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2 PERCURSO METODOLÓGICO

2.6 DA CONSTITUIÇÃO E DA ANÁLISE DE CORPUS

Conforme Bauer e Aarts (2002), a constituição de um corpus de pesquisa se dá a partir da coleta de dados qualitativos, ou evidências, que irão proporcionar a verificação do status das hipóteses do trabalho que está sendo investigado, pois

Toda pesquisa social empírica seleciona evidências para argumentar e necessita justificar a seleção que é a base de investigação, descrição, demonstração, prova ou refutação de uma afirmação específica. [...] „Construção de Corpus’ significa escolha sistemática de algum [meio] racional alternativo [...]. (BAUER; AARTS, 2002, p.39) Neste contexto, assim, o corpus desta pesquisa foi constituído a partir do material que foi transcrito, por meio das entrevistas, e que, após o devido recorte, pude identificar determinados elementos que parecem estar presentes nos dizeres dos discentes entrevistados.

Esta regularidade aparente nos dizeres dos sujeitos entrevistados se deu na forma de adjetivações e substantivos, os quais marcaram determinados momentos das entrevistas. Expressões como “pecado”, “macho”, “fêmea”, “homem e mulher”, “Deus”, “família tradicional”, “bíblia”, dentre outros, me auxiliaram na constituição do corpus de análise da pesquisa, já que ocorre a apropriação de um já-dito ou um préconstruído (PÊCHEUX, 2016), de algo que fala antes do sujeito.

Neste sentido, elaborei um quadro demonstrativo que caracterizou a construção do

corpus, a partir de determinados dizeres dos entrevistados.

Acredito ter dectectado a presença de uma possível discursividade arquetípica, sexista, heteronormativa e homofóbica a partir das expressões elencadas abaixo:

QUADRO 2 – DA CONSTITUIÇÃO DO CORPUS DA PESQUISA

Sujeito Descrição (regularidade) Interpretação

José

“pecado”

“homem com homem não é natural”

A homossexualidade é um pecado condenado por Deus. A relação homossexual não é algo natural.

“Deus fez o homem e a mulher” “homens não podem se deitar” “influência”

“o normal é pai e mãe” “não sou homofóbico, mas...”

Segundo a Bíblia, Deus criou o homem e a mulher.

Segundo o discente, dois homens não podem ter relações sexuais.

Pais homossexuais podem influenciar a sexualidade da criança adotada.

Dois pais ou duas mães não são aceitáveis e não podem adotar.

Ênfase seguida da preposição adversativa.

Júlio

“Deus fez o homem para a mulher” “influência”

A relação homossexual não é algo natural.

Pais homossexuais podem influenciar a sexualidade da criança adotada.

Júlia

“pecado”

“Deus fez o homem e a mulher” “homens não podem se deitar” “influência”

“o normal é pai e mãe”

A homossexualidade é um pecado condenado por Deus. Segundo a Bíblia, Deus criou o homem e a mulher.

Segundo o discente, dois homens não podem ter relações sexuais.

Pais homossexuais podem influenciar a sexualidade da criança adotada.

Dois pais ou duas mães não são aceitáveis e não podem adotar.

Jacó

Não foi detectado nenhum dizer regular de conteúdo sexista, heteronormativo ou homofóbico.

-

Joana

Não foi detectado nenhum dizer regular de conteúdo sexista, heteronormativo ou homofóbico.

-

Fonte: elaboração do autor

Estes dizeres, que se repetiram e se manifestaram na forma de um padrão, passou a constituir o corpus desta pesquisa, pois sua regularidade, seja na forma de expressões ou interjeições, não passou despercebida por mim, o que veio a reforçar a presença de uma discursividade arquetípica, sexista, heteronormativa e homofóbica.

A partir das entrevistas recortadas, pude considerar as cenas enunciativa como passíveis de objeto de exploração teórica e também analítica, já que o objetivo de realizar as entrevistas, transcrevê-las e recortá-las está, justamente, na possibilidade de analisar o que é dito, o que é materialidade discursiva, o que pode vir a ser fuga de sentidos, paráfrase, metáfora ou outros elementos presentes numa determinada instância enunciativa.

Após a elaboração do corpus, delimitei um conjunto de blocos ou Cenas Enunciativas recortadas a partir das respostas oferecidas a mim, pelos discentes. A partir de tais cenas enunciativas, ou recortes, pude realizar uma análise da possível presença de uma discursividade

arquetípica de conteúdo sexista, heteronormativo e homofóbico, não necessariamente os três, em conjunto, mas, ao menos, aparentemente, a presença de um deles a partir de determinadas enunciações.

As questões formuladas, durante a entrevista, foram pautadas em 6 (seis) perguntas a serem respondidas pelo acadêmico e que, a depender de suas respostas, vieram a se ramificar em novas perguntas, a fim de esclarecer uma resposta que não teria ficado exatamente clara na primeira enunciação. Neste sentido, o questionário formulado por mim se pautou nas seguintes questões:

QUADRO 03 – PESQUISA SEMI-ESTRUTURADA – ENTREVISTAS

Tema: “Discursividade arquetípica de conteúdo sexista, heteronormativo e homofóbico nos dizeres dos discentes do Curso de Direito”

01. O Direito é Universal? Fundamente sua resposta.

02. De que modo o Curso de Direito lhe ajudou a pensar na questão de que os direitos são universais?

03. E a questão do casamento homoafetivo? Você é a favor ou contrário? 04. O que você pensa sobre a adoção por pares homoafetivos?

05. Você acha que existe homofobia no Brasil?

06. Você acredita que existe homofobia entre seus colegas de classe? Fonte: Elaboração do autor

Em minha pesquisa busquei analisar os dizeres de 20 (vinte) acadêmicos do Curso de Direito da Instituição supracitada, dentre as quais elenquei o número de 6 (seis) como fundamentais para visualizar a materialidade discursiva que se pretende demonstrar por meio da presente pesquisa.

Como professor da instituição, assumi o papel de entrevistador dos alunos, cujos nomes foram alterados para fins de cumprimento ao exigido pelo Comitê de Ética e Pesquisa, nos moldes do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), cujo objetivo é salvaguardar o anonimato dos entrevistados.

Decidi realizar as entrevistas utilizando um roteiro semi-estruturado, cujas respostas foram gravadas em áudio e, posteriormente, transcritas de forma livre para a referida análise interpretativa, conforme já informei. Ao longo da transcrição de cada entrevista, foi possível perceber o funcionamento da língua e a materialidade histórica inerente aos dizeres dos entrevistados, de forma que, com base nesses elementos, pude construir uma análise de cada enunciado e o movimento individual para a tomada de posição em determinado momento da enunciação. Não me refiro a uma tomada de posição, mas, sim, a várias posições possíveis, uma vez que cada sujeito é constituído por uma determinada historicidade, sobre a qual me debrucei

para ser possível a realização da análise de sua discursividade.

Cada discursividade ou enunciado emitido sempre traz uma carga valorativa ou sentidos que atravessam o sujeito que fala, o que tomarei aqui como marca linguística ou “marca de discurso”, as quais serão o objeto de análise, tendo em vista que, na análise de discurso, não é imprescindível que se analise tudo aquilo que é dito, mas, sim, o contexto social e histórico dos sujeitos, sua tomada de posição, as afirmações repetitivas que configuram a materialidade do discurso e o atravessamento ou não de determinada discursividade.

Tendo em vista que os sujeitos se constituem pelo atravessamento de várias ideologias, que os interpelam, uma vez que fazem parte de um determinado contexto sócio-histórico, de uma realidade arquetípica, em que os papéis sociais se encontram pré-construídos, o que não se pode deixar de afirmar, é a existência de condições de produção dos discursos objeto desta pesquisa, e que serão demonstrados, caso se manifestem ou se evidenciem, isto é, tornem-se materiais no corpus enunciativo.

Visto que o eixo temático da problematização da pesquisa é demonstrar a existência de uma discursividade de características arquetípica, sexista, heteronormativa e homofóbica no meio acadêmico do Curso de Direito, irei utilizar as ferramentas analíticas com base na Análise de Discurso de linha francesa (ADF), a qual pressupõe um recorte discursivo, a partir de um determinado corpus, em que se encontram representados os efeitos de sentido dos diversos dizeres dos acadêmicos entrevistados.

Após a transcrição dos áudios para a construção das cenas, foi realizado o devido recorte discursivo buscando identificar as regularidades ou repetições na formação discursiva do falante, bem como a existência ou não de sentidos homogêneos, isto é, idênticos ou semelhantes ao que vim problematizando na presente introdução desta pesquisa.

A partir da análise da regularidade discursiva, das repetições, das (re)afirmações de seu dizer torna-se possível construir uma identidade discursiva que revela o atravessamento ideológico do sujeito por meio de sentidos pré-construídos e que residem na rede de memória da sociedade em que se encontra inserido. Isto porque todo sujeito é histórico e, consequentemente, produto de uma determinada historicidade sobre a qual incidem várias categorias, como a rede de significantes que permeiam a família, a escola, os amigos, a igreja, a universidade, ou seja, os vários aparelhos ideológicos althusserianos, sem deixar de mencionar o conteúdo arquetípico junguiano, presente na rede de memória social na forma de arquétipo ou ideia ancestral reproduzida por meio de gerações, as quais perpassam o sujeito e o atravessam.

discursiva que deixa flagrar o interdiscurso e o intradiscurso e que revelam a tomada de posição de cada sujeito que enuncia, pois, o interdiscurso é aquilo que já existe, em termos de historicidade, e tudo aquilo que ainda virá, e que permite aos sujeitos enunciarem e tomarem posição por meio de seu intradiscurso, e assim produzirem efeito de sentido que pode ser apreendido por meio da interpretação do analista. O analista deve reconhecer que há vários sentidos possíveis, e que a interpretação nunca se fecha, demonstrando que não existe uma única interpretação, mas várias definições e conceitos possíveis no âmbito da rede de significantes que atravessam o sujeito, isto é, os sentidos se encontram no plano da contingência.

Defendo, neste trabalho, a possível existência de uma discursividade arquetípica sexista, heteronormativa e homofóbica, a qual se manifesta nos dizeres de alguns acadêmicos de Direito. Lembro que a formação jurídica dos estudantes de Direito deve se pautar no exigido pela Resolução n° 9, de 29 de setembro de 2004, instituída pelas Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito, por meio da Portaria n° 1.886, de 30 de dezembro de 1994, cujo profissional deve possuir sólida formação geral, humanística e axiológica, capaz de analisar, conceituar e compreender a terminologia jurídica, que serão capazes de lhe fornecer a adequada argumentação, interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e sociais, aliada a uma postura reflexiva e de visão crítica que fomente a capacidade e a aptidão para a aprendizagem autônoma e dinâmica, indispensável ao exercício da Ciência do Direito, da prestação da justiça e do desenvolvimento da cidadania.11

No presente trabalho, bucarei analisar, por meio das análises dos entrevistados, se tal formação pode, ou não, ocorrer, sempre mantendo o foco na questão, já mencionada, de que os sujeitos são históricos e atravessados por discursividades que lhes são anteteriores, pois uma legislação e uma matriz curricular não são capazes de realizar um giro discursivo ou desestabilização de sentidos em todos os indivíduos.

A coleta das entrevistas se deu na Sala do NDE – Núcleo Docente Estruturante – do Centro Universitário Unitpac, no Bloco Administrativo, em datas distintas, durante os meses de maio e junho do ano de 2017. Nesta sala, havia uma mesa redonda com três cadeiras, um armário de aço, janela basculante fechada para evitar a entrada e saída, tanto do ar, quanto do som, fosse dos interlocutores, quanto dos transeuntes no âmbito externo. Para conforto dos participantes da entrevista, havia a possibilidade de ambos usufruírem de água e de café em

11 BRASIL. Câmara de Educação Superior. Resolução n° 9, de 29 de setembro de 2004. Institui as Diretrizes

Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito e dá outras providências. Diário Oficial, n° 189, Seção 1, p. 17/18, Brasília, DF, 01 out. 2004.

ambiente climatizado, com temperatura agradável, na faixa de 22 graus, a fim de que o entrevistado pudesse permanecer confortável durante todo o tempo da entrevista.

Todos os acadêmicos entrevistados leram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) com atenção e tiveram todas as suas dúvidas sobre a pesquisa dirimidas por mim, tanto em relação ao sigilo, cuidado com o manuseio das fichas de identificação, o comprometimento de que suas identidades não seriam reveladas, a não ser sua idade, procedência nacional, período cursante, religião, estado civil e uso de pseudônimo para sua identificação na pesquisa. Além disso, tomaram conhecimento dos possíveis riscos durante a entrevista, como a possibilidade de eventual desconforto diante das perguntas a serem respondidas, bem como a liberdade de interromperem o processo a qualquer tempo sem nenhum prejuízo pessoal ou institucional. Todos os acadêmicos acordaram e assinaram o Temo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e se mostraram dispostos a responderem às perguntas formuladas por mim, as quais se encontram no Anexo II do presente trabalho.

Cumpre lembrar que as análises das cenas enunciativas recortadas se deram com base no aporte teórico por mim buscado e fundamentado no capítulo específico, tomando como ponto de partida as teorias envolvendo a Análise de Discurso de linha francesa, notadamente aquelas que trazem, em seu bojo, as teorizações do filósofo Michel Pêcheux, bem como outras teorias de cunho antropológico, filosófico, sociológico, psicológico e analítico, jurídico e histórico, como Pierre Bourdieu, Michel Foucault, Louis Althusser, Sigmund Freud, Jacques Lacan, Carl Gustav Jung, dentre outros, realizando um passeio pelos vários saberes que constituem uma análise multidisciplinar capaz de me permitir alcançar os objetivos deste trabalho de pesquisa.

3 CONSTRUÇÃO DO GÊNERO E DA SEXUALIDADE NO PROCESSO POLÍTICO