará como um modo de visão fotográfica do mundo foi o da representação da luz, ou mais exatamente, a iluminação dos objetos no quadro. Com Caravaggio se introduz a luz no quadro, destacando as figuras, acentuando as partes essenciais da composição. Georges de Latour, Rembrandt e Vermeer interpretaram de maneiras diferentes a incidência da luz sobre os objetos. A iluminação, nos temas da pintura, introduz uma nova dimensão à “cena-

objeto” em perspectiva: a dimensão do volume acentuado pelo “claro- escuro”.

Mas há, neste conjunto de coincidências históricas, um fator absolutamente impensado, paradoxal: o fato de que a perspectiva, o movimento e a iluminação naturalista nos quadros que precederam a fotografia, foram observados precisamente graças à fotografia, à reprodução, e às artes gráficas, que operaram a divulgação da arte. Foi com a fotografia que se evidenciaram as intuições fotográficas dos artistas na Arte do passado pré-fotográfico.

Mais além desta primeira objetividade, outorgada à fotografia, está a obsessão hiper-realista, que quer ser mais real que a realidade mesma: a objetiva “vê muito mais” que o olho humano. O microcosmo que palpita por baixo do visual cotidiano já pode ser descoberto por uma câmera – passando

ao estágio de signo-objeto ficcional, ao tempo que passa a ser um universo de sedução o será também de domínio.

A objetividade, ‘espelhismo’ da fotografia; a obsessão descritiva para mostrar além do visto, em seus detalhes e em sua estrutura íntima são os paradigmas desta nova dimensão do micro-hiper-realismo ótico : a acuidade visual se converte em uma coisificação da natureza pela imagem e que pouco ou nada tem em comum com a experiência visual direta da realidade. Tampouco com o imaginário porque está obcecada pelo seu contrário: o real externo, o mundo artificial, a hiper-realidade, configurada nos avatares da imagem, suas instâncias de representação, cujo evoluir se dará conta, a partir da invenção da fotografia, sob a égide de um pensamento fotológico, em formação, como se verá na continuidade do próximo Capítulo.