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Transição do tátil (medievo) ao visual (clássico)

CAPÍTULO III – LASTROS DE NOVA VISUALIDADE ENQUADRAMENTO A: TRANSIÇÕES EPOCAIS

2. Transição do tátil (medievo) ao visual (clássico)

É exatamente no final da Idade Média - em que se verifica o

acentuar da divisão entre esfera pública e esfera privada (segundo

Habermas, na alta Idade Média não há ainda uma esfera pública autônoma separada da esfera privada, o que há é uma "publicidade representativa" do monarca ou do senhor feudal simbolizada através do selo régio, por exemplo, ou por toda uma fenomenologia imanente ao corpo jurídico do rei ou, ainda, sob um outro ponto de vista, à sua ‘publiciness’). Enfim, é por ocasião do final da Idade Média que nomeadamente, de acordo com Huizinga, já se havia apontado a emergência da visualidade: "Um dos traços fundamentais do espírito do declínio da Idade Média é o predomínio do sentido da vista" (HUIZINGA, J.1980).

Embora vários historiadores tenham atribuído ao período que se

segue ao século V a.C., na Grécia, a introdução da ordem visual na

escultura, na ciência e na literatura, é com McLuhan que a questão fica clara:

" Do ponto de vista da aguda e intensa consciência que hoje temos dos componentes visuais da experiência, o mundo grego afigura-se tímido e tateante. Nada existe, porém, na fase manuscrita da tecnologia alfabética, que fosse suficientemente intenso para romper o globalismo sensorial e separar inteiramente o visual do tátil. Nem mesmo o alfabeto romano teve força para fazê-lo. Foi somente com a experiência da produção em massa de tipo uniforme e repetível que a fissão dos sentidos ocorreu e a dimensão visual se separou dos outros sentido” (McLUHAN, M. 1977:88).

E ainda explicitando melhor a sua posição em relação ao que chama de fissão dos sentidos -

“o que é necessário é saber porque é que o desenho primitivo é bidimensional, ao passo que o desenho e a pintura do homem alfabetizado tendem para a perspectiva. Sem tal conhecimento não podemos compreender porque é que o homem deixou de ser “primitivo” ou áudio-tátil na tendência dos seus sentidos. Nem poderíamos chegar a entender porque é que o homem desde Cézanne abandonou o visual em favor dos modos áudio-táteis da experiência. Esclarecida essa questão, podemos abordar mais facilmente o papel que tiveram o alfabeto e a tipografia na atribuição da função dominante ao sentido da visão na linguagem e na arte e em toda a extensão da vida política e social" (McLUHAN, M.1977:99).

No fundo, quer o alfabeto, quer a tipografia marcam dois momentos de ruptura afinal com o mesmo significado, isto é, geram e concluem a separação entre o universo tátil e o universo visual. O alfabeto o faz de uma forma radical e nova, enquanto a tipografia lhe confere uma nova autoridade, uma outra legitimidade – a que lhe advém do fato de corporizar e uniformizar, sem ambiguidades, a notação gráfica. Por outro lado podemos concluir que mais importante do que a própria redistribuição epistêmica, histórico-estrutural, proposta por McLuhan, é a instituição do dispositivo, imanente à própria gênese de novas mediações tecnológicas, tal como se verifica para o caso da tipografia.

Por agora observemos como se foram sedimentando as práticas, as tecnologias do olhar e do campo representativo, a partir do classicismo greco-romano, para melhor nos situarmos na emergência do espaço renascentista, anunciador das grandes transformações que se operaram na esfera moderna da comunicação, ao nível das mediações simbólicas e

tecnológicas das representações. Continuando todo procedimento ritualizante e fenomenológico que remonta a práticas tão antigas como o embalsamento egípcio, a escultura grega ou a pintura renascentista, a

fotografia conseguiu no século XIX algo que sempre havia sido desejado

pelo homem desde os tempos mais remotos: exorcizar o tempo, salvar o ser, em absoluto, pela sua aparência, como disse André Bazin (s/d: 30).

De fato, os rituais funerários egípcios, constituem na Antiguidade uma prática de salvação do corpo, uma vitória sobre a inexorabilidade do tempo. As múmias dos faraós, encerradas no labirinto das pirâmides, asseguravam assim a perenidade do corpo da mesma forma que, com o mesmo objetivo, Alexandre se fez representar na necrópole de Sidão, ou, enfim, Luís XIV se fez retratar por Lebrun. É assim que a raiz ontológica da fotografia e do cinema, no que concerne concretamente à figuração primitiva do duplo, tem princípio nessas práticas diversas.

Com a escultura grega arcaica é já claramente uma concepção antropomórfica que ameaça querer constituir-se como centro do campo representativo. A própria mitologia, se no Egito já tinha encontrado Toth como o fundador da escrita, na Grécia tem em Cadmo o deus introdutor das letras do alfabeto e, em Dédalo, o primeiro a dar vida aos corpos de mármore, o artista ‘qui deorum simulacra primus fecit ’, o criador das estátuas "o primeiro a abrir-lhes os olhos, a descerrar-lhes os lábios, aquele que lhes alargou as pernas, desprendeu os braços do corpo, soube infundir- lhes vida, de tal modo que pareciam mover-se, caminhar, olhar, respirar, erguendo-se à hipérbole repercutida por Platão no Menon de que era preciso prendê-las para que não fugissem". (BECCATI, Giovanni 1965:22).

Seria a própria mitologia a denunciar um momento fundamental da Antiguidade, a saber, o fim do transe tribal, como lhe chamou McLuhan, isto

é, o momento em que o homem se liberta da ressonância das práticas mágicas das sociedades orais.

Poder-se-á dizer que a escultura grega emerge com o alfabeto fonético. O mito de Cadmo(*), no fundo, explica isso mesmo. Contudo, na Grécia, em uma primeira fase, a plástica arcaica não é ainda da ordem da mímesis como viria a ser a escultura imperial em Roma no século de Augusto ou mesmo a escultura helenística tardia. A escultura arcaica grega, fundamentalmente imagens de divindades, deuses antropomorfizados, filiava-se numa ‘poiesis’, numa ordem de expressão e significação plurívoca. Não se tratava de fato da imagem do homem ou da imagem de um mundo coeso, que, tal como na pintura de vasos ou nos frescos, não era ainda um mundo unificado. Este é de fato o período em que se começa a notar como que uma progressiva hemorragia do simbolismo. Como pode-se deduzir, este fenômeno não se verificará somente no domínio da arte.

É este investimento da ordem da mimesis sobre a poiesis,

investimento do olhar, portanto, e que se poderia ver como um "desperdício dos símbolos da linguagem" (Leroi-Gourhan) ou como pura "evaporação do sentido da obra" (Gilbert Duran) que nos remete exatamente para a progressiva radicação de uma ordem dos signos desterritorializados; o que é revelador quanto a cada vez maior importância dada à visualidade na fundação de um verdadeiro regime disciplinar do olhar e do seu significado em termos da emergência de ‘espaços publicitados’, da ‘aptidão de ver’ e, no fundo, da emergência da própria razão moderna.

(*) Cadmo – Herói do ciclo tebano; filho do rei de Tiro, Agenor, irmão de Fênix e Europa. É considerado o fundador de Tebas e propagador do alfabeto e da arte de fundir metais.

Mas já na transição do românico para o gótico se opera um corte que é para Durand exatamente um dos três estágios de "extinção" simbólica, de desvalorização do símbolo:

“Este deslizar para o mundo do realismo perceptivo, no qual o expressionismo substitui a evolução simbólica, é sobretudo visível na passagem da arte românica para a arte gótica ( ... ) A arte românica é uma arte "indireta", toda de evocação simbólica, face à arte gótica tão "direta", da qual o "trompe-l’oeil” flamejante e renascentista será o prolongamento natural. (...) Enquanto que o estilo românico, embora com menos continuidade do que Bizâncio, mantém uma arte icônica que assenta no princípio teofânico de uma angeologia, a arte gótica aparece como um procedimento que a torna o protótipo do iconoclasmo por excesso: ela acentua a tal ponto o significante que este passa de ícone a imagem naturalista perdendo o seu sentido sagrado e tornando-se simples ornamento realista, simples "objeto artístico" (...). Desde o século XIII as artes e a consciência já não se propõem reconduzir a um sentido, mas sim "copiar a natureza". O conceptualismo gótico pretende ser um decalque realista das coisas tais como são" (DURAND, G. 1979:33- 35).

Ora ‘copiar a natureza’ só será possível a partir efetivamente do século XV com a perspectiva artificialis. Digamos então que desde antes do Concílio de Trento se nota, segundo Bazin, que a pintura ocidental "começou a despreocupar-se da expressão de uma realidade espiritual com meios autônomos, para tender para a imitação mais ou menos completa do mundo exterior" (BAZIN,A. s/d:35).

É isso que vamos encontrar em Huizinga quando ele se refere ao “predomínio do sentido da vista ", no declínio da Idade Média. Aí residia segundo ele, a razão da progressiva iconolatria medieval. Mais para além do

livro, as imagens medievais finais, os vitrais, são os livros dos iletrados como se dizia na crônica renascentista.

O novo modo de representação, isto é, o regime do analógico, da semelhança, emerge do próprio aristotelismo:

“A poética de Aristóteles, que será a Bíblia da estética ocidental até ao romantismo, repousa essencialmente sobre a noção de imitação. A imitação não é mais do que a extrema degradação da redundância". (DURAND, G. s/d:35).

O mecanismo para estabelecimento da imitação como fundamento da nova ordem de representação do real, de sua imagem, se enquadra nos ditames do dispositivo conceptual da perspectiva renascentista.