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Urdimentos da hiper-realidade

CAPÍTULO IV – IMANÊNCIA DA REPRESENTAÇÃO HIPER-REAL

Figura 4 Mesa Redonda-1850 Adolph von Menzel [1815/1905] Reunião de membros da academia Vendo-se, à

C) Nova sensibilidade A ficcionalização do real

3. Urdimentos da hiper-realidade

Enquanto se ampliam as possibilidades de fazer do mundo sua

representação (para se sentir esteticamente), vimos a relevância do

representado ir decrescendo progressivamente até chegar ao esteticismo, que é o absolutismo da representação.

Este fluxo da representação deriva para um conjunto de categorias ou elementos característicos das linguagens contemporâneas: sua reflexibilidade, sua autoconsciência; o efeito de realidade; o efeito de impacto; a obscenidade,; a ficcionalidade. O objeto das artes é agora a própria arte ou por outra sua própria representação; os motivos da arte são tomados da história da arte através de recursos ‘apropriadores’, de citações,

de poéticas em metalinguagem. Na representação da realidade, esta

ficcionalizada, passa a ser fonte produtora de estados estéticos: daí surge a urdidura do hiper-real.

O discurso artístico, nos anos oitenta, (con)versa sobre a própria arte, sobre suas variações, suas revisões ou ‘revivals ’. Já, nos noventa, ressurge uma maior preocupação por questões de identidade, por questões sociais e

culturais. A representação artística mais recente tem uma característica

fundamental em dois pontos, que congrega o sentido da hipermodernidade:  a) por uma parte, ensaia e põe em ação novas medidas de implicação

ideológica no mundo - poéticas denunciantes, de compromisso com questões sociais concretas - mas de fora, para poder olhar. O artista, como observador de seu tempo, é um criador de posições e posturas de observação.

b) De outra parte, correlativa à anterior, as artes se infiltram

(autoironicamente) na realidade, apagando os sinais diferenciadores habilitados pela tradição moderna da arte com a finalidade de instituir um âmbito autônomo da representação artística. Assim passa a ser quase pura aparência de mundo real. A representação artística passa,

em novo estágio, a ser configurada como arte de ‘fingimento’: de fingimento de realidade (para como espiã, infiltrada, poder intervir nela) - artifício de intervenção e de simulação da condição artística.

Quando se perde a ambiguidade constitutiva da aparência, quando a aparência passa a ser pura evidência, imposição de evidência, violência de evidência, estamos perante um estágio de HIPER-REALIDADE.

A ficcionalização traz consigo a redução do real ou como expressou Roland Barthes: o ‘efeito de realidade’. Este efeito intenso de realidade quer denotar um ‘mais real que o real’. E para tanto faz uso de poéticas e retóricas de simulação da autenticidade, espontaneidade, imediatismo, para se constituir em hiper-realidade.

Em uma primeira aproximação do hiper-real – ontologia retórica correlativa de um determinado ‘sentimento de realidade’ – valeria à pena destacar dois atributos:

1) O hiper-real é um construto para o efeito intenso de realidade. Essa primeira determinação pode ilustrar-se com uma

perturbadora afirmação de Artaud: “A imagem de um crime

apresentada nas condições teatrais adequadas é infinitamente mais terrível para o espírito que a execução real desse mesmo crime” (“El teatro y su doble”. 1983: 96).

2) O hiper-real é ‘constructo’ mais real que o real; realidade concentrada, superávit de realidade. O hiper-real é a realidade realista; evidência perfeita de realidade. A hiper-realidade como ontologia da contemporaneidade é o resultado da indústria de ficcionalização da realidade.

O efeito de realidade atua como gerador de sentimento de realidade quando a realidade mesma se camufla (desaparece) (se esconde) por se

deixar tomar por simulacro ou simulação. [foi a base do argumento do fenômeno Zelig – que examinamos no Capítulo III].

O hiper-real consiste na dissolução (apropriação) do real (por parte de) na ficcionalidade do simulacro, que é uma cópia sem original, um signo (quase absoluto), carente de referente de realidade. A ficcionalidade é a realização do real. Do mesmo modo que a realidade vem a desaparecer, sendo usurpada pelo hiper-real (a hiper-realidade é a supressão do real tal como é produzida na contemporaneidade), a ficção, segundo sua caracterização moderna, claudica em mãos do ficcional generalizado. A hiper-realidade é o triunfo da ficcionalização, com a qual se cumpre o término da realidade.

Por isso o hiper-real, para existir, deve servir-se da retórica de neutralização do “fazendo de conta de como se não houvesse...”. A TV-real opera “como se ” não estivesse a câmera presente: esta é a estética

dominante do hiper-real. Daí o apogeu da representação fotográfica em

nossa época, a fotografia como paradigma – e ilusão – de meio-imediato. A fotografia satisfaz a exigência (irônica) do como se interviesse (como se não estivesse) para levar ao extremo a apropriação representacional do mundo. Como disse Susan Sontag: “De estar ‘ali fora’, o mundo passa a estar ‘dentro’ da realidade” (“Sobre a fotografia”.1992:91). E Eduardo Subirats em “Realismo alucinatório” (p. 41):

“A fotografia é um meio hiper-real, aquele que mais objetivamente nos aproxima ao real, o olhar frio, despersonalizado e anônimo, um olho sem qualidades que, por isso mesmo, é tanto mais hábil para reproduzir o dado sem a menor participação subjetiva”.

Em sua teoria sobre o simulacro, Baudrillard assim faz uma referência que se adequa à questão que vimos tratando:

“A um espaço cuja curvatura já não é a do real, nem a da verdade, a era da simulação se abre, pois, com a liquidação de todos os referentes. Não se trata de imitação, nem de reiteração, inclusive nem de paródia, mas de uma suplantação do real pelos signos do real, isto é, de uma operação de dissuasão de todo um processo real por seu duplo operativo, máquina de índole reprodutiva, programática, impecável, que oferece todos os signos do real e, em curto-circuito, todas suas peripécias” (“Cultura e Simulacro”. 1987:11).

Para consecução dos atributos, inerentes à condição da hiper- realidade, a representação imagética contemporânea articula (constrói) sua trama semiótica através da urdidura de recursos retóricos e das categorias expostas, no início, e que podem ser sintetizados nestes três planos:

 efeitos de realidade;

 retórica do efeito de naturalidade;

 emprego do impacto e exagero formal : com destaque do obsceno.

3.1 Efeito de Realidade

A hiper-realidade tem sua essência na produção do efeito de realidade. A perda da realidade deve cumprir a exigência de manter a ilusão de sobrevivência dela e esta ilusão se mantém mediante estratégias, iguais as operadas pela indústria do hiper-real, do efeito de realidade. No âmbito da produção imagética é suficiente mencionar a farta produção de documentários “fake”, na senda do já referenciado e pioneiro Zelig de Wood Allen [Cap.III – B].

Um exemplo significativo, na TV, além de inúmeros, poderá recair na paradigmática produção de “Linha Direta” (da TV Globo - períodos: 1990/1999 a 2007), estruturada com os recursos formais expressivos de elaboração deste efeito de realidade, executando as encenações dos fatos

criminais ocorridos no Brasil, relatados por protagonistas atores e/ou personagens reais. Além do que cresce, na concepção de estruturação das programações televisivas, o número de programas a estilo de “reality shows”, narrativas ilusórias de situações reais.

Nas redes WEB, é marcante a presença em maior ou menor

densidade do fenômeno “Second life”, sendo recorrente o fator de atração

e/ou satisfação dos desejos e impulsos sexuais. Com a adoção da high–tech e da infografia o “efeito de realidade” culmina nos ambientes virtuais de hoje, em que a simulação realista é a “logo-tecnia” dominante.

Da mesma forma, e por outro lado, há que considerarem-se os apelos do cotidiano da vida contemporânea e suas estratégias de sedução ao desfrute de uma realidade ficcionada, pela publicidade: como são os casos dos Hotéis com ambientes reais; bem como os ‘Stands’ e Vitrines de venda imitativos; os ‘Gadgets’ e o crescente nascimento de ‘indivíduos’, gerados pela germinação da ciência cibernética – robótica - e toda sorte de mecanismos dos novos mídias, ilusionando públicos consumidores ou receptores. [destes últimos aparatos, já esclarecemos, não nos ocupamos no decurso das presentes reflexões. Um projeto futuro poderá suceder a este intento inicial de lastrear as instâncias básicas do hiper-real, nas representações digitais].

3.2 Retórica do efeito de naturalidade

O efeito de realidade - que só provoca a ilusão dela através de intensificação de tal efeito - faz uso constante do ‘impacto’ [Fig.36-37]; busca

impor-se recorrendo à retórica do imediatismo – captação de

acontecimentos diretos [Fig.34-35], da naturalidade, da espontaneidade, da

autenticidade e da veracidade [fig.33]. A hiper-realidade se elabora e até se

‘presentefica’ como exibição da ilusão de realidade: é o caso de um dos grandes exemplos de suposta ‘naturalidade’ - a criação de Casas Museus, onde se simulam o cotidiano do “ente-celebridade” que ali viveu; ou ainda

de Parques Temáticos – com toda espécie de naturalização da natureza ou do meio ambiente a que se referem ou imitam.

No plano da representação imagética, comecemos por aludir à obra de Jeff WALL(*) porque ele tem buscado, enquanto relato e ações, construir a espontaneidade, dispondo cuidadosamente do efeito de causalidade natural - como se poderá verificar nas ‘peças’ a seguir: