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Idealizações sobre imagem

CAPÍTULO I: PERCURSO ICONOLÓGICO

ENQUADRAMENTO A: ICONOLOGIAS

1. Idealizações sobre imagem

O universo fundamental da comunicação, hoje, está constituído de todo um repertório sígnico-icônico: imagens que estão sempre na base das mensagens e processos comunicacionais.

Historicamente, as imagens pré-históricas e da arte renascentista constituem o paradigma da imagem visual fixa em superfícies

bidimensionais. Também representam o universo das imagens quirográficas, produzidas pela mão humana. Elas são a fronteira que limita com as imagens técnicas, produzidas por meio de aparatos. A difusão de imagens de arte começou com a imprensa e é, neste instante, conforme vimos discorrendo no enquadramento anterior, que se difunde também a mensagem dupla (imagem/ texto), cujo exemplo originário seriam as obras dos copistas, que tiveram lugar nos ‘atelieres’ (oficinas) medievais.

Um olhar polivalente, hoje, deverá abarcar, entretanto, desde as vertentes técnica (a tecnologia de produção/difusão), a simbólica (os códigos e as linguagens) e a sóciocultural, com os conteúdos estético-informacionais das representações icônicas. Mas, ante a inflação textos e avanços de estudos sobre a imagem – nos deparamos com lacunas abertas em relação à etiologia própria desta forma de representação. Da nossa parte, empreende- se a pontuação desta trilha para melhor apreensão dos paradigmas formadores da chamada cultura da imagem e seus avatares.

Conceitualmente, a cultura imagética, parte da ideia de eikon,

imagem icônica, representação visual de um modelo preexistente, cujo grau de ‘iconicidade’ ou de semelhança perceptiva entre a imagem e o modelo é o mais alto possível. Uma escultura policromada, na escala real do modelo que representa seria mais icônica que uma fotografia em branco/preto do mesmo modelo, esta seria mais icônica que uma caricatura e esta mais que

uma descrição escrita do mesmo modelo. Esta noção de ‘iconicidade’ é

essencial no universo das imagens. Representa, em um extremo, um alto grau de realismo, oposto à abstração em outro extremo.

Mas a ideia de realismo na representação icônica se baseia no processo de confrontação (na tela de conhecimento do indivíduo) entre a imagem presente ante os olhos e seu modelo ausente. A memória visual é aqui um fator de base. Uma coisa é o objeto ou o fenômeno real inserto no contexto multissensorial da realidade – no qual também está o indivíduo

observador – e outra coisa radicalmente diferente é esse objeto ou fenômeno representados em uma imagem.

Este traslado de um mundo real a um mundo de representações é mais que transcodificação, uma transmutação: é uma passagem de uma natureza a outra. A imagem adquire assim um estatuto substancialmente diferente do de seu modelo, porque passa pela imaginação, a sensibilidade e capacidade criativa do sujeito que realiza esta imagem. A imagem é da ordem do real e do imaginário.

As tecnologias da imagem alteraram a antiga teoria platônica, ou seja, do ideal de beleza fundado na fidelidade representacional de um modelo preexistente e visível na realidade. Basta evocar as imagens numéricas ou as imagens virtuais – à parte daquelas da arte fantástica – para subverter as relações da imagem e seu modelo. Sabemos que a imagem pode ser o modelo de uma realidade que todavia não existe e que poderá vir a existir graças a ela. Isto, igualmente, põe em crise a ideia de imagem, entendida como reflexo de um modelo que sempre deve precedê- la.

Entretanto, sem embargo, nossas relações com as imagens se fundamentam, ainda, na ideia realista de representação fiel; inclusive o que se valoriza, tanto como a capacidade de representação, é a acuidade, a perfeição e o detalhe técnico que fazem as imagens hiper-realistas, mais

reais que a realidade.

Ademais, no plano da cultura da imagem, um dos marcos mais significativos - o movimento iconoclasta incidia sobre a questão ‘realista’ da representação, embora relacionada com o divino. A discussão da imagem

entre iconófilos e iconoclastas é um tema recorrente de nosso passado. Em

durante mais de um século, e seguidamente o movimento iconoclasta absorveu numerosos partidários vindos de diferentes seitas heréticas. No princípio do séc. XVI, a questão da imagem foi um argumento de conflito religioso.

O iconoclasta reivindicava uma ideia mais pura de Deus. Cada representação da divindade em imagem considera-se inadequada, blasfematória. O iconófilo, por sua parte, defende a existência de uma ligação metafísica, uma relação de identidade que une a imagem e o modelo, a forma material e o espírito, o ícone e a divindade. Para os iconófilos, a ideia platônica, o modelo original é capaz de expressar-se sob uma forma sensível evidente. Trata-se de uma metafísica concreta, uma teologia visual pela qual a imagem consume a fusão do visível e o invisível. No cerne da questão, o que aflorava era, realmente, a relação entre mundo e deus, matéria e espírito, ficção e verdade.

À margem destas reflexões, iconofilia e iconoclastia reaparecem hoje em função de nossa ‘imagenharia ‘ [imagerie – produção de imagem] social. “Os iconófilos contemporâneos são ‘os realistas e os hiper-realistas dos mídias. Os iconoclastas são os hiper-futuristas da autenticidade e da verdade outra” (M. PERNIOLA. 1978:102).

Em ambos os casos, as premissas imaginárias dos predecessores religiosos continuam operantes. Mas o problema da relação entre a imagem e o modelo original – idealismo platônico – já não possui nenhum cunho de moralidade: a trucagem fotográfica, a manipulação ou a colagem que apresenta realidades modificadas já não corresponde a posições éticas, apenas tecnológicas. O cinema é uma ficção realizada, ou simulacro reproduzido. Mas aqui, neste particular, não se discute a correspondência entre imagem e realidade, e sim em todo caso, entre discurso fílmico e realidade. A intervenção do tempo na sequencialidade do filme faz que nos encontremos ante outra classe de imagens, radicalmente distintas do

estatismo próprio da imagem fixa (e também substancialmente diferentes do tempo real).

No caso da televisão, o problema tem sido dissociado: as imagens vão por sua conta e já ninguém exige que sejam idênticas ao modelo real porque o fluxo de imagens eletrônicas, manipuladas, fantasiosas (os ‘videoclips’, a publicidade, as cortinas e máscaras animadas) têm mostrado outro universo icônico diferente da imagem real.

Em todo caso, o que os iconófilos criticam é bem mais uma questão ética: a dissociação entre a informação midiática e o acontecimento real, entre a imagem publicitária e o produto, entre a propaganda política e a conduta do partido. Uma repetição de lance de futebol, em câmera lenta e em imagens congeladas é o ideal para iconófilos contemporâneos, os realistas modernos: hiper-realistas; porque querem ver a realidade mais que a realidade; porque uma ‘jogada de futebol’ vista, diretamente pelo público no campo, é paradoxalmente ‘menos real’ que sua dissecação na tela televisiva.

Qual é o resultado de tudo isto? Qual a resposta dos massmídia ante esta expectativa? A fabricação de uma imagem o mais realista possível (telemorbo, reality show, transmissões em direto). Uma imagem que se quer conforme a realidade, ao conteúdo, ao original, mas que

“permanece igualmente manipulada, predeterminada e pré- constituída; é uma imagem hiper-realista que reflexa fielmente uma hiper-realidade imaginada”. “Este hiper-realismo social acaba propondo uma imagem real sob a condição de criar uma realidade inteiramente subordinada à imagem. Atua como aquele grupo que, faz alguns anos, produzia filmes pornográficos na América latina e torturava à morte suas próprias atrizes para obter imagens de um

sadismo perfeitamente realista. Reivindicar uma imagem fiel à realidade não faz senão acrescentar o universo de manipulação que se estende até conseguir o modelo original mesmo.” “A confusão entre reportagem e teatralidade, verdade e ficção faz toda a realidade ser fictícia e teatral” (M.PERNIOLA.1978:103)

Quanto mais a iconofilia quer captar visualmente a realidade, mais

esta realidade perde sua dimensão real para vir a ser “alucinante

semelhança do real a si mesmo”. [idem]

Por sua parte, a iconoclastia moderna implica uma visão analítica das práticas de representação da realidade. Apresenta-se como crítica em suas relações com o mundo atual, que considera sem realidade, simples aparência e puro espetáculo que os mídias propagam. A publicidade, a

propaganda política, os massmídia, constituem para os ditos iconoclastas

modernos, uma “sociedade do espetáculo” que deve ser rechaçada em bloco, em nome de uma realidade que se expressa na subjetividade radical do indivíduo. Todas as características do iconoclasta tradicional se encontram, assim, reproduzidas pela analítica que propusemos. Estas inserções antecipam nossos delineamentos, ao longo deste trabalho, sem nos prendermos aos aspectos fundamentalistas, que regeram no passado, as posições diversas em relação à vigência das imagens.