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Instância simulacral: o fenômeno ZELIG

CAPÍTULO III – LASTROS DE NOVA VISUALIDADE ENQUADRAMENTO A: TRANSIÇÕES EPOCAIS

ENQUADRAMENTO B: CRISE DA REFERENCIALIDADE 1 Mecanismos emergentes: lastros da hipermodernidade

6. Instância simulacral: o fenômeno ZELIG

Zelig de Woody Allen é um eloquente ensaio sobre o século XX e a representação simulacral; em torno do personagem de Leonard Zelig, se constrói, na realidade, o paradigma da relação entre verdade e ficção - sob o plano linguístico e propriamente fílmico; sob o plano narrativo; e no plano histórico-cultural.

A proeza de "Leonard" de W. Allen, no século XX, tem lugar na multiplicação de si e nos recursos de linguagem de comunicação do

despiste, evasiva e babélica dos mídias. O camaleonismo do personagem

coincide (e se reconta) com o próprio mecanismo mimético de seu autor- criador. Em "Zelig", Allen desconstrói os processos da simulação, documentando o inautêntico, com as ferramentas do cineasta, a imaginação do narrador, a ironia do crítico, a consciência crítica do historiador e a problematização do filósofo.

Leonard é a representação da vítima predestinada da anulação

afetiva ou da reificação totalitária ou da espetacularização da mídia. Zelig é um pobre judeu americano, nascido no Brooklyn, provavelmente em 1900. Seus pais nunca o defenderam, de fato: eles sempre o culpavam por tudo. Desde a sua infância, como judeu proscrito, em vez de abraços e beijos

recebeu espancamentos; nesta condição, cresce com uma sede insaciável de amor e leva-o, posteriormente, a identificar-se afetiva, psicologicamente e fisicamente com as pessoas que ele conhece: passa a ser “um camaleão humano.”: com um músico de jazz negro, torna-se um músico de jazz e negro; com jogador de beseibol, torna-se um igual a ele; torna-se obeso com pessoas gordas, o índio com os índios [Fig.3/4/5] até do Papa torna-se similar.

Figura 3 – Gordo Fig. 4. Negro Fig. 5 - Índio

Ele mora em Nova York, a grande maçã do ‘melting pot’ americano. E começa a "ter evidência" quando, ainda jovem, mas adulto, foi atingido pela tal síndrome desconhecida da camuflagem camaleônica: física, cultural, ideológica, etc... e foi preso em circunstâncias pouco claras e alegações

grotescas, terminando nos jornais sob forma de notícias e manchetes. Figura 6- Zelig: submetido a tratamento

Reconhecido como "doente", torna-se a cobaia de investigação científica e instrumento de lutas acadêmicos [Figs.6-7]. Entre os muitos médicos-homens, encontra-se, teimosamente, uma mulher: Eudora Fletcher que devota a Leonard (à primeira vista) um olhar e atenção especial.

Fig. 7 – Zeligexaminado por médicos

Consegue ela depois de muita persistência iniciar um tratamento através de sessões de psicanálise. Ocorre que ele, também nesta ocasião, torna-se um psiquiatra e até alega “ter tido divergências com Freud”. Mas Eudora está interessada no doente Leonard e não em Zelig enquanto "doente", então queria saber como curar, e não como explicar a doença. Leonard se submete à terapia analítica: o procedimento começa a dar frutos. [Fig.8]

Figura 8 -Zelig com Dra. Fletcher, em sessão de análise.

Entretanto Zelig é um caso de fama, objeto preferencial da mídia que criou até fantoches “Zelig” para venda e promoveu a dança “Camaleon”, inspirada nele, com ampla divulgação midiática. [Fig.9]. Mas Leonard, "o homem da moda", também é cinicamente abandonado pelas

"autoridades" aos interesses de uma irmã, alcoólatra, e ao cunhado – que se tornam seus algozes, ganhando dinheiro, explorando sua notoriedade e fama - exibindo-o como um espetáculo e um fenômeno circense.

Figura 9 - entrevista para mídia Fig. 10 – em situação camaleônica

Figura 11 – Dra. EUDORA [Mia Ferrow] e ZELIG [W.Allen]

Só Eudora tenta em vão protegê-lo. Na tentativa de curá-lo, termina se apaixonando por ele, sendo inclusive anunciado o seu casamento [Fig.11]. Mas de várias partes dos Estados Unidos, muitas mulheres se

manifestam, alegando ter sido conquistadas pelo homem-camaleão e

tiveram filhos com ele: daí começam a exigirem a compensação dos danos. Uma espécie de curto circuito entre a espetacularização e a mercantilização produz um interesse "público" paradoxal pelo fenômeno “homem- camaleão”.

Zelig, antes idolatrado é, agora, o alvo do ódio popular. Vai enfrentar um julgamento ( por suposta mal conduta ) mas antes de começar, ele desaparece para lugar ignoto. Leonard não se sustenta emocionalmente, foge dos EUA e da superexposição midiática e encontra refúgio na Europa. Mas onde? No anonimato da massificação totalitária!

Eudora busca insistentemente por ele. E, casualmente, através de uma imagem televisiva, parece percebê-lo em Berlim. Onde, exatamente? Em uma concentração nazista, por trás de Hitler. Ela viaja para uma reunião em Mônaco e vai tentar reencontrá-lo. Obteve êxito e juntos conseguem, de forma segura, fugir do regime nazista atravessando o oceano atlântico em um pequeno avião, batendo recorde com o aparelho de cabeça para baixo, pilotado por Zelig.

Ele acaba sendo recebido, por conseguinte, triunfalmente, como herói vitorioso, em um grande desfile na Quinta Avenida de Nova York [Fig.12] .

Figura 12 - No desfile em New York

Eudora e Leonard se cristalizam em mito, vendo seu amor coroado com o casamento e refugiando-se na normalidade da gente comum. A partir de então, Leonard Zelig pode e passa finalmente a ser ele mesmo, sem o terror de não ser aceito pelo mundo em que vive. E finalmente ele aceita casar com a Dra. Fletcher [Fig.13].

Figura 13 - Eudora casa-se com Zelig

Embora o documentário dê toda a aparência de ser inspirado por eventos reais, na realidade, a história é fictícia e os personagens meros simulacros. É a configuração da natureza do espetáculo, tendo como figura central a vida de Leonard Zelig. Ele é um homem que, sem ter sua própria personalidade, é, literalmente, a imagem projetada do outro, um espelho que devolve as pessoas à sua imagem. Um simulacro na hiper-realidade. Na história, Leonard Zelig - um pacato homem que tem a incrível capacidade de transformar sua aparência e adaptar suas maneiras a das pessoas ao seu redor para não se sentir excluído e poder se misturar aos

outros – se constitui na imagem-personagem usada por Wood Allen para

inserir a crítica mordaz de como se constrói os ídolos e a capacidade da mídia de alimentar o público, fazendo-o clamar por pessoas alçadas a serem celebridades. Evidenciando o lado ‘freak show’ da coisa, já que a fama de Zelig vem justamente de sua condição psíquica, logo aquele que deveria ser estudado como pretendia a Dra. Eudora, vira uma espécie de atração de circo.

Woody Allen soube inserir no conteúdo do seu pseudo-documentário os elementos típicos que configuram Zelig como uma espécie de símbolo do seu tempo. Mesmo o personagem tendo vivido nos anos 30, o diretor mostra que pouco mudou em relação a como o mercado lida com as típicas “manias do momento”. Os brinquedinhos e bonequinhos de Zelig, também os disfarces para qualquer um ser “homem-camaleão” e, aquela que se torna a

brincadeira mais divertida do filme, as músicas e a “dança do camaleão” em referência a Zelig. As músicas foram especialmente criadas para o filme e são baladas de jazz próprias da época com nomes sugestivos como “Leonard, the lizard” [Leonard, o lagarto], “You may be six people, but i love you” [Você pode ser seis pessoas, mas eu te amo] e “Chameleon Days” [Dias de Camaleão].

Ironia, sátira, charada pura, Zelig é ‘camaleão’ tornando-se um índio, um negro, um chinês, um músico [Fig.19] ou adquirindo qualquer fisionomia de alguém, em dadas ocasiões, como no momento em que é nazista, na figura de Lindbergh.[Fig.21]. Sua passagem pela história é feita para fixar sua imagem-simulacro, sustentada pelo artifício e estatuto de imagens-documentais ou testemunhais.

A experimentação do diretor pretende demonstrar à base de imagens como um suporte de crítica social, assim como uma câmera pode capacitar alguém a ser um número grande de pessoas, mesmo quando não se conhece ao certo o retratado. [Figs.14/15].

Figura 14 - Zelig entre cientistas Figura 15 - Zelig com gangster

Ser vários personagens e ao mesmo tempo nenhum constitui a

charada da narrativa. Zelig oferece uma nova estratégia – remontando o

cinema documentário a favor da ficção – enquanto o velho parece novo, inserindo ao enredo momentos preservados dos filmes de propagandas passados nos antigos cinemas (antes do surgimento da televisão).

Mais de uma hora de fita servem ao passeio pelas loucuras do personagem Zelig, enigmático, sem foco senão aquele que se ouve falar,

aquele baseado nas imagens mostradas, nas neuróticas missões em busca de alguém – esse ninguém – para formar vínculos míticos na recepção.

Zelig é uma chave, igualmente, para traçar algumas vias analíticas com a vida social moderna. É o homem julgado, antes mal visto, e depois sendo idolatrado como herói nacional pela sociedade que o desdenhou.

Figura 16 – Zelig presente na mídia

Torna-se, ao fim, não mais um Charles Lindbergh (das fileiras do nazismo), ao desaparecer do solo alemão na companhia de sua amada, Eudora Fletcher (Mia Farrow), pilotando um avião e atravessando o Atlântico. Passa à condição de herói. Mostra, assim, como a cultura ‘americana’ pode transformar um cidadão comum no inimigo público número um e logo, em seguida, perdoá-lo e elevá-lo a herói como quem muda de roupa.

Tudo é simulacro - na composição da imagem-documental - os entrevistados, os líderes de partidos, as experiências de psicanálise –, contribuindo para a então superação do artista sobre a matéria da realidade.

Wood Allen, ao realizar esse filme (1983), usa o estilo documentário para embutir a história de um homem, contada de acordo com o que supõe o documentarista – com todos os códigos do formato jornalístico, só que com

um personagem fictício: reunindo depoimentos de intelectuais reais de

respeito e prestígio como Susan Sontag, Irving Howe e Saul Bellow, que se

referem a Leonard Zelig – “o Homem-Camaleão” – como um dos maiores

fenômenos dos anos 20 e 30 e que foi subitamente esquecido nas décadas seguintes. Uma história, com aval de personalidades conhecidas e com imagens envelhecidas que misturam Allen (Zelig) com figuras importantes da época (F. Scott Fitgerald, Eugene O’Neil etc. [Fig. 20]), estabelecendo a ilusão de realidade.

Fig. 19 – Zelig: músico de jazz. Figura 20 – Zelig com E. O’Neil

O filme conta com um pano de fundo real para seu personagem e segue fielmente o padrão de um documentário convencional com passagens e filmagem em preto e branco intercaladas por depoimentos de pessoas que teriam vivido com Zelig. O personagem de Woody Allen é colocado em fotos junto a celebridades como os presidentes dos Estados Unidos, Calvin Coolidge e Herbert Hoover [Fig.22], além de aparecer em filmes ao lado de pessoas como o próprio Hitler [Fig.21].

Figura 21 – Transmissão de parada nazista. Zelig e Hitler: montagem inventiva

Figura 22 - Zelig entre Calvin Coolidge (esq.) e Herbert Hoover (dir.)presidentes dos EEUU

A construção da farsa Zelig nutre-se de relatos e imagens de época para se ter ideia do personagem à frente da verdadeira pessoa – e quando não se tem a pessoa, resta o personagem, mesmo sem qualquer partícula de humanidade. Seu trunfo é ser, convicentemente, um simulacro do início ao fim: a representação assumindo-se como ou confundindo-se com o próprio representado.

Igualmente submersos pela luxuriante fertilidade das máquinas mediáticas, nos deparamos com a própria raridade da experiência real, com um mundo ‘usado’, um mundo de fantasmas, no qual cada um passa a viver uma vida em segunda mão e indireta. A experiência Zelig denuncia esta

vivência limite a que pode estar submetido o personagem homem contemporâneo.

As mídias, como extensões tecnológicas do homem, pouco a pouco, mercê do aperfeiçoamento tecnológico e da sua própria capacidade performativa tornam-se agentes modelizadores do próprio sujeito histórico, imiscuindo-o em uma outra realidade ficcionada.

O sujeito histórico passa assim a sujeito pós-histórico, exorcizado no seu tempo, ultrapassado pela velocidade midiática da informação – extasiado no universo da hiper-realidade emergente.

Em pleno regime simulacral, de constante volatilização do real, novos universos sígnicos se constroem e desenvolvem novas realidades estéticas. O caso Zelig corresponde apenas a uma das instâncias ocorrenciais dentre diversas representações hipermodernas, resultantes do evoluir de nova visualidade, em consequência das transformações [culturais e técnicas] examinadas ao longo deste capítulo.

Neste evoluir, movendo-se para outros níveis de percepção e fruição, deparamo-nos com o estabelecimento da natureza estética da representação hiper-real – para qual as reflexões, na continuidade dos próximos Capítulos, serão direcionadas mais detalhadamente.

CAPÍTULO IV – IMANÊNCIA DA REPRESENTAÇÃO HIPER-REAL

ENQUADRAMENTOS:

A: NATUREZA SÍGNICA DA REPRESENTAÇÃO

1. Entre mimese e simulacro

2. Metamorfose relacional da representação 3. Sob o signo da imagem -espetáculo

B: NATUREZA ESTÉTICA DA HIPER-REALIDADE

1. Itinerários da sensibilidade

2. Lógica da visibilidade/Nova visualidade 3. Urdimentos da hiper-realidade 4. Estratagemas paradoxais

LIVRE DO REAL, VOCÊ PODE FAZER ALGO MAIS REAL QUE O REAL: O HIPER-REAL. Jean Baudrillard