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3 CONSTRUÇÃO DO GÊNERO E DA SEXUALIDADE NO PROCESSO

3.1 O apagamento histórico do gênero feminino na pré-história

Ao que parece, os primeiros homens possuíam o hábito de se movimentarem de um lugar para o outro (TANNAHILL, 1983), visto que o gelo provocava a escassez de alimentos para os primeiros grupos de coletores obrigando-os a se deslocarem para outros locais a fim de sobreviverem. Movimentarem-se era essencial e, muitas vezes, era forçoso disputar um novo território já ocupado, sendo os vencidos expulsos ou, caso fossem poucos, incorporados à tribo dos vitoriosos (TANNAHILL, 1983).

As informações acerca dos primeiros agrupamentos humanos e sua vida diária chegaram até nós por meio de resquícios arqueológicos e representações artísticas onde se evidenciam

imagens de seus afazeres, como por exemplo, a de que durante centenas de milhares de anos nossos antepassados viveram sob uma economia baseada na caça e na coleta (STEARNS, 2009).

O homem primitivo parece ter tido um hábito móvel de vida, não só por necessidade, como por escolha. Embora pudesse ter herdado o instinto territorial de seus antepassados, parece que seu cérebro começou a expulsá-lo. Quando a caça se tornava mais escassa e a vegetação menos farta, durante os períodos de mutação climática, ele descobria que esgotara sua seção de paisagem, de maneira que era essencial movimentar-se em frente (TANNAHILL, 1983, p. 23).

Perto de 350.000 anos atrás o homem primitivo começou a se estabelecer, aparentemente, devido às mudanças climáticas no período que veio a ser conhecido como

Pleistoceno, onde, geologicamente, desde os últimos dois milhões de anos, iniciou-se um

processo de lentas flutuações climáticas, desde o quente agradável até o frio inclemente (TANNAHILL, 1983). O frio obrigou os primeiros homens a buscarem regiões mais quentes, vivendo por séculos através da caça e coleta de alimentos. Não buscavam por novas terras para fins de propriedade, mas, sim, por razões climáticas e a busca de alimentos para sua sobrevivência.

Talvez a divisão do trabalho tenha se dado pelas diferenças anatômicas e biológicas entre machos e fêmeas, principalmente porque esta última passa grande parte do tempo grávida ou amamentando. E, neste processo, é a fêmea quem acaba desenvolvendo a agricultura, visto que não pode depender da espera pelo alimento trazido pelo homem, vindo a cultivar a terra e fundando a própria característica nômade do grupo.

O homo erectus estabeleceu relações sociais, visto que andavam em grupos e foram os primeiros hominídeos a partirem da África em direção a outros continentes. Perceberam, com o decorrer do tempo, que andar em grupo era mais vantajoso para o clã, tanto para sua segurança, quanto para a sobrevivência por meio da caça e da coleta:

O Homo erectus foi a primeira espécie humana a utilizar o fogo; a primeira a incluir a caça como uma parte significativa de sua subsistência; a primeira capaz de correr como os humanos modernos o fazem; a primeira a fabricar instrumentos de pedra de acordo com um padrão definido; a primeira a estender seus domínios para além da África. Não sabemos de forma definitiva se o Homo erectus possuía algum tipo de linguagem falada, mas diversas linhas de indícios sugerem isto. E não sabemos, e provavelmente não saberemos nunca, se estas espécies tinham algum grau de autopercepção, uma consciência humanoide, mas minha suposição é de que a tinham. Desnecessário dizer, linguagem e consciência, que estão entre os aspectos mais valorizados do Homo sapiens, não deixam traços nos registros pré-históricos (LEAKEY, 1995, p. 13).

arranjo social e ecológico. Viviam em “pequenos bandos móveis e ocupando acampamentos temporários a partir dos quais os machos saíam para predar e as fêmeas para coletar alimentos vegetais” (GLYNN apud LEAKEY, 1995, p. 69).

A vida nas cavernas tornou o homem sedentário e, talvez, muito mais gregário. Havia cavernas com espaços não maiores que trinta metros de comprimento por dez de largura (TANNAHILL, 1983), porém algumas eram naturalmente divididas em cômodos de cavernas menores. Isso pode ter levado às primeiras regras de quem poderia habitar os maiores espaços e a quem estaria reservado os espaços menores. A noção de poder territorial pode ter nascido, justamente, diante do desejo de possuir o alojamento mais agradável.

Não há uma evidência sobre a divisão do trabalho no período paleolítico, mas há um consenso de que o homem era o caçador e a mulher a coletora (TANNAHILL, 1983), e que quando não estava grávida ou amamentando, a mulher caçava ao lado do homem. Somente durante a gravidez a mulher era vista com “menos utilidade, sendo ela mais vulnerável ao frio e à desnutrição” (TANNAHILL, 1983, p. 26).

Colher plantas, pequenas tartarugas, nozes, caranguejos e pequenos animais era uma tarefa relativamente fácil e não dependia da visão precisa masculina. Assim, as mulheres se tornaram aquelas que traziam o alimento imediato para a tribo, eis que a coleta era simples e exigia pouco esforço físico:

Caçadores ou colhedores? A pergunta não é somente acadêmica. Isto porque toda a vida das tribos caçadoras estava ligada aos animais que pilhavam e, por causa disto, aos requerimentos daqueles que faziam a caçada. Se a caça estava lá para ser morta, todas as energias da tribo se concentravam em auxiliar os caçadores e prepara-los para sua tarefa. A vida e sobrevivência da tribo evoluía em torno deles e, mesmo quando o mundo mudou, quando a caça perdera a importância, as antigas atitudes sobreviveram. O homem permaneceu supremo (TANNAHILL, 1983, p. 27).

Caçar era uma atividade que requeria capacidade de comunicação (linguagem) e união, bem como utilização do intelecto. A caça e a coleta eram compartilhadas entre os membros do grupo, o que os aproximava ainda mais movidos pelo instinto de sobrevivência e exercitando uma primitiva capacidade de empatia.

O Homo sapiens surge entre 100 mil e 40 mil anos atrás (SEIXAS, 1998) como descendente do Australopithecus robustus, cujos fósseis encontrados na África do Sul indicam que este antepassado do homem habitou as selvas africanas. Porém, todas informações que chegam nos dias atuais são de pinturas em cavernas, as quais não são capazes de aprofundar um maior conhecimento acerca destes primeiros agrupamentos humanos.

No período Paleolítico dá-se o início da atividade de caça, e os hominídeos deste período se tornam carnívoros (SEIXAS, 1998), dando início ao processo de divisão do trabalho,

já que a mulher, por passar muito tempo gestando ou cuidando da prole, deve alimentar os filhotes e, justamente, por não poder esperar por um alimento incerto, que é o produto da caça, acaba por cultivar a terra e, assim, cria o espaço doméstico (ARATANGY, 1989).

Pouco a pouco, o homem caçador evoluiu para o homem-pastor, e a mulher coletora para a mulher-fazendeira, momento em que as tribos se voltaram para a cultura sedentária. Concomitantemente a isso, eis que surge a linguagem, uma nova ferramenta capaz não somente de permitir a troca de experiências, mas também de definir papéis sociais.

Porém, conforme Beauvoir (1970):

As informações que fornecem os etnógrafos acerca das formas primitivas da sociedade humana são terrivelmente contraditórias e tanto mais quanto eles são mais bem informados e menos sistemáticos. É singularmente difícil ter uma ideia da situação da mulher no período que precedeu o da agricultura. Não se sabe sequer se, em condições de vida tão diferentes das de hoje, a musculatura da mulher, seu aparelho respiratório, não eram tão desenvolvidos como os do homem. Duros trabalhos eram-lhe confiados e, em particular, ela é que carregava os fardos. Entretanto, este último fato é ambíguo: é possível que essa função lhe fosse determinada para que, nos comboios, o homem conservasse as mãos livres a fim de defender-se contra os agressores ocasionais, indivíduos ou animais. (p. 81, grifei).

Não há registros comprobatórios de que hominídeos machos e fêmeas possuíssem qualquer diferenciação em seus papéis dentro de seu grupo. Ao que parece, ambos caçavam e coletavam, sendo a única diferença entre eles meramente anatômica.

Somente com o desenvolvimento dos papéis sociais, onde a fêmea passou a permanecer mais tempo amamentando a cria, enquanto o macho saía para caçar é que se supõe o início de uma diferenciação entre os sexos, porém, não de ordem natural, mas de ordem social.

Aos poucos, estas mudanças refletiriam, diretamente, nas relações de domínio e submissão envolvendo homens e mulheres.

Some-se a isso o fato de que a humanidade se espalhou pelo planeta, cada tribo desenvolvendo sua própria cultura, costumes e práticas, algumas, similares e outras completamente diversas.

A cultura do incesto foi, praticamente, proibida na quase totalidade dos povos da terra, mas a tarefa das mulheres cuidarem dos afazeres da tribo e da prole, à medida que o clã crescia, enquanto os homens saíam para buscar alimento tornou-se uma prática universal. Não por uma questão biológica, mas, sim, por uma construção cultural onde ocorreu a divisão de tarefas.

Estas práticas reiteradas foram se cristalizando no seio social, de forma que, em meu entendimento, podem ser a própria cristalização dos arquétipos ou figuras primordiais da humanidade, que viriam a se manifestar nos povos e comunidades futuras, a partir da visão

junguiana de mundo.

3.1.1 A figura do pai

Na era Paleolítica, o papel do pai não estava definido como passa a ocorrer a partir do advento do Homo sapiens. Com o passar do tempo, o homem percebeu que, num rebanho com várias fêmeas, um único macho seria capaz de gerar filhotes em, praticamente, todas elas, caracterizando a predominância do macho. Talvez, para o hominídeo daquela época, isso significou alguma espécie de poder, já que “um só carneiro podia emprenhar mais de cinquenta ovelhas.

A era neolítica compreendeu o período entre 10.000 a.C a 4.000 a.C., e seu término coincide com o surgimento do Velho Testamento bíblico, onde há um Deus personificado na figura de um “pai” e os homens dos clãs eram os “patriarcas” que conduziam o “rebanho” (de outros homens mais jovens, mulheres e os animais), e por sua vez, arquetípico:

Os homens que emergiram do neolítico para o período da história registrada possuíam o tipo de segurança, arrogância e autoridade surgido, não da ferramenta útil, não do conhecimento de um trabalho bem feito, mas da espécie de revelação ofuscante — além de argumentos, além de questionamentos — que seria experimentada mais tarde pelos profetas do Antigo Testamento e os santos do Novo. Teria acontecido que, descobrindo seu papel crucial em uma área onde sempre fora negada a potência do homem, eles houvessem (muito humanamente) reagido? (TANNAHILL, 1983, p. 50, grifei).

Eis o aparecimento do patriarcado, de raízes judaicas, que posteriormente influenciaria o cristianismo, não de forma abrupta, mas como uma construção cultural que se deu ao longo de quase 6.000 anos de história neolítica, e que foi se cristalizando no meio social na forma de uma ideia primordial ou um arquétipo:

Em um nível mais específico, agora era possível a um homem olhar para uma criança e chamá-la “meu filho” e também sentir a necessidade de chamar uma mulher “minha esposa”. Fosse qual fosse o costume marital antes dessa época — monogamia, poliginia, poliandria — a seguir a liberdade sexual da mulher começou a ser seriamente contida. Um homem poderia ter um harém, se assim preferisse e caso pudesse defendê-lo, mas o conceito de “meu” filho exigia que a mulher fosse monógama. (TANNAHILL, 1983, p. 50, grifos do autor).

Já nas sociedades pastoris, justamente por serem altamente móveis, o rebanho era propriedade dos homens, e as mulheres, por uma espécie de anexação, se tornaram também propriedade de seus maridos, além de dependente deles. Dependiam totalmente de seus rebanhos, subjugavam as mulheres, que agora eram “suas” juntamente com o rebanho, tornando-se o macho o elemento dominante neste meio.

Como exemplo, tomo as comunidades pastoris descritas na própria Bíblia, quando o homem hebreu se tornou pastor de ovelhas, da prole e da própria mulher, ganhando o status de pai.

Além disso, um tema recorrente na Bíblia é o mandamento de um deus antropomórfico que disse aos homens “sede férteis e multiplicai-vos! Povoai e sujeitai toda a terra; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todo animal que rasteja sobre a terra!” (Bíblia, I, 28), o que parece ter sido levado ao pé da letra, pois o homem pastoril percebeu que quanto mais filhos em sua linhagem, mais detenteria mão-de-obra para trabalhar:

Mais filhos significavam mais ajuda na lavoura, mais colheitas e melhores. Uma nutrição superior significava aumento de fertilidade, mais filhos nascidos vivos, uma taxa menor de mortalidade infantil e, em média, um ligeiro aumento na expectativa de vida. (TANNAHILL, 1983, p. 51).

A mulher, se antes possuía um papel tão relevante quanto o do homem, no passado, parece que foi perdendo este espaço a cada milênio rumo à civilização de sociedades mais complexas, tornando-se mera produtora de filhos, cultivadora da terra, e submissa a um homem que estava descobrindo, pouco a pouco, seu auto-respeito sexual.

Ao mesmo tempo, acredito que foi se cristalizando, milênio após milênio, o padrão do arquétipo dominador da figura do pai como chefe do clã, e a dominação da mulher por meio de um auto-respeito, que, para se tornar reconhecido, necessitava subjugar o outro, e este alguém só poderia ser a mulher, que passou a ter um papel social previamente construído pelo próprio subjugador.